Slavoj Žižek |
(...) Salon entrevistou Žižek pelo Skype. (...)
Salon: Recentemente a revista Foreign Policy incluiu seu nome entre os Pensadores Globais Top 100 de 2012.
Žižek: Sim, mas me puseram no fundo do topo! [1]
Salon: Você é o número 92. Acha que merece estar naquela lista?
Žižek: Ah, não, você não me pega nessa, nem que me torture! Sei que é mais polido dizer que não. Mas... a primeira da lista não é aquela senhora de Myanmar? Sempre esqueço o nome dela. Como é mesmo?
Salon: Aung San Suu Kyi?
Žižek: É, essa! Nada contra ela, mas... explique-me, por favor: em que sentido aquela senhora seria filósofa ou intelectual?
Salon: Bom... É uma lista de “pensadores”, não de “filósofos”.
Žižek: Sim, sim, mas... em que sentido ela seria pensadora? Quer democracia no Myanmar. OK, é ótimo, muito bom. Mas não se pode simplesmente aceitar que um ideal nunca passe de um ideal. Oh, a democracia! Todos têm orgasmos com a democracia. Então, ok, democracia, algum dia, para todo mundo.
Isso não é pensar. O pensamento começa quando você propõe questões realmente difíceis. Por exemplo: o processo democrático decide, realmente, o quê? (...)
Sabe... Na minha vida privada sou sujeito extremamente deprimido. Olhe onde estou agora. Olhe em volta. Estou em Paris.
[Žižek levanta o laptop para mostrar o quarto de hotel, poucos móveis, uma cama simples e uma janela pequena.]
Está vendo? Estou num quarto pequeno. Fugi da minha casa por uma semana, porque precisava sair de lá. Aqui, só saio do quarto uma, às vezes duas vezes por dia, só para comer. Exceto você, agora, e um amigo com quem falo pelo Skype, não troco uma palavra com nenhum ser vivo há quase uma semana. E gosto tanto disso!
Esse, por falar nisso, é o motivo pelo qual acho tão incrivelmente chatos os reality shows; porque as pessoas não são aquilo. Estão mostrando uma imagem delas mesmas, o que é tão insuportavelmente chato, tedioso, estúpido. Não entendo por que tanta gente assiste àquilo. Acho que deve ser proibido. Acho também que Facebook e Twitter também devem ser proibidos. Você não acha? (...)
As únicas fotos que tenho de mim mesmo são as fotos dos documentos, no meu passaporte. Mas, calma! Não significa que eu me despreze completamente. Não. Gosto do meu trabalho publicado. Vivo para aquele trabalho – de fato, vivo para a teoria. Não me envergonho de viver para a teoria. Detesto essa atitude esquerdista humanitária: As pessoas estão com fome! Criancinhas na África! Num mundo desses, quem precisa de teoria? Nada disso! Digo que hoje precisamos muito de teoria inútil, mais do jamais antes na história do mundo.
(...) Quem me conhece sabe que sou pessoa bem organizada. Sou extremamente organizado. Tudo é planejado, até os minutos. Por isso, consigo produzir muito. Digo: em quantidade; não falei de qualidade.
Sou muito bem treinado. Trabalho em qualquer lugar. Aprendi no exército.
Pareço meio atirado, desleixado, eu sei. Porque acho escandaloso comprar calças, camisas, jaquetas, paletós para mim. Minhas camisetas são presentes que ganho de colóquios ou manifestações de que participo. Minhas meias são as que distribuem em voos internacionais. Aqui, então, praticamente esqueço do que visto.
Mas meu apartamento tem de estar limpo; sou maníaco por organização e controle. Por isso, precisamente, fiquei tão desapontado quando prestei serviço militar. Não que eu fosse filósofo trapalhão, incapaz de viver vida disciplinada. O choque foi ver que o velho exército iugoslavo era, sob a aparência de ordem e disciplina, uma sociedade caótica na qual nada dava certo e nada funcionava. Fiquei profundamente, muito profundamente decepcionado com o exército, quando descobri que era tão caótico.
