Família indígena entra na Justiça contra pulverizações em plantações de tomate que levaram à morte um menino de 4 anos e deixaram menina de 5 anos em coma
O modelo que nos envenena está perante o tribunal: em novembro de 2016 começou o julgamento da morte de um menino de 4 anos e uma menina de 5 anos que esteve em coma e segue fazendo tratamento. O caso é apenas uma ponta do iceberg que une a pulverização de agrotóxicos e o inferno que representa a produção de tomate em Lavalle, na província de Corrientes, na Argentina. No banco dos réus está sentado um fazendeiro acusado de homicídio culposo e outras lesões. Esta reportagem da MU, publicada em novembro de 2012, conta a história sobre o caso: uma indústria sem fiscalização estatal que debruça sua ganância sobre os ombros do trabalho infantil, clandestino, que usa venenos letais e produz 22% dos tomates que chegam ao principal mercado portenho, o Mercado Central.
Francisco deixa pedacinhos de comida pelos cantos porque diz que Kili, seu irmãozinho, tem fome e não há comida no lugar onde está.
Sua mãe está descansando, esgotada, porque durante toda a noite perambulou pela fazenda perseguindo entre as sombras os gritos de socorro de Kili, seu filho morto.
Seu pai, Agustín, cobre o rosto com as mãos: chora, treme e soluça.
José Primitivo Rivero, o chefe da família, pronuncia a única palavra capaz de descrever o que está passando neste belo local de Pareje Puerto Viejo: Angá.
Don Rivero fala a língua de meus ancestrais e por isso sei que está nos alertando sobre algo grande e muito mau, que se manifesta por aqui, mas vai além.
Está falando de algo que nos coloca à prova: não mais sorte nem casualidade, apenas consequências.
E, ainda que sejamos covardes, ainda que tenhamos medo e saibamos que vamos perder, não será sem luta.
Não é algo que podemos escolher porque não há opção.
Angá é a morte alimentando-se da vida. Angá, em guarani, é o Diabo.
TUDO POR DOIS PESOS
O Rio Paraná era o principal produtor da vida em Lavalle até a chegada de outras formas de produção que foram convertendo esse paraíso natural no atual inferno Puerto Viejo está do lado de Lavalle e por isso há famílias ali que vivem nessas duas dimensões: construir suas casas com o barro do rio, alimentando-se de pesca e da bondade da terra fértil, e recebendo planos sociais ou trabalho informal nas plantações de tomate: 2 pesos por caixa.
São 4 da tarde quando começa o desfile dos trabalhadores até os viveiros cobertos com plástico que protegem os tomates produzidos pela meia dúzia de proprietários que se instalaram em Puerto Viejo, atraídos pelo solo fértil, pelo fácil acesso à água e pela falta de fiscalização. O prefeito, Hugo Perrotta, é dono de uma dessas plantações de tomate, me contam os vizinhos, enquanto vemos passar a fila de trabalhadores. Crianças descalças carregam sobre suas cabeças, para se proteger do sol, as cestas de tomates, durante 8 horas, sob o torpor dos toldos de plástico, manipulando sem luva uma colheita pulverizada com veneno.
Essas crianças fazem parte da indústria que produz, nestas condições, 22% dos tomates vendidos no Mercado Central de Buenos Aires e, de lá, distribuídas para todo o país.
DIAGNÓSTICOS
Gladys me diz que foram os gritos de socorro de seu filho Nicolás que os trouxeram até sua casa e por isso nos recebe com alegria. Mas Gladys não sorri e fala tão baixo que é preciso sentar ao seu lado para escutar o relato sobre como morreu seu filho de 4 anos. Foi no fim de março de 2011. “Amanheceu vomitando. Levei-o para o pronto socorro em Lavalle. Ali, a doutora Patricia Vitón aplicou uma injeção e nos mandou de volta. Melhorou um pouco. À tarde foi brincar com sua prima Celeste e os dois voltaram com vômitos. Choravam e choravam. Levamos eles, então, ao hospital de Santa Lucía e nos disseram que não tinham nada. Mas seguiram chorando e vomitando. Então fomos a Goya. Meu filho já estava muito mal. Transferiram-no para Corrientes. Ali ele morreu. Quando a enfermeira me entregou seu corpo me disse que foi morto pelos pés de tomate, por causa do veneno”.
