Distribuição desigual de médicos no Brasil
O governo aposta na vinda de estrangeiros, mas a falta de médicos é apenas uma das mazelas do SUS, que sofre com a precariedade dos hospitais.
Quem passa a grade que separa o mundo externo do Hospital Geral Clériston Andrade, em Feira de Santana, no interior da Bahia, sente na pele o caos da saúde pública brasileira. Os corredores são ladeados de doentes em macas e cadeiras, a respirar uma atmosfera pesada de doença e descaso. Não há ventilação ou leitos suficientes. Cinco cirurgiões se revezam para atender como podem os 200 pacientes que adentram o setor de emergência todo dia. São mais de 6 mil atendidos ali todo mês e o hospital é referência para 126 municípios e cerca de 2,5 milhões de pessoas. “É o que chamamos de ambulancioterapia”, ironiza uma médica do Samu. “Não tem estrutura para dar conta, então atendemos na ambulância mesmo. Até cesárea já fiz assim.”
Na “sala vermelha”, como indica a folha de papel na porta, 18 pacientes esperam uma improvável vaga na UTI, a maioria sem monitoramento eletrônico. São homens e mulheres infartados, com derrame, insuficiência renal a disputar no critério da gravidade e na sorte os cinco respiradores (só dois funcionam) e cinco monitores (três ligados). “Aqui é o tudão”, diz um cirurgião sem se identificar, ao abrir a porta da sala ao lado, de traumas, onde dezenas esperam uma triagem que nunca vem. “Chega gente com perna supurada, com tiro, com dor de barriga. Se não sabemos o que é e não temos como diagnosticar, fica aqui.” Dias atrás morreram cinco por falta de sangue, diz. “Semana passada, um por falta de glicose. Não passo um plantão sem assinar ao menos um óbito evitável. Nosso maior problema é falta de estrutura.”
Se na segunda cidade mais populosa da Bahia, com 700 mil habitantes, a saúde é um caos, o que dizer dos ao menos 700 municípios que não dispõem de um único médico, como mostra um levantamento feito pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP)? Não à toa, a falta de médicos nos hospitais públicos é a principal queixa dos usuários do Sistema Único de Saúde, segundo uma pesquisa realizada pelo Ipea em 2011: problema identificado por 58% dos entrevistados. Tema recorrente nas campanhas eleitorais, o impasse levou a FNP a mobilizar uma campanha para cobrar uma solução do Ministério da Saúde, com um abaixo-assinado subscrito por mais de 2,5 mil prefeitos.
Ao anunciar a intenção de contratar médicos estrangeiros para suprir a deficiência, o governo federal recebeu o apoio dos prefeitos, sobretudo dos municípios do interior, com dificuldade de atrair e fixar médicos. “Em Marabá, os médicos recebem remunerações entre 20 mil e 40 mil reais, se somar salário e plantões, e ainda assim temos dificuldade para contratá-los”, afirma o prefeito João Salame Neto. “Temos, sim, graves problemas de infraestrutura. Mas faltam médicos para atender a população.” A medida sofre, porém, resistência das principais associações médicas brasileiras. É inegável o viés corporativista de algumas manifestações de rua, puxadas por jovens com jaleco e nariz de palhaço e a pregar uma “ameaça comunista” com o possível ingresso de médicos cubanos no País. Mas não há como desconsiderar as críticas às precárias condições em hospitais do interior e na periferia das grandes cidades. Qualquer um que visitar o hospital de Feira de Santana saberá que a simples chegada de médicos estrangeiros não mudará a situação caótica.
“Isso aqui é um ‘morredor’ de gente”, diz um dos sete médicos reunidos no intervalo na chamada “sala do conforto”, uma saleta de sofás encardidos repleta de beliches para descanso dos médicos. Ali, entre uma marmita e outra, eles discorrem sua insatisfação e garantem: o Clériston é só um exemplo do caos na gestão da saúde. Ali há doses de Metalyse, remédio para infarto ao custo de 5 mil reais a dose, mas não Isordil, droga para insuficiência cardíaca que custa centavos. A máquina de eletrocardiograma raramente funciona. “Se chegar alguém com fratura exposta à noite, vai ter de esperar o dia seguinte, porque a empresa que fornece o material só funciona até as 5 horas”, diz a cirurgiã. “Adianta trazer 20 médicos estrangeiros? Isso vai resolver a falta de remédio, de equipamento?”
