Publicado originalmente no jornal A Nova Democracia
Os fluminenses estão sendo lesados permanentemente pela empresa distribuidora de energia elétrica, a Ampla, de capital estrangeiro. A empresa instalou, ilegalmente, medidores eletrônicos de consumo (chips) que fizeram as contas subirem vertiginosamente. Agora, pretendem implantar o sistema de fornecimento de energia elétrica pré-paga, outro crime contra a população mais explorada (e consequentemente mais empobrecida), que se vê a cada dia condenada a viver à margem dos serviços básicos.
A distribuidora de energia elétrica para a maior parte do estado do Rio de Janeiro, a Ampla Energia e Serviços, certamente figura entre as piores empresas concessionárias de serviços públicos que atua no país.
Privatizada em 1996, na onda de entreguismo desencadeada por Collor/Cardoso, a antiga CERJ - Companhia de Eletricidade do Estado do Rio de Janeiro, foi comprada pela Endesa, espanhola, maior empresa do setor elétrico da Península Ibérica.
A ofensiva da Endesa já havia passado pela Argentina e pelo Chile, onde também possui empresas de geração e distribuição de energia elétrica. No Brasil, os espanhóis são ainda detentores da Companhia de Distribuição de Energia Elétrica do Estado do Ceará - Coelce; a usina hidrelétrica Centrais Elétricas Cachoeira Dourada - Endesa Cachoeira; a Central Termelétrica Endesa Fortaleza e a Companhia de Interconexão Energética - CIEN. A empresa lucrou, oficialmente, mais de 24 milhões de reais, apenas no segundo semestre de 2005. É importante destacar que um dos acionistas da Endesa é o Banco Mundial. (Ver página 10)
De 1996 até dezembro de 2004, a Cerj/ Ampla recebeu da Agência Nacional de Energia Elétrica - Aneel* concessão de reajuste de preços de 266,89% enquanto que para os seus funcionários, um aumento de 72% que, diga-se de passagem, foram estimulados (chantageados e ameaçados) a se demitirem. O resto da história todos conhecem: a terceirização** dos serviços e precarização das condições de trabalho dos operários e demais trabalhadores.
Quando assumiram os serviços, em substituição à Cerj estatal, os estrangeiros passaram a recrudescer o combate ao furto de energia elétrica, os populares "gatos". Curioso é que enquanto o poder permitia que a empresa roubasse do pobre apoiava, por sua vez, as medidas contra o pequeno "furto" movido por famílias desempregadas, ou seja, negligenciadas pelo Estado. Além do mais, muitas vezes essa caça aos gatos atingia localidades onde não havia a rede de energia elétrica, ou seja, as pessoas faziam valer seus direitos construindo elas mesmas a rede elétrica que deveria estar pronta. Isso já era motivo de denúncia em 1996, quando da desnacionalização da companhia e consequente transformação de distribuição de energia em motivo de lucros desmesurados.
Concentrador onde ficam os chips |
Entre as mais recentes falcatruas da empresa (e de quem as protege) está a instalação de um medidor eletrônico em caixas que ficam no alto dos postes, longe das vistas do consumidor, o principal interessado em acompanhar a medição do consumo. Lembre-se ainda que o equipamento, batizado de Ampla Chip não mede apenas o consumo, como também possibilita o corte do fornecimento eletronicamente, desde uma central, sem que seja preciso deslocar uma equipe de trabalhadores ao endereço da vítima.
O advogado Magnus Rossi tem entrado com algumas ações contra a Ampla. Para evitar os labirintos da justiça comum, optou pelos juizados especiais, que atendem casos em que as indenizações pedidas vão até 40 salários mínimos. Ganhou umas ações, perdeu outras, mas reconhece que este é um recurso dispendioso e limitado. Mesmo assim, não deixa de acompanhar a ação da Ampla na região da Baixada Fluminense.
- O problema começou no início de 2006. A empresa instalou o medidor eletrônico (que fica no alto do poste) e passou a retirar o eletromecânico (que fica visível ao consumidor). A população de Saracuruna, Campos Elíseos (bairros de Duque de Caxias), São Gonçalo começou a impedir a retirada e aí eles passaram a deixar o medidor antigo nas residências. Verificou-se que a medição que vinha na fatura não correspondia ao marcador do eletromecânico - diz o doutor Magnus.
População indignada
As contas, que já eram difíceis de pagar, sofreram um aumento gigantesco - em alguns casos chegou a 400%. Residências com um morador idoso, quase sem aparelhos eletro-domésticos, tiveram contas aumentadas para mais de 240 reais. É o que conta a senhora Adair dos Santos, moradora do bairro de Saracuruna, em Duque de Caxias:
- Minha conta era de, no máximo, 18 reais. Mês passado veio de 115 reais e esta semana chegou outra de 240. Moro sozinha. Tenho uma televisão, uma geladeira e fico mais no escuro que no claro. Troquei as lâmpadas. Ganho um salário mínimo como pensionista. Ultimamente nem o salário eu recebo inteiro, por causa dos empréstimos que já vêm descontados. Reclamei no mês passado, mas a Ampla disse que não podia fazer nada, porque eu gastei aquela energia e tinha que pagar.