Meu ideal seria viver num monastério.
Salon: (...) Você disse ao Guardian, ano passado [2]: “Sou filósofo, não profeta”. Mesmo assim, seus seguidores são crentes fiéis. Muitos o cultuam como profeta. Por quê?
Žižek: Não sei. Sou ambíguo, quanto a isso. Por um lado, volto a um marxismo mais clássico, do tipo “Isso não pode durar! A loucura é geral! A hora do acerto de contas vai chegar, e blá blá blá”.
Mas também odeio toda essa conversa do politicamente correto, essa merda de estudos culturais e tal e tal. Se alguém me fala de “pós-colonialismo”, respondo “Foda-se o pós-colonialismo!” Pós-colonialismo é invenção de uns riquinhos, na Índia, que perceberam que poderiam fazer carreira nas universidades top do ocidente, jogando com a culpa dos liberais brancos.
Salon: Você então oferece um respiro ao pessoal de 20 e poucos anos, que quer fugir dos frutos do pós-modernismo: o politicamente-correto, estudos de gênero, etc.?
Žižek: Isso, isso! Muito bom! Gostei!
Mas... também há algo de megalomania em mim. Quase me concebo, eu mesmo, como uma figura de Cristo. OK! Me matem! Estou pronto para o sacrifício. Morro, mas a causa permanece! Mais ou menos isso...
Mas, paradoxalmente, detesto aparições públicas. Por isso, precisamente, deixei quase completamente de dar aulas. Para mim, nada pode ser pior que o contato com estudantes. Gosto de universidades sem alunos. E odeio, muito especialmente, os alunos norte-americanos. Eles acham que você lhes deve alguma coisa. Cercam você... Só trabalho no horário obrigatório!
Sim, sim, nisso sou completamente europeu – especificamente: sou pela tradição autoritária alemã. A Inglaterra já está corrompida. Na Inglaterra, os alunos pensam que podem parar você na rua e perguntar qualquer coisa. Acho isso repulsivo.
Mas em outros aspectos... admiro muito os EUA e o Canadá. Hoje, em vários sentidos, são melhores que a Europa. A França e a Alemanha, por exemplo, estão hoje em situação muito baixa, intelectualmente – a Alemanha, sobretudo. Absolutamente nada acontece de interessante, na Alemanha. Os EUA e o Canadá, surpreendentemente, estão intelectualmente vivos. Dou-lhe um exemplo: estudos hegelianos. Europeu que queira entender Hegel, tem de ir para Toronto, Chicago ou Pittsburgh.
Salon: O que Hegel diria da popularidade do filósofo Žižek?
Žižek: Não seria problema, para ele. Hegel até escreveu – acho que no fim da Fenomenologia – que se, como filósofo, você realmente articula o espírito do tempo, o resultado é popularidade ... mesmo que as pessoas não entendam tudo o que você diz. As pessoas de algum modo sentem que o espírito do tempo foi articulado... Essa é uma bela questão dialética: como é que as pessoas sentem isso?
Salon: Quando você escreve os livros de popularização, dos quais diz que não gosta [3] quem você imagina que seja seu leitor?
Žižek: Não, não! Pergunta proibida! Jamais me pergunto tal coisa. Pouco me importa! Outra proibição absoluta é que jamais me autoanaliso. A ideia de me autopsicanalisar é repugnante. Nisso, sou uma espécie de pessimista católico conservador. Acho que, se olhamos muito fundo dentro de nós mesmo, descobrimos montes de merda. Melhor não saber. (...)
Odeio jornalistas e documentaristas, gente que faz filmes da minha vida. Acho que há alguma coisa de obsceno nos filmes que fizeram sobre mim. Claro, claro... Aí, você me pegou: se eu fosse realmente indiferente àqueles filmes, porque mentiria como sempre minto, quando filmam a minha vida? É. Aí há um problema.... (...)
Falando de amor e sobre a vida das pessoas, há um livro que eu realmente detesto: Against Love [Contra o Amor], de Laura Kipnis. [4] A ideia dela é que a última defesa da ordem burguesa é “Nada de sexo fora do amor”. É aquela conversa de Judith Butler: reconstrução, identidade e blá, blá, blá...