O problema não é a falta de médicos, e sim a distribuição deles pelo território. Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo têm uma proporção de médicos acima das médias de países ricos”, explica Aloísio Tibiriçá, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina. A carência verificada no interior e nas periferias, avalia, deve-se às precárias condições de trabalho, à impossibilidade de atualização profissional, à ausência de um plano de carreira no serviço público, à falta de incentivos para atrair e fixar médicos. “As propostas anunciadas pelo governo são paliativas, midiáticas e demagógicas. Há um consenso de que o SUS padece por conta do subfinanciamento. No mundo desenvolvido, mais de 70% dos recursos para saúde são públicos. No Brasil, são apenas 45%. Só que os planos de saúde atendem apenas um quarto da população.”
De fato, o Brasil investe muito pouco em saúde. Embora o gasto público per capita tenha quadruplicado em dez anos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o valor continua inferior ao de vizinhos da América do Sul, e quase seis vezes menor que o do Reino Unido, cujo sistema universal de saúde é a grande referência dos planejadores do SUS. Em 2011, o Brasil teve uma despesa de 477 dólares por habitante. Uruguai e Argentina gastaram mais de 800 dólares. Com tão baixo investimento, parece pouco provável que qualquer política pública na área tenha efeito significativo, sobretudo quando se leva em conta o atraso social do País.
No Brasil, quase 40% dos domicílios não contam com saneamento adequado, segundo o Censo 2010, do IBGE. Dados do Ministério das Cidades revelam que, em 2009, apenas 44,5% da população estava conectada à rede de esgoto. Dos dejetos coletados, pouco mais de um terço era tratado. Tal descaso tem efeito devastador na saúde. De acordo com o Datasus, em 2009, dos 462 mil pacientes internados por infecções gastrointestinais, 2.101 faleceram no hospital. Com a universalização do acesso ao saneamento, haveria uma redução de 65% na mortalidade. Em outras palavras, 1.277 vidas seriam salvas.
Não por acaso, a OMS estima que, a cada real investido em saneamento, economizam-se 4 reais na saúde pública. “O Brasil nem sequer resolveu o problema do esgotamento sanitário e está preocupado em importar médicos. Sem falar dos hospitais sucateados, da falta deequipes multidisciplinares de apoio, da carência de exames simples, como análise de amostras de sangue ou raio X. Que tipo de medicina pode ser praticado nessas condições?”, indaga o neurologista Rogério Tuma. “Desconsiderando a situação de emergência, na qual vale tudo para salvar uma vida, nenhum médico em sã consciência iria trabalhar de rotina em um local sem condições de exercer uma boa medicina.”
O médico piauiense Rodrigo Cacao e Silva, 30 anos, garante: é o único dos 102 formandos de sua turma que foi para o interior. Os outros ficaram em Salvador ou se espalharam por outros centros repletos de médicos no Sudeste. “Ninguém quer se arriscar. O Ministério Público cai em cima da gente. Se operar e morrer, é erro médico. Se não operar porque não tem estrutura, é omissão de socorro. O que podemos fazer?”
Retrato de como a medicina caminha no País, Silva fez um curioso caminho na geografia baiana. Desde que se formou, em 2007, em Salvador, foi trabalhar no interior para se sustentar, antes de enfrentar uma residência e adquirir uma especialidade. “Nessa idade precisamos do dinheiro, então aceitamos tudo.” Passou por hospitais primários, secundários e terciários, públicos e privados, pelo Samu e por postos de saúde do Programa da Saúde da Família em mais de dez cidades do interior. Diretor do hospital de Araci, era o único médico do lugar. Cuidava de 70 a 120 pacientes por dia, às vezes com 15 internados e até quatro partos num dia. Não havia sequer máquina de raio X. No fim, seu papel era enfiar o paciente numa ambulância até o hospital com estrutura mais próximo, geralmente em Feira de Santana.
A situação descrita por Silva se repete Brasil afora. Há várias cidades do interior com hospitais que são elefantes brancos. Muitos não fazem sequer procedimentos cirúrgicos de emergência, ou mesmo partos. Servem apenas de centrais de distribuição de pacientes para os já superlotados hospitais de referência das grandes cidades. “A gente é obrigado a enfiar na ambulância, no carro de alguém, sei lá, e torcer para o cara chegar vivo. Se não tiver vaga, tenho de ligar para um amigo lá dentro e implorar para ele aceitar o paciente. Senão o cara chega ao hospital, mas morre na porta. É uma loteria.”