Luis Henrique Fáris é presidente da Associação cultural de assistência social de Saracuruna e diretor-presidente da rádio Juventude FM. Além de também ser lesada pela Ampla, a Rádio é uma porta-voz das reclamações da região:
- Aqui na rádio, pagávamos perto de 200 reais de energia, sem aparelhos de alto consumo e a mesma rotina diária. Após a instalação do medidor, a conta passou para quase 600 reais. Isso não tem explicação nem lógica. Num dia de manutenção nos equipamentos, tudo desligado, o gráfico de consumo da Ampla apontou consumo normal - conta Luis Henrique
Outro prejudicado pela Ampla é Acoel Moura de Souza, proprietário de uma pequena panificadora em Duque de Caxias.
- Estou indignado. Quando havia o medidor antigo tínhamos dificuldade, porque as contas já eram muito altas. Agora, colocaram esse tal de chip. Não dá para nós mesmos controlarmos quanto estamos gastando. Só eles. Quem vai saber se eles estão de boa ou má fé? Até agora mostraram apenas má fé.
Chips são ilegais
A instalação dos chips já foi motivo de audiências públicas na Câmara dos deputados em Brasília e na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Em ambos os casos ficou estabelecida que a utilização da medição eletrônica é ilegal, mas nada foi feito, porque, providencialmente, audiências públicas não resolvem nada.
No legislativo estadual uma audiência foi realizada em 18 de outubro de 2005. Nela, a presidente do Instituto de Pesos e Medidas - IPEM Soraya Santos revelou que "a autorização que foi concedida pela Aneel... é uma autorização em caráter experimental. (...) Quando você faz uma autorização em caráter experimental, você não autoriza, imediatamente, a retirada do equipamento antigo e muito menos autoriza a cobrança, porque se ele está em caráter experimental, você deveria ficar acompanhando, em paralelo." Logo após, em 26 de outubro, o IPEM passou a vistoriar os chips da Ampla. Porém, por falta de equipamento, os técnicos realizaram a vistoria com equipamentos da própria (?!) Ampla. Seria de se assustar se os equipamentos da Ampla acusassem um roubo da própria empresa.
Nova audiência pública foi realizada em 8 de junho de 2006, desta vez em Brasília. Airton C. Jorge foi um dos representantes da região (mal) atendida pela Ampla que presenciou o evento.
-Nós pegamos cerca de 300 mil assinaturas contra a instalação do medidor eletrônico pela Ampla. Encaminhamos isso a Brasília, convidados pelos deputados, porque nós não podemos arguir os empresários em questão; só os deputados podem arguir. Lá estavam outros empresários, representantes da Aneel, do Inmetro. O representante da Ampla disse que tinha conseguido educar o consumidor de baixa renda a consumir abaixo de 90 reais. Aí eu sugeri ao deputado que perguntasse a ele se uma pessoa que ganha uma bolsa família de 60 reais tinha condições de pagar 90 reais de energia. Ele gaguejou e não respondeu. Nós os encurralamos através de perguntas. Ali ficou evidente a conivência da Aneel. Eu desliguei minha energia por 15 dias. Quando veio a conta, não havia diminuído nada, veio normal. Foi tudo calculado previamente, com perversidade. É criminoso.
Luis Henrique insiste na falta de certificação do medidor eletrônico pelo Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Normatização e Qualidade Industrial), órgão do governo, único responsável por estabelecer as normas técnicas sobre tal aparelho:
- Foi confirmado que o aparelho não foi aferido pelo Inmetro, como eles dizem na fatura. O Inmetro não disse isso na audiência de Brasília. Enquanto a Light fará um teste em apenas cem residências com equipamento semelhante, a Ampla instalou e continua instalando em toda região que ela atende.
Airton reforça:
- Onde está o selo do Inmetro? Onde está a garantia da precisão dessa medição eletrônica? O sistema adotado só interessa à empresa. A fachada é dizer que está prestando bons serviços. A Ampla é a pior empresa prestadora de serviço da região.
O Inmetro é o único órgão que poderia certificar e dar o aval para a utilização desse tipo de equipamento. Não é necessária uma inteligência acima da média para perceber que os aumentos estratosféricos nas faturas cobradas pela Ampla configuram roubo, mas não são tratados como tal... Enquanto a discussão se situa na esfera técnica, o tratamento passa por erro, engano, equívoco, confusão, quando deveria ser por roubo, extorsão, chantagem, etc.
Seria tolice acreditar que uma empresa de capital estrangeiro se contentaria em fornecer um serviço de qualidade e preço justo, abrindo mão do lucro máximo, que rege o sistema imperialista em que vivemos. Além disso, mesmo se houvesse a certificação do Inmetro, nessas condições o roubo não seria menor.
