Por que o morro não desce?

Resposta fácil e verdadeira nos dias de hoje, com sua força de atração através da promessa do compartilhamento da violência dos intolerantes. Vamos olhar para o “morro”.

Um amigo me perguntou por que, afinal, o morro não desce?

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A pergunta, em si, já é reveladora. Parcela da classe média progressista reconhece a sua falta de capacidade de mobilização e pergunta como aqueles que materialmente estão sendo mais prejudicados não se revoltam. Não vamos falar da classe média, dos motivos da pergunta, da falta de organização e etc. Não vamos apelar para o fascismo. Resposta fácil e verdadeira nos dias de hoje, com sua força de atração através da promessa do compartilhamento da violência dos intolerantes. Vamos olhar para o “morro”.

Nasci e fui criado praticamente dentro de terreiro de umbanda. Comendo pipoca com dendê, galinha com farofa e canjica. Perdi a conta de quantas noites dormi em casa de Pais de Santo cujas camas, lá pelos anos 80, eram partilhadas pelos filhos dos seus filhos de santo, enquanto as celebrações aos orixás entravam até a madrugada. Um Terreiro era, antes de mais nada, uma ode à diversidade, uma elegia ao acolhimento e um símbolo de tolerância. Perdi a conta das vezes que me foi explicada a fúria incontida de alguém ou sua sobriedade introspectiva pela Iansã ou Oxalá “na cabeça”, respectivamente. O laranja de Ogum convivia com o vermelho de Xangô como adversários respeitosos. Rivais tolerantes e nunca inimigos. Reverenciados pelos seus filhos e respeitados pelas diferenças.

O terreiro foi sempre parte do “morro”. E o terreiro é o termômetro da resposta acima. O “morro” não desce, porque o “morro” não existe mais.

O que é “o morro”?

O “morro” é uma construção sócio-cultural de duas vias: uma advinda da exclusão que sofre pela sociedade branca do “asfalto”, e outra pelo constante incensar das relações de solidariedade locais que terminam por criar uma comunidade cultural própria, vibrante, diversa e aguerrida. O morro era o eterno adaptar-se às limitações materiais financeiras e de espaço pela solução coletiva da celebração da comunidade. Não era nada parecido com a romantização da pobreza que vemos hoje. Ninguém no “morro” bate palma para pai de família que levanta três da manhã para fazer pastel e vender numa caixa de isopor pendurada nas costas. Isto é o normal.

O morro surge com o samba criminalizado nos séculos XIX e início do XX, ao mesmo tempo que com as reformas elitistas que ocorrem em todo o Brasil mas tem em Pereira Passos no RJ, um exemplo já estudado. É o “malandro” violeiro que aprendia a colocar em versos a ginástica que fazia para sobreviver na vida. O “morro” desenvolve linguagem própria. Símbolos e sons oriundos tanto da exclusão quanto da solidariedade. O “morro” exerce, para toda a sua comunidade, ao mesmo tempo, a noção de segurança e pertencimento. Nos anos 80, bicheiros e traficantes eram as “lideranças benevolentes”, a quem se dava respeito em troca segurança, e alguma ajuda material.

É importante salientar que o “bicheiro” e o traficante viviam no morro e não “do” morro. Mesmo as celebridades que lá surgiam, no morro ficavam. Ou ficavam ou faziam de tudo para voltar e se manter próximas. O jogador Adriano é exemplar: “Rei de Roma”, e um milionário que só queria voltar para sua comunidade. Muito diferente dos dias de hoje, até o início dos anos 2000, todo morro era uma orgulhosa comunidade pobre. A pobreza material era constituição subjetiva positiva e não mácula social insanável.

Hoje, ninguém mais quer ser visto como “comunidade pobre”. Que não se queira ser “pobre” é compreensível, mas o problema é que não se quer mais ser “comunidade”.

As transformações em três eixos

Desde o final dos anos 90, uma silenciosa e violenta transformação se deu “no morro”. E, enquanto a transformação se dava, a classe média aplaudia.

A revolução dos meios de comunicação não levou não somente “o capitalismo” a todos os lugares do planeta, como também o levou para dentro do morro. E, enquanto nos anos 2000, este sistema se associava ao governo para perseguir expressões culturais locais (como as rádios comunitárias, por exemplo) ele construía toda uma nova rede de imposição simbólica. O morro hoje consome Felipe Neto e Anitta. Não mais os personagens locais, que refletiam a sua linguagem, seus anseios e suas esperanças, mas figuras estilizadas e caricaturizadas pelo marketing e os valores do “asfalto”. A cantora negra que aparece quase sempre branca e com cabelos alisados, e um “bad boy” estético, caricaturizado de “bom mocinho” para “atingir mais público”. A diversidade do morro deu lugar à máquina de homogeneização da internet capitalista. A destruição do espaço cultural subjetivo que era “o morro” foi aplaudida pela classe média como sinal de “civilização” e “desenvolvimento”. O preconceito encruado não permitiu a percepção da alteração do equilíbrio social e como isto influenciaria no jogo democrático.