O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, reconhece a precariedade dos hospitais da rede pública e afirma que 13 bilhões serão investidos para a construção, reforma e ampliação de unidades de atendimento, assim como na aquisição de equipamentos. “Mas precisamos de mais médicos no País e esses médicos devem estar mais perto da população. Isso exige enfrentamento imediato”, afirma (entrevista à pág. 23). Daí a proposta de convocar médicos estrangeiros para atuar nas periferias e áreas remotas, assim como a tentativa de reestruturação do curso de medicina.
Há anos o cardiologista Adib Jatene defende uma reforma no ensino médico, com uma formação complementar que obrigue o estudante a atuar na rede pública com atenção básica, urgência e emergência. “O problema é o governo ter colocado o pé na porta e imposto essa mudança por medida provisória, sem dialogar com as entidades médicas.” De toda forma, Jatene acredita que a medida pode contribuir para evitar uma distorção do modelo brasileiro: a especialização precoce. “Hoje, um estudante de medicina é, na realidade, um candidato à residência.” Ele sai da faculdade em busca de especialização, diz, antes mesmo de clinicar, aprender a ouvir e acompanhar a evolução da pessoa. “Os médicos mal olham para o paciente. Escutam a queixa e já pede um eletro, uma ressonância, na maioria das vezes sem necessidade. O paciente se sente frustrado. E o custo para o sistema é bem maior.”
Mas Jatene engrossa a crítica à contratação de médicos estrangeiros. “Em 1996, tínhamos 82 faculdades de medicina. Hoje, são 202. O número de formandos passou de 7 mil para 18 mil. Mesmo assim, não se resolveu o problema da distribuição de médicos. Porque não há hospitais com estrutura adequada nessas regiões”, afirma. Jatene cita o caso de São Paulo, onde 25 distritos concentram 1,8 milhão de pessoas e têm mais de 3 leitos por mil habitantes. Na contramão, outros 71 distritos da capital, com mais de 8 milhões de moradores, têm 0,6 leito por habitante. Para suprir a carência de 12 mil leitos, seria preciso construir 60 hospitais com 200 leitos. Foram construídos apenas dois na última década. “E continuam faltando leitos na periferia.”
As entidades médicas também criticam a dispensa de revalidação de diploma do exterior para os estrangeiros que decidirem atuar nas áreas prioritárias do governo. O Revalida foi idealizado pelos ex-ministros José Gomes Temporão (Saúde) e Fernando Haddad (Educação). Mas o rigor do exame, aplicado por 24 universidades públicas, criou impasse para o governo. Apenas dois dos 628 candidatos inscritos para uma prova, realizada em outubro do ano passado, foram aprovados. “Especula-se que o mesmo teste aplicado aos formandos das nossas faculdades resultaria em alto grau de reprovação. Caberia reavaliar se há rigor excessivo em sua formulação”, diz Temporão, diretor do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags), ligado à Unasul. Nos planos do governo, o médico estrangeiro só será dispensado do Revalida caso concorde em atuar em uma região previamente indicada. Caso contrário, argumenta Padilha, não seria possível determinar onde ele vai atuar.
“Não vejo problema de virem estrangeiros para cá, mas todo país exige revalidação do diploma. Nada disso seria necessário se o Brasil soubesse atrair os seus jovens médicos para o interior”, pondera o oncologista Riad Younes, colunista de CartaCapital. Além dos incentivos financeiros, diz, o governo deveria criar um plano de carreira de modo a permitir ao profissional iniciar sua trajetória no interior e progressivamente avançar para especialidades em hospitais de ponta. “Uma boa forma de fazer isso é oferecer bônus para os formandos que toparem ir para as áreas remotas do País numa futura disputa por residência médica.”
Os prefeitos, contudo, queixam-se da falta de médicos nas periferias e no interior mesmo quando a estrutura dos hospitais e as condições de trabalho são boas. “Não tenho a menor dificuldade de preencher as vagas em hospitais do centro. Mas temos um déficit de 215 médicos na periferia de Porto Alegre. E não podem dizer que é por falta de estrutura. Acabei de inaugurar duas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e não consigo preencher as vagas”, afirma o prefeito José Fortunati, presidente da FNP. “Hoje, há municípios que rejeitam recursos federais para a construção de unidades de saúde em razão da dificuldade de contratar médicos. Não querem assumir o risco de inaugurar um hospital e deixá-lo ocioso. A população iria decapitá-lo.”
