Por que se matam os filhos?

Recentemente trabalhava um texto sobre a questão do filicídio, de Arnaldo Rascovsky, proeminente psicanalista argentino, membro fundador da Associação Psicanalítica da Argentina e homem que transmite com firmeza suas concepções. Esse texto me fez refletir quanto à presença dos Estados Unidos da América no Iraque, além do que se vive no Brasil com a enormidade de excluídos sociais, excluídos educacionais, os meninos de rua, situações que se tornaram convívios permanentes e não mais problemas a serem tratados com seriedade. 

A questão do filicídio está voltada para o desejo inconsciente da morte do filho ( ou filha ). Há muitas questões que ultrapassam o saber racional, as condutas geradas pelo processo educativo, questões essas que ficam como que no bojo da sociedade, numa região “reprimida” da vida mental das pessoas. Entretanto, isso que se encontra preso, domesticado, pode se apresentar como aquilo que chamamos de sintomas.

Quem não ouviu falar ou já viu nas telas dos cinemas as ameaças de feras primitivas e perigosas, a revolta dos bichos, catástrofes advindas de monstros habitantes de terras estranhas, de regiões intocadas... coisas dessa ordem? Aliás, isso tem trazido um interesse misto de infância, curiosidade e magia, por um lado; por outro, tudo isso faz parte de um certo temor, de uma certa angústia quanto ao “retorno do recalcado”, isto é, um medo quanto à possibilidade daquilo que é sentido como ameaça, venha a irromper no consciente, libertando forças que se encontram razoavelmente amenizadas ou, como diriam alguns, liberando forças de situações “solucionadas”. Logicamente estou me utilizando de uma linguagem alegórica para poder falar daquilo que é realmente vivido em cada indivíduo.

O imaginário social é de extrema riqueza. É muito importante que se acompanhe a sociedade e suas imagens. Quais as fantasias dominantes num determinado momento, quais aquelas que estão marcando uma época? Analisar o imaginário social nos traz importantes noções sobre o movimento da sociedade e, ainda, de acontecimentos pessoais. Aqueles que se interessam pela História, pela Arte, pela Mitologia e também pelas Religiões, teriam grandes vislumbres do encadeamento do que podemos chamar de “economia psíquica”, expressão criada por Freud para designar um importante princípio da mente humana: as relações entre o tolerável e o intolerável, entre o prazer e desprazer. Nosso aparato mental parece requerer alguns princípios de equilíbrio, de trocas entre o fora e o dentro, de trocas internas, enfim, dentro de condições possíveis de manutenção, para que possamos manter a vida íntegra.

Daí todo o trabalho que a vida nos impõe, muitas vezes verdadeiras batalhas internas, que se assemelham com aquelas travadas com vizinhos, entre povos divergentes.

Quem não conhece a figura do herói da Pátria? Normalmente figuras que deram a própria vida em nome da terra amada, em nome de seu país ( ou pais ), sua terra mãe... Aquela conhecida expressão: da terra veio, para a terra voltará . O esperado filho em retorno ao seio materno.

Será que essas expressões se constroem ao acaso, ou mantém um sentido que permanece oculto, mas latente, a mostrar ao ser humano algo que vai além, muito além de toda sua vã sabedoria?

Alguns talvez tenham prestado atenção a algumas recentes notícias, nos jornais, de casos de pais que “esqueceram” os filhos em garagens, dentro de carros, crianças essas incapacitadas de alguma defesa e que acabaram morrendo por asfixia. Quantas famílias têm histórias de descuidos tais como a filha que é deixada sozinha com um padastro, ou mesmo um pai, que se aventura em tê-la como objeto sexual? Ou um remédio que é trocado na hora de ser dado à criança, ou ainda um alimento que deixou de ser saudável mas é servido numa refeição. Muitos são os exemplos de certos “descuidos”, muitos fatais, nas relações entre pais e filhos.

Lembro-me de uma situação em que um pai, ao colocar a filha ainda bebe no banco de trás do carro, deixou que um objeto pesado se mantivesse sobre o bagageiro, na direção da cabeça da criança. Precisei alertá-lo do perigo, o que me retribuiu com um olhar expressivo a uma descoberta. Ocorre que aquele pai vivia um conflito conjugal após o nascimento da filha. É a situações como essa que chamo de “pequenos crimes familiares”. São esquecimentos, atos intempestivos, conselhos que chegam com extremo ar de bondade, cheios de boas intenções, ...mas que trazem uma ambivalência clara de sentimentos.

Foi mesmo necessário às leis divinas determinarem um não matarás . Ora, constatação de uma realidade do homem, o desejo de matar, de destruir, de exterminar o outro. Esse um dos grandes motivos da necessária ação repressora da educação, o que muitas vezes é exercido pelas religiões. Percebe-se que se o homem não passar por um processo evolutivo, se não houver um recalque a essas forças devastadoras, entra-se num verdadeiro caos, o que, na atualidade presenciamos, quando os segmentos incumbidos da educação encontram-se desarticulados. Mas deixemos essa questão para uma outra matéria.