Assim sintetiza Gladys seu calvário: percorrer dois quilômetros para o pronto socorro, dez para Santa Lucía e dezessete, em seguida, até Goya. Mais os 300 quilômetros até a capital correntina para procurar, em cinco hospitais, um diagnóstico que a autópsia acabou de obter.
Antes e depois, os médicos diagnosticaram erroneamente. “A doutora Vitón me disse que eu era culpada por dar a meu filho um chá de yuyo”, diz a mãe de Margarita, Celeste, a menina de 5 anos que foi brincar com Nicólas naquela tarde e voltou com ele vomitando. Celeste fez o mesmo percurso sanitário, mas conseguiu chegar a tempo para transferir de avião ao Hospital Garrahan, em Buenos Aires, onde foi ligada em uma máquina que filtrou seu sangue. “Chegou com um pedido de transplante porque tinha um figado contaminado e, quando começaram a filtrá-lo, recuperou a função hepática. Aí se viu que estava envenenada”, conta Margarita.
Os médicos disseram que a origem do veneno podia ser a acácia, uma planta silvestre que floresce na zona de Puerto Viejo e, por isso, Margarita esperou que sua filha melhorasse para regressar a sua casa, cortar um pedaço da planta e voltar ao Hospital Garraham, para que a analisassem. Agora me mostra um papel assinado pela doutora afirmando que a planta não tem veneno e nem é perigosa para a ingestão humana. “Eu já sabia, porque minha mãe a tomava no chá, mas se vê que os doutores de Buenos Aires são ignorantes sobre as coisas naturais”, diz a mãe de Celeste.
Essa ignorância inclui o mais óbvio: a casa de Nicolás e Celeste estão ao lado de uma plantação de tomate. Apenas 30 metros separam a fila de toldos de plástico onde se pulveriza o tomate do rancho de madeira onde cresceram as crianças envenenadas. “Aqui todos sabemos que eles usam venenos muito fortes que não deixam respirar”, conta Gladys, a mãe de Nicolás.
Essa ignorância inclui, sobretudo, outras intervenções médicas que deram um valor paradigmático a este caso: o doutor do Hospital de Santa Lucía emitiu um comunicado, difundido pela rádio local, informando que a família Arévalo havia sido afetada por uma hepatite fulminante, e por isso recomendava à população tomar os cuidados necessários para esses casos. “Foi de propósito, para que ninguém se aproximasse de nós”, diagnostica Josefina Arévalo, tia de Celeste e Nicolás, e uma das princesas guarani que deram a esta história outro final que não o cientificamente esperado. “Pensavam que nos íamos ficar calados, resignados, mas nós somos lutadores. Eles pensam que é por dinheiro, ou porque somos indígenas, ou porque não sabemos nada. É certo: somos pobres, mas não vamos nos render se matam nossos filhos. E isso é o que eles não entendem, porque a única coisa que pensam é no dinheiro”.
O ASSASSINO
Josefina conta que no dia do enterro de Nicolás aproximou-se de um vereador no cemitério, primo do dono da fazenda. Encarou-o e perguntou: “Vai, pergunta para ele qual veneno ele usou, porque Nicolás já está morto, mas Celeste está em coma e ainda podemos salvá-la”. O vereador entrou em contato mais tarde com ela e disse que perguntou para seu primo qual agrotóxico usava: “Ele disse que usou o cromo, mas até para o primo mente essa gente”.
A verdade foi revelada recentemente, em 12 de setembro, quando o juiz de instrução Carlos Balestra indiciou o fazendeiro Ricardo Nicolás Prieto por homicídio culposo, com agravante, de Nicolás Arévalo e por lesões culposas em Celeste Abigail Estévez. Confirmou assim o que a família já sabia: Nicólas morreu e Celeste esteve em coma por causa da fazenda que, a apenas 30 metros da casa das crianças, pulveriza os tomates com um veneno letal: endosulfan.
Em sua sentença, o juiz registrou o que a autópsia revelou: Nicólas foi morto por inalação. Ele respirou veneno, como todos os vizinhos das plantações de tomate de Puerto Viejo.