O oncologista Drauzio Varella, colunista de CartaCapital, reconhece que o perfil elitista dos cursos de medicina tem influência no problema. “Hoje, mais da metade dos estudantes se formam em instituições particulares, com mensalidades entre 4 mil e 7 mil reais. Dificilmente, esse profissional vai cruzar a cidade todos os dias para fazer plantão em hospitais da periferia em razão dos baixos salários, da precariedade da estrutura e até da violência. Não por acaso, há quatro vezes mais médicos na rede privada que no SUS”, afirma. “O Programa Saúde da Família tem um impacto significativo na melhoria das condições de vida nas cidades onde funciona. Mas não devemos criarilusões. É um programa de medicina preventiva, tratamento de doenças simples. Qualquer caso mais grave precisa ser tratado em um hospital com boa estrutura, e isso não existe na maioria das regiões. É demagogia vender a ideia de que mais médicos vão melhorar a saúde pública. O problema é bem mais complexo.”
Inevitável, por isso, rediscutir as formas de financiamento da saúde. Com a Constituição de 1988, o Brasil universalizou o acesso, mas nunca resolveu o impasse do custeio do SUS. Em 2011, o Senado aprovou a regulamentação da Emenda 29, que determina os gastos com saúde nos três níveis de governo, mas a bancada governista evitou que o texto final obrigasse a União a investir 10% de sua receita na área. No momento, a batalha gira em torno dos royalties do petróleo. Inicialmente, o governo defendia a destinação de 100% dos recursos do pré-sal para a educação. Agora, o ministro Aloizio Mercadante já admite outra divisão: 75% para educação e 25% para a saúde. “Na realidade, esse é o nó do problema da saúde no Brasil: temos um direito à saúde constitucionalizado e sucessivos governos que preferem apresentar programas de ocasião em vez de encarar os desafios para implementar um sistema universal de saúde”, critica Ligia Bahia, do Laboratório de Economia da Saúde da UFRJ.
O ex-ministro Temporão aponta outra contradição. “Em 2011, o volume total de subsídios ao mercado privado através de várias isenções e renúncia fiscal foi de 16 bilhões de reais, volume de recursos que deveria estar sendo direcionado ao setor público”, afirma. Sem elevar substancialmente os gastos, avalia, toda e qualquer iniciativa terá impacto limitado no enfrentamento da crise da saúde. “A voz das ruas que exige uma saúde de maior qualidade não será atendida sem a aprovação em definitivo de uma sólida base de sustentação econômico-financeira para o Sistema Único de Saúde.”
Enquanto a discussão sobre como sanar as mazelas do SUS segue no Legislativo e no Executivo, sem prazo para alcançar resultados, a vida e a morte seguem lutando numa dança macabra no interior da Bahia. “O que eu faço para colocar no lugar?”, pergunta um agricultor que adentra a sala de emergências do Hospital Clériston Andrade com a mão enrolada em um pano e um dedo decepado segurado pela outra. Nada, dizem os plantonistas. No hospital não há estrutura. Até que o sistema de regulação do estado conseguisse uma vaga para ele em Salvador, o dedo já era. E o homem deixa a sala, o dedo numa sacola de supermercado. A médica do plantão olha em volta. Há casos mais sérios. “Todos esses 11 pacientes pós-traumáticos são casos sérios. Mas o raio X está quebrado há mais de 24 horas.” Uma mulher em lágrimas se aproxima. “Pelo amor de Deus, eu quero pagar pra minha filha fazer o exame, ela está gemendo de dor”, implorava Marileide Oliveira. A filha sofrera um acidente de moto. Sem raio X para analisar as fraturas, teria de esperar ad aeternum.
Um grito mais alto ganha a sala. É um rapaz em lágrimas. “Ele só está aqui porque eu implorei para o segurança”, diz a viúva Maridalva Lima. Após tentar em dois hospitais lotados, sobrou o Clériston. “Só Jesus na causa.” Os médicos aquiescem. “Esse é um provável caso de perfuração gástrica. Mas sem raio X, sem endoscópio, vai acabar na faca sem sabermos o que ele tem”, diz a médica, medalhinha cristã no pescoço. Outro cirurgião emenda, irritado com a proposta do governo. “Se a dona Dilma Rousseff triplicar o número de médicos não vai adiantar. O que fazer sem sangue, sem raio X, sem condições de atender? Os médicos continuarão sorteando quem vive e quem morre.”
* Publicado originalmente no site Carta Capital.