Seguindo a trilha de Rascovsky, podemos ir mais além e tratarmos da questão tão discutida no Iraque, quando o Congresso americano, pelo voto de sua maioria, resolve trazer de volta seus filhos, enquanto que a Casa Branca, na pessoa do “pai” Bush, quer mantê-los na fogueira, em nome de uma honra americana. Aí é que a questão esquenta... Ficam, para nós psicanalistas, indagações instigantes: o que faz com que um homem se torne um guardião da democracia e, para tal, invista a força da juventude de seu país numa luta de contínuos desastres?

Entendemos, como psicanalistas, que nossos atos, nossas transmissões, correspondem às próprias condições de nossos estados internos, de nossos sucessos ou insucessos em “resolvermos” conflitos comuns a todos. O que faz com que aquilo que denominamos de processo cultural desabe e passe a apresentar manifestações que espantam a sociedade?

Enquanto a humanidade caminha de maneira nada retilínea, ora avançando, ora retrocedendo, vai-se percebendo aí que o que chamamos por educação é um contínuo de reconhecimento de passos geração após geração. De alguma forma nossas relações com as gerações passadas precisam estar bem resolvidas, para que se possa crescer e, assim, deixar de ser filho e assumir a função de pai. E aí estamos observando algum grave problema na atualidade. Vive-se, desta forma, em regressão, como uma roda que não consegue ir pra frente e volta sempre a cada movimento. Eis a maneira de instalação do filicídio.

Pais mal sucedidos, mobilizados pelo forte estresse da vida sócio-econômica, revivem conflitos de maneira tal como filhos que foram, tratados de maneira inadequada. Agora, enquanto pais que são, nesse avanço e retrocesso, revivem forças organizadoras e forças desorganizadoras que, na maioria das vezes, resultam em movimentos agressivos, ou seja, as forças regressivas, o ambiente desfavorável, fortalecem a entrada mais ainda no conflito e, a partir daí, um cenário de revolta e de ações condizentes ao aumento da crueldade. O pai torna-se brutalmente cruel. Assume imagens monstruosas, como aquelas vistas nas histórias infantis e em mitos orientais.


Saturno devora seus filhos - Goya

O sacrifício de filhos e de jovens através das civilizações é uma evidência desses atos de crueldade que podem mesmo conduzir toda uma geração ao extermínio. Remontemos aos mitos gregos, no exemplo de Cronos que engolia seus filhos; o mito de Édipo, onde encontramos o desastre da função paterna, tanto no frágil Laio, pai de Édipo, quanto no próprio Édipo, que amaldiçoa seus filhos e os lança em desgraça.

Encontramos na atualidade um dos cenários mais nítidos do filicídio – a guerra. Local para onde são enviados para encontrarem a morte, para se tornarem heróis em nome do pai. É quando nosso entendimento precisa avançar para se perceber o dito no silêncio, o dito através das ações.

Parcelas da humanidade têm servido a senhores tomados pelo horror, verdadeiros Dorian Gray que se revestem de modos cavalheiros, mas que escondem a foice sob o manto da noite.


Retrato de Dorian Gray – Oscar Wilde

O que acontece com o mundo humano, tornando-se cada vez mais envelhecido?

Comentários enviados para Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. 

publicidade
publicidade
Crochelandia

Blogs dos Colunistas

-
Ana
Kaye
Rio de Janeiro
-
Andrei
Bastos
Rio de Janeiro - RJ
-
Carolina
Faria
São Paulo - SP
-
Celso
Lungaretti
São Paulo - SP
-
Cristiane
Visentin

Nova Iorque - USA
-
Daniele
Rodrigues

Macaé - RJ
-
Denise
Dalmacchio
Vila Velha - ES
-
Doroty
Dimolitsas
Sena Madureira - AC
-
Eduardo
Ritter

Porto Alegre - RS
.
Elisio
Peixoto

São Caetano do Sul - SP
.
Francisco
Castro

Barueri - SP
.
Jaqueline
Serávia

Rio das Ostras - RJ
.
Jorge
Hori
São Paulo - SP
.
Jorge
Hessen
Brasília - DF
.
José
Milbs
Macaé - RJ
.
Lourdes
Limeira

João Pessoa - PB
.
Luiz Zatar
Tabajara

Niterói - RJ
.
Marcelo
Sguassabia

Campinas - SP
.
Marta
Peres

Minas Gerais
.
Miriam
Zelikowski

São Paulo - SP
.
Monica
Braga

Macaé - RJ
roney
Roney
Moraes

Cachoeiro - ES
roney
Sandra
Almeida

Cacoal - RO
roney
Soninha
Porto

Cruz Alta - RS