O ESTOQUE OU A VIDA
“O endosulfan é um pesticida que a Senasa (Servicio Nacional de Sanidad y Calidad Agroalimentaria) proibiu em 1º de julho, logo após uma consulta pública onde escutamos os argumentos de organizações e assembleias ambientais, o defensor do Pueblo de la Nación e recomendações de organismos internacionais, entre outros que denunciaram os perigos do endosulfan à vida humana. O mais letal é seu poder residual: seus efeitos venenosos duram entre 60 e 800 dias. Ou seja, permanecem onde se aplica: água, terra e cultivos. Comer em até 60 dias um tomate pulverizado com endosulfan implica em tragá-lo.
Segundo dados da Câmara de Saúde Agropecuária e Fertilizantes, em 1999 utilizou-se na Argentina 1,9 milhão de litros de endosulfan. Em 2008 a cifra dobrou para 4,2 milhões de litros. Este ano, apesar da proibição, se calcula que seu uso tenha triplicado. Por quê? Por dois motivos importantes:
1) Seu uso não é ilegal. A Senasa proibiu este ano sua importação, mas a proibição de uso entrou em vigência em abril de 2013. Como haviam importado muito, a proibição começará apenas quando se esgotar o estoque, de acordo com os cálculos das autoridades sanitárias.
2) Este anuncio baixou o preço e o converteu no veneno agropecuário mais popular.
O mercado é Angá.
PERDAS
A família Arévalo tem um avô e 11 filhos. A morte de Nicolás e a doença de Celeste os dividiu pela primeira vez: apenas quatro irmãos levaram adiante a reclamação à Justiça. O resto teve de pagar o preço do silêncio para conservar o emprego nas fazendas de tomates. Outra coisa que perderam os Arévalo neste trajeto foi a comida da assistência que sustenta Josefina e que alimenta 70 crianças no bairro. Agora só recebe leite três vezes por semana, às cinco da tarde, sob o quiosque que está a meia quadra das plantações de tomates que seguem pulverizando veneno. “Você percebe pelo cheiro, que é fortíssimo e não deixa a gente respirar”.
A última perda da família Arévalo foi o trabalho temporário que Josefina havia conseguido numa fazenda de tomates: demitiram-na um dia após nos receberem. E exatamente por isso.
QUE SUMAM DAQUI
O juiz Carlos Balestra notificou ao Departamento de Saúde de Plantas e Fiscalização Agrícola o resultado de sua investigação: “A morte do menor foi causada por intoxicação do pesticida alfa endolsufan”. A notificação leva a data de 17 de maio e solicita que o órgão correspondente se informe a respeito. Ou seja, o juiz determinou que se faça algo.
– O quê?
Responde Josefina: “Que os tirem do lado de nossas casas. Há 15 anos, ali havia uma rua, mas eles avançaram e colocaram os toldos ali mesmo. Depois da morte de Nicolás entramos em contato com as pessoas do bairro Ituzaingo, em Córdoba. Vieram médicos que trabalharam com eles. Explicaram-nos que há leis que determinam que não se pode pulverizar plantações tão próximo das casas. É isso que queremos. Mas aqui é o contrário: querem que a gente se vá, nós que nascemos aqui e chegamos antes”.
CUSTOS
O médico cordobês que os visitou é o doutor Medardo Ávila Vázquez, pediatra, neonatólogo e integrante da Rede de Médicos de Povos Atingidos por Pesticidas. Esteve em Puerto Viejo durante o fim de semana e se ofereceu para coordenar uma pesquisa sanitária. Dois dias depois saiu a decisão que condenou o fazendeiro. “Para mim ele nos ajudou porque viram que não estávamos sozinhos”, suspeita Josefina.
A conversa da família com o doutor Ávila Vázquez foi na igreja de Lavalle, conduzida pelo padre Rodolfo Barboza. O bispo de Corrientes o substituiu dias depois, a pedido do prefeito, apesar deste ter negado a determinação, em uma carta publicada nos jornais locais. Josefina: “O padre Barboza foi a pessoa com mais poder que nos apoiou e é por isso que estão fazendo ele e nós pagarmos por isso”.