Digo que é exatamente o contrário disso. Hoje, os envolvimentos de amor são considerados quase patológicos! Acho que há algo subversivo em declarar: esse é o homem ou a mulher no qual aposto tudo. Por isso, nunca fui capaz de transas de uma noite. Sempre preciso de uma perspectiva de eternidade.
Salon: Você parece usar a filósofa feminista Judith Butler como uma espécie de antítese. Já a mencionou várias vezes. É como um espantalho, para você?
Žižek: É. Mas pessoalmente somos grandes amigos. Judith, uma vez, me disse “Slavoj, você deve me achar bem mesquinha.” Respondi: “De jeito nenhum! Alguém que goste tanto de Hegel, como você, não pode ser completamente idiota”.
Salon: Com que figuras históricas você se identifica?
Žižek: Robespierre. Um pouco, talvez, com Lênin.
Salon: Lênin? Trotsky não?
Žižek: Em 1918-19, Trotsky era mais duro que Stálin. E gosto dessa dureza, nele. Mas jamais o perdoarei por ter fodido tudo em meados dos anos 20s. Foi estúpido, arrogante. Sabe o que ele fazia? Chegava às reuniões do Partido com clássicos franceses debaixo do braço, Flaubert, Stendhal... Como se dissesse aos outros: “Fodam-se! Eu sou civilizado”.
Salon: Você escreve que temos de pensar mais e agir menos. Mas, no fim, identifica-se com Lênin, conhecido homem de ação.
Žižek: Não, não é bem assim! Calma. Lênin é sempre o cara certo. Quando tudo deu errado em 1914, o que fez Lênin? Mudou-se para a Suíça e começou a estudar Hegel.
Recadinho da Vila Vudu: Excluímos, nessa tradução, além das opiniões da jornalista entrevistadora que a ninguém aqui interessaram, também outros parágrafos, em que a jornalista entrevistadora dedica-se empenhadamente em tentar fazer seu entrevistado – muitíssimo maior e mais interessante que a jornalista entrevistadora – caber, a qualquer custo, nos limites estreitíssimos das perguntas. Nós aqui DESTESTAMOS jornalistas. Há algo de obscenamente pervertido no jornalismo empresarial-comercial. É a perversão obscena que há no jornalismo empresarial-comercial, que o faz ser, ao mesmo tempo, tão furiosamente defendido pelos liberais perversos e tão furiosamente detestado pelos comunistas. Antes de construirmos o mundo dos muitos, teremos de dar cabo de todo o jornalismo empresarial-comercial: da imprensa-empresa e dos jornalistas formados pela e para a imprensa-empresa.
Notas dos tradutores
[1] A lista está em: “2012's Global Marketplace of Ideas and the Thinkers Who Make Them”. A seleção dos “pensadores” é ridícula: Paul Ryan, que jamais pensou coisa alguma, aparece em 8º lugar; o governo de Israel lá aparece, nos postos 12º a 15º (ministro da Defesa, primeiro-ministro, ex-diretores do serviço secreto); Mario Draghi, Christine Lagarde, também são “pensadores” listados; Dick Cheney (aliás, dois ‘'pensadores'’ da mesma família, marido & mulher); 88º é Habermas.
[2] 15/7/2012, The Guardian, Stuart Jeffries em: “A life in writing: Slavoj Žižek”
[3] ZIZEK, Slavoj, 2011. “O ano em que sonhamos perigosamente”. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.
[4] A revista (não)VEJA, ao que parece, adorou o livro. Deu-lhe ampla cobertura ainda no pré-lançamento da edição brasileira, em maio de 2004. Está em: Entrevista: Laura Kipnis - Contra o amor
29/12/2012, Slavoj Žižek, Salon [entrevista a Katie Engelhart] (excertos)
“Slavoj Zizek: I am not the world’s hippest philosopher!”
Traduzida pelo pessoal da Vila Vudu
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/12/slavoj-zizek-nunca-precisamos-tanto.html