"Estimativa" para roubar
Aliás, a contestação deveria ser à própria presença de tal empresa em nosso país, piorando os serviços que já eram ruins e remetendo lucros para a matriz espanhola e para o Banco Mundial. Tudo avalizado pela Agência Nacional de Energia Elétrica - Aneel que compõe, junto com várias outras agências reguladoras, uma rede que resguarda os interesses do imperialismo em setores essenciais e estratégicos, como energia, petróleo, comunicações, água, etc.
Ainda assim, algumas tentativas são feitas no campo da normatização. Ainda em Saracuruna, os técnicos do Inmetro instalaram um medidor eletrônico desenvolvido pelo Instituto em uma padaria que havia apresentado um aumento muito grande em seu consumo após a instalação do Ampla Chip.
Alex e Eliane, jovens proprietários do estabelecimento não concordaram e passaram a reclamar. Às insatisfatórias respostas se seguiram reclamações à Aneel, que solenemente ignorou o caso.
O casal Alex Sandro e Eliane |
- Quando a Ampla implantou o chip, nós não concordamos com o aumento da conta. Começamos a questionar e nunca deram uma explicação. Pedimos ao Inmetro para vir até aqui. Através de contas e os gráficos da própria Ampla, conseguimos provar que tinha alguma coisa errada. O Inmetro voltou e instalou um medidor eletrônico deles para comparar com o da Ampla. Em seis meses que o medidor ficou instalado, gastamos perto de 7 mil Kw. A Ampla cobrou 4.700 Kw a mais. Nós estamos esperando esse laudo do Inmetro para colocar a Ampla na justiça. Eles continuaram me cobrando pelo medidor deles, não pelo do Inmetro. A conta foi de mil pra 1.500. Eu fiquei preocupada e passei a acompanhar pela Internet e descobri que este mês (novembro de 2006) a conta daria 3.500 reais. Isso um mês antes, eu não tinha gasto a energia ainda. Em outubro eu soube que ia pagar 3.500 em novembro. Aí eles admitiram que é uma estimativa. Eles estão cobrando por estimativa. Eu nunca me recusei a pagar, mas quero pagar o que é justo - diz Eliane, indignada.
O laudo aguardado por Eliane e Alex, no entanto, até hoje não saiu. Ao que parece, os técnicos do instituto andam em reunião permanente desde que o casal começou a cobrar o documento, porque essa é a justificativa dada por eles.
Sobre o pagamento por estimativa o doutor Magnus faz um questionamento lógico:
- Se o medidor eletrônico é para uma maior precisão na medida, por que cobrar por estimativa?
Sobre a Aneel, o casal Eliane e Alex Sander Alves não tem dúvida sobre seu papel:
- A Aneel é conivente com a Ampla. Quando reclamamos para a Aneel, a Ampla respondeu que nós havíamos furtado energia, mas ela não me multou porque é uma empresa boazinha. Com o tempo, até o telefone para reclamações da Aneel deixou de funcionar - revela Alex.
O assalto pré-pago
A mais recente investida da Ampla contra os consumidores mais pobres é a venda da energia pré-paga, como acontece no caso dos telefones. Numa correspondência enviada aos consumidores da sua área de ação, a Ampla apresenta o "serviço" como um benefício: "A Ampla está oferecendo um novo benefício para os clientes com Ampla chip: o plano de pagamento pré-pago, semelhante ao existente na telefonia celular. A novidade facilita ainda mais o controle dos gastos e ajuda a manter a conta de luz de acordo com o orçamento das famílias". Mais um crime contra o povo é perpetrado e apresentado como favor.
O doutor Magnus é taxativo:
- Como alguém vai ficar com luz pré-paga? Ele já vive com o orçamento apertado e vai separar uma quantia para a energia pré-paga. De repente o filho fica doente, ele gasta o dinheiro e passa o resto do mês sem luz. O artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor diz que os serviços essenciais devem ser ininterruptos. Com o sistema pré-pago deixará de ser contínuo. As camadas mais empobrecidas ficarão sujeitas à interrupção de um serviço essencial. Tirar esse direito do cidadão é fazer os mais pobres voltarem à época anterior à invenção da eletricidade.
E finaliza
- Não tem o menor cabimento na lei, mas sabemos que tudo está caminhando para isso. As grandes corporações querem chegar no país para explorar, sugar o que puderem. A "classe média" vai continuar tendo sua energia elétrica apertada, mas os mais pobres...
* Aneel, uma das "agências reguladoras" que pululam pelo país. "Criada em 1996 pela Lei n° 9.427, é uma autarquia em regime especial, vinculada ao Ministério de Minas e Energia, e tem como missão proporcionar condições favoráveis para que o mercado de energia elétrica se desenvolva com equilíbrio entre os agentes e em benefício da sociedade". Do sítio Aneel.
** Terceirização - Artifício utilizado pelas grandes corporações para intensificar a exploração do trabalho, agravar o desemprego, as garantias trabalhistas e o rebaixamento de salários, distribuindo responsabilidades entre empresas contratadoras de força de trabalho, graças às desenfreadas contra-reformas na legislação anti-trabalhista nas colônias e semicolônias como o Brasil.