O outro apoio chegou pelo contrapoder local: a freira Martha Pelloni. “Uma noite chegaram em nossa casa a secretária e o advogado da fundação da irmã Pelloni. Falaram com todos nós, que estávamos mortos de medo e desconfiados. Falaram também com Gladys, que não conseguia se levantar porque havia acabado de enterrar seu filho. Disseram-lhe: “Te damos dois dias para chorar, mas depois tem que lutar por seu filho, por seus outros filhos e por todos os outros”. No dia seguinte Gladys se levantou e foi ao escritório do advogado. Depois vieram os meninos dos Guardiães de Ibera. Eles nos ajudaram muito, nos explicaram o tema dos agrotóxicos e nos deram forças em momentos difíceis. Um ano após a morte de Nicolás já estávamos muito organizados. Fizemos uma manifestação desde nossas casas até a prefeitura. Éramos 40. Os vizinhos nos olhavam feio. Ninguém queria conversar, nem nos receber. Mas fazer a marcha nos deixou contentes e animados. Estávamos assim, fortes e decididos, quando soubemos da morte do menino Rivero. Como podia acontecer isso? Não era para evitarmos que mais nenhuma criança morresse? Agora, quando soubemos a decisão sobre a morte de Nicolás, pudemos recuperar um pouco deste golpe tremendo”.
PESADELOS
José Carlos Rivero, a quem todos chamam Kili, também tinha 4 anos quando morreu, em 12 de maio, no Hospital Garraham, em consequência de envenenamento. Seu irmão Lautaro deixou pedaços de bolacha para ele. Sua mãe o procura à noite, porque ainda o escuta gritando por socorro. E é ele, conta seu pai quando para de chorar, que o delegado de Lavalle vê quando acorda suando daqueles pesadelos. “Percebe-se que ele tem a consciência pesada, porque vinha com o seu chefe quando foram extraídas amostras da terra para ver se havia vestígios de veneno. Depois disseram que não encontraram nada nos exames, mas eu tenho o vídeo que fiz no dia em que os porcos, as galinhas e os cachorros morreram por causa da água que haviam tomado.”
A família de Kili vivia então ao lado da plantação de tomate de Oscar Antonio Candussi, presidente da Associação Horticultora de Lavalle. “Tudo começou ali, primeiro com os animais, depois com meu filho. Estava pálido, não queria comer. Reclamei na chácara, porque estavam jogando a água dos tomates em minha casa com uma mangueira, mas não me deram ouvidos. Decidi então vir para a casa dos meus pais, mas já era tarde. Kili começou com os vômitos. Levei-o para Lavalle e o médico me disse que era broncoespasmo. Mas logo o vômito já tinha sangue e então fui a Santa Lúcia, onde lhe deram uma injeção. Disseram que isso resolveria. Nem havíamos chegado em casa quando o vômito recomeçou. Fomos a Goya e ali disseram algo que nunca lhes vou perdoar: que eu usava drogas e deixei-as ao alcance do meu filho, por isso é que ele estava assim. Foi transferido para Corrientes numa ambulância que tinha tubo de oxigênio, mas não tinha máscara. No transporte a veia arrebentou. Não conseguiam fazê-lo voltar a si. Deus quis lhe dar um empurrãozinho e conseguiram, e então o levaram para Buenos Aires. Os médicos do Garraham foram sinceros. Disseram que tinham poucas esperanças, porque medicavam uma coisa e lhe atacava outra. Por último foi seu pequeno cérebro. Ai me partiram pela metade. O que mais me doeu é que o chefe de polícia, que tem uma plantação de tomates, disse que eu tinha os químicos que intoxicaram meus filhos. “Pois venham e revistem tudo! Aqui não há nada, porque trabalho só com produtos orgânicos.”
Logo após a morte de Kili, e pela primeira vez nesse tipo de caso, uma enfemeira do Hospital Garraham deu declarações à midia de Corrientes. Pelo rádio, Mercedes Méndez perguntou: “Que responsabilidade cabe a nós, profissionais de saúde, em denunciar essas coisas que testemunhamos? É ético continuar olhando para o outro lado, quando estão envenenando as pessoas, impunemente? Não devemos pensar em fazer alguma coisa?” As palavras da enfermeira foram apoiadas pela Comissão Interna de Ética desse hospital.
UM MANUAL
Madre Martha Pelloni me contou que no dia do velório de Kili encontrou esse pai abraçado ao caixão, chorando como agora. Quando conseguiram fazer com que saísse dali, a irmã se deu conta de que sobre o caixão havia um livro. Pensou que fosse a Bíblia, mas ao se aproximar viu que o título, em letras vermelhas na capa dura, era “Manual de Agricultura Orgânica”.