A destruição dos terreiros é a destruição do morro. Economicamente, um terreiro de umbanda ou candomblé era um ponto de atração de recursos de fora para dentro do morro. Os participantes da casa, seus filhos de santo e ajudantes, realizavam o trabalho físico, mas o retorno financeiro era provido em maioria pela peregrinação social que cada terreiro fazia realizar. Hoje, além da intolerância, do ódio e do falso moralismo religioso, as igrejas neopentecostais da teologia da prosperidade vivem “do morro”. É extraindo riqueza do morador mais pobre que estas igrejas sobrevivem, num processo de concentração tão violento quanto o de dominação simbólica. Qualquer terreiro do “povo de santo”, em qualquer lugar do Brasil, é imensamente mais tolerante à diversidade social de gênero, de cor, de credo e de classe que a mais progressista igreja neopentecostal. Sumiram os despachos nos “cruzeiros” e sobram as mortes pelo preconceito.

Toda comunicada geograficamente marginal no Brasil vive uma tensão com as forças repressivas do Estado. Isto é “lei” para qualquer estudo de sociologia da violência. Contudo, até o início dos anos 90, o “pacto” de legitimidade de espaços geográficos diminuía a violência dentro deles. Hoje, aumenta.

O crescimento da população urbana no Brasil e a grave crise econômica do final dos anos 90 acirraram a violência tanto dentro do “morro”, quanto “no asfalto”. As guerras entre grupos criminosos rivais, incitadas pelo aumento do consumo de drogas nas cidades viu como resposta do Estado o acirramento da violência policial. A polícia passou a matar tanto quanto o crime, no Brasil. Ao invés de criar um clima de ordem e respeito à lei, as medidas policiais tomadas nos anos 90 e início dos anos 2000 fizeram explodir a criminalidade, a violência e a exclusão. O “morro” antes um lugar romantizado e culturalmente auto-identificado, tinha se tornado “uma chaga” na visão branca e elitista dos governantes. O tráfico era “tolerado” pelas populações locais, na narrativa das autoridades de segurança. E não demorou muito para que os moradores de periferia virassem “bandidos”. Nesta criminalização, o morro virou “favela”. A “favela” virou sinônimo de poder paralelo e núcleo de todo o mal nas cidades brasileiras. Entre a dominação por “traficantes” oriundos da comunidade, ou o controle destas regiões por “milicianos”, que têm um passado associado ao poder público, a classe média e mesmo o Estado brasileiro preferiram os crimes das milícias.

O “morro” morreu a golpes de capitalismo. Uma comunidade que tinha na sua estrutura cultural a coletividade, a solidariedade, a diversidade e a exclusão, foi demolida. A internet, as igrejas neopentecostais e as milícias não resolveram o problema da pobreza ou da exclusão. Passaram a lucrar com elas. E para lucrarem mais precisaram reificar e fortalecer estas condições. Ao mesmo tempo, o morro passou a ser parasitado financeira e culturalmente. Qualquer comunidade pobre no Brasil “fatura” mais do que algumas das maiores empresas do país. E este dinheiro vai sendo centralizado fora dos morros, gerando relações de poder e submissão externas, enquanto homogeneízam o tecido social.

No processo de tornar todos muito parecidos, o capitalismo deu ao asfalto uma parte do morro, e deu ao morro uma parte do asfalto. Se hoje sabemos o que é uma “popozuda”, fica claro que há uma apropriação simbólica e cultural da periferia, mas apenas por meio comercial. Seria de se esperar que o mesmo movimento fosse feito também em sentido contrário. O “asfalto” deu ao morro as noções de “empreendedorismo”, a intolerância social e o ódio pela política. Tudo por meio das mãos dos vetores do “mercado” nestas comunidades.

Não nos enganemos. Hoje o “morro” é a cara de Bolsonaro. É moralista, intolerante, violento e ignorante. Vive cultivando um ódio de si porque teve seus valores invertidos. Vive achando que a violência que aprendeu a suportar é ferramenta com a qual deve conformar o mundo. O morro se convenceu que é pobre porque não “se esforçou o suficiente”, porque não “acredita suficientemente em Deus” ou porque “alguém lá em cima roubou”.

Retomando o argumento inicial, a cada terreiro que é destruído, o morro morre um pouquinho. E ele tem morrido sem ninguém se preocupar com isto desde o final dos anos 90.

Neste estado de coisas, não há por que sair às ruas para protestar. A política, neste viés, é causa dos males sociais, e não ferramenta de transformação.

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