Pergunto agora ao pai de Kili se enterrou seu filho com aquele manual. Ele diz que a irmã Pelloni pegou-o do caixão e lhe entregou: “São vocês que precisam disso, não ele. É o que vai te dar força”. O pai de Kili fica ali, olhando a terra seca. E continua: “Estudei esse livro inteiro. E o segui durante toda a minha vida. Foi a escola que não tive e estava orgulhoso, lendo e praticando… É justo que meu filho seja morto por agrotóxicos?”
O INVISÍVEL AOS OLHOS
Don Rivero, avô de Kili, que vai completar 62 anos, 48 dos quais vividos em Puerto Viejo, diz que não foi Deus que levou seu neto, que foi um homem. Ele não tem medo, apesar das ameaças. “Sei que somos discriminados, porque não temos dinheiro, porque somos gente pobre e humilde que vive do dia a dia, mas vai chegar o dia em que essa pessoa terá de ir à justiça dizer: sou culpado. E vai chegar porque vamos lutar para que chegue. Não tenho armas, mas tenho uma língua para defender-me, e tenho olhos. Enxergo à minha volta. Vejo que há asma num povoado onde ninguém nem sabia o que era asma. Vejo as crianças com lábio leporino. Vejo as criaturas que nascem deformadas. Vejo as crianças que não se desenvolvem, que têm 14 anos e parecem ter 6. Pergunto aos médicos, o que é isso? E eles dizem que não sabem. Como, não sabem? Todos sabemos que eles usam drogas fortíssimas, que matam todas as pragas. E que os trabalhadores das plantações de tomate desmaiam depois de fumigar três ou quatro canteiros.”
Quem são os responsáveis?, pergunto, ingenuamente. Don Rivero responde como se falasse a uma criança: “Senhora, aqui não há responsáveis. Aqui manda o poder do dinheiro. Sei o que você pensa: “Que lindo seria se viesse uma pessoa de confiança e dissesse: como podemos controlar as drogas fortes?” E está certo que pense assim, está muito bem, porque é fácil, é fácil, claro que é fácil (diz assim, três vezes e enfaticamente), e sim, pode-se ter controle, como não. Por certo há drogas menos perigosas para as pessoas, para quem compra o tomate, para quem trabalha no tomate, para quem é vizinho do tomate. Mas sabe o que acontece? Sabe qual é o problema? São dois. Quem nos vai apoiar? Quem vai controlá-los?”
FAZER JUSTIÇA
O advogado Julián Segovia, integrante da Fundação Infância Roubada, criada pela irmã Martha Pelloni, logo que chegou a Corrientes foi encarregado de buscar justiça para Nicolás, para Celeste e, agora, para Kili. Encargo difícil, neste último caso: no Hospital Garraham fizeram uma autópsia, mas não por ordem judicial. Definiu-se, assim, que Kili morreu intoxicado, mas nunca se pesquisou a substância que o envenenou. “Só temos um exame de urina que fizeram no hosital de Goya, no qual consta que foi encontrada uma substância clorada, e isso é compatível com o tipo de agrotóxico usado nas plantações de tomate. Agora enviamos ao Corpo Médico Forense de Corrientes todos os estudos, relatórios clínicos e exames que foram feitos com ele em cada uma das unidades de saúde em que esteve, solicitando um informe para ver se é possível estabelecer assim o que provocou sua morte. Mas até o momento a justiça não mandou investigar nada.”
No caso de Nicolás não foi fácil, tampouco. “Solicitamos que tomassem medidas, oferecemos testemunhos, tivemos brigas, sempre sem apoio, porque nos enviaram um fiscal frio, que não se envolveu. Mas os exames foram definitivos: a autópsia, as análises de laboratório, as amostras de tomate, do barro, da flora, que foram feitas com material de dentro e de fora da chácara. Em todos apareceu o mesmo veneno: endosulfan”.
O advogado conta que o endosulfan pode ser comprado fracionado, mas não em qualquer lugar. Um dos seus varejistas é o Instituto Provincial de Tabaco. “Em outros tempos esse foi o cultivo típico desta região, mas atualmente as pessoas só trabalham com tabaco para obter um benefício social, facilitado pelo Instituto. Essa é hoje uma produção altamente tóxica, em que se usam produtos muito fortes e letais, e todo mundo sabe e se esquiva. Não fossem os benefícios dados pelo Instituto, não sei se alguém trabalharia com ela. Outro dia me contava um rapaz que trabalha no depósito do Instituto, onde os agroquímicos são armazenados, que eles são comprados em tambores de 200 litros. E os produtores vêm com bombonas ou garrafas de refrigerante vazias para levá-los. Entende o que digo?”
O que não entendo é qual o papel do Estado em tudo isso…
Aí é que está: o Estado não se preocupa, nem controla…
E tolera a exploração infantil…
… e feminina e negra. Outro dia o engenheiro Juan Sablis, encarregado do Inta (Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária) de Goya, me dizia que a horticultura só é viável nesta região graças à mão de obra negra, porque se tivessem de registrar todos os trabalhadores, como Deus manda, não seria rentável. Com isso estou dizendo tudo: estamos falando de crianças e mulheres que se expõem sem proteção alguma ao perigo de trabalhar com esses agrotóxicos.
Qual é o benefício de produzir algo nessas condições?
O do produtor. O benefício econômico hoje é bem alto, porque uma caixa de tomates está custando 100 pesos [R$ 21,85] e em cada uma dessas coberturas plásticas, que têm 25×7 metros, é possível conseguir 200 caixas. Há duas colheitas por ano, então calcule. É uma produção altamente rentável, porque se evadem de tudo: do fisco, da lei, dos controles. O perigo é que o tomate produzido assim vai para o Mercado Central sem respeitar sequer o poder residual do inseticida: é colhido pela manhã e à tarde já segue para Buenos Aires. E não basta colocar 3 gotinhas de água sanitária na água, porque esses produtos são clorados e não somem nem se desintegram com isso.
Você acredita que o produtor local é tão poderoso assim, para conseguir esse nível de impunidade?
Não, aqui não se está encobrindo tudo porque o produtor é poderoso. Aqui o que se está encobrindo é que o Ministério da Produção de Corrientes não reconhece que o menino Arévalo morreu por intoxicação, como lhe foi informado por escrito pelo juiz. E se ele se faz de distraído é porque existe a possibilidade de que, diante de algo assim, ele tenha de determinar que os tomates de Lavalle não sejam mais enviados a Buenos Aires até que seja feito o devido controle de sua produção. E isso não seria rentável.
CONFISSÃO
Um informe do Ministério da Economia chegou à mesma conclusão, em dezembro de 2010. Dois engenheiros agrônomos, Hernán Palau e Mariano Lechardoy, e um bacharel, Facundo Neyra, assinam a análise detalhada que fizeram da produção de tomates de Lavalle. Ali, entre outras coisas graves, afirmam:
“Existem casos (muito poucos) de uso de agroquímicos não permitidos ou doses não recomendadas (mais comum), não apenas quanto à dose em si, mas quanto às repetições e ao respeito pelos períodos de carência”.
“No que diz respeito à legislação trabalhista, uma parte importante da mão de obra utilizada no setor não se encontra devidamente registrada. Sendo essa uma atividade de uso de mão de obra intensiva, o produtor afirma que é inviável cumprir as obrigações patronais”.
“Os locais de embalagem devem cumprir os requisitos de condições higiênico-sanitárias e de boas práticas estabelecidas pela Direção de Qualidade Agroalimentar dependente do Senasa (Serviço Nacional de Saúde e Qualidade Agroalimentar). Na região, a maioria dos galpões de empacotamento não têm a habilitação correspondente e, portanto, não contam com boas práticas. Esta é uma debilidade institucional do setor, já que não existe na região escritório do Senasa voltado à horticultura”.
Nem as mortes de Nicolás e de Kili, nem a agonia de Celeste, nem nada das evidências e do muito que aconteceu em Paraje Puerto Viejo conseguiu, até agora, mover um centímetro neste posto do inferno em Corrientes.
Essa impunidade imutável é que deu origem a tudo isso. Assim, podemos ver Brunito com os olhos fechados, braços cruzados, o tomate que fecha sua boca, como foi amorosamente retratado por sua mãe, Julieta – testemunha e companheira dessa viagem – e Mónica, outra de nossas amigas fotógrafas.
Essa é a imagem que nos perseguiu na insônia do regresso ao computador.
Soubemos assim que, para nós, essa viagem não foi, não é, nunca será uma matéria escrita num papel nem esta capa apenas uma foto, mas um grito.
Angá.
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