As amazonas norte-americanas na ONU têm o hábito de falar grosso. Jean (ações do Conselho de Segurança não passam de “caretas”) Kirkpatrick e Madeleine (“valeu a pena” o preço de 500 mil crianças mortas no Iraque) Albright, quando falam, são como soco no plexo. E agora temos a mais recente rainha-guerreira Boudicea de Obama, Susan Rice, a esmurrar outra vez a ONU, velha nêmese de George W. Bush.
Onde Bush ameaçou a ONU com a irrelevância da velha Liga das Nações – sem se dar conta de que os EUA fragilizaram fatalmente a Liga, quando se recusaram a associar-se – temos hoje Rice a condenar a inação do Conselho de Segurança, que não age contra a Síria, como “uma desgraça estratégica e moral”, sem considerar que foi Franklin D. Roosevelt, presidente Democrata, quem insistiu em criar os poderes de veto dentro do Conselho de Segurança, na grande conferência dos aliados da 2ª Guerra Mundial, em Yalta.
O burro “ONU” é alimentado com poucas cenouras e espancado com muitos porretes. Agora, se está estabelecendo o hábito de explicar a inerente fragilidade do bicho, falando mal do veto – que dá a cada um dos membros poder para destruir qualquer proposta dos demais. Assim aconteceu que o veto russo contra a ação militar dos EUA e da União Europeia na Síria transformou o poder de vetar em invenção “dos russos”.
Claro que a Sra. Rice apaga da história os 41 vetos dos EUA no Conselho de Segurança para “proteger” Israel e permitir que continue a ocupar e roubar terra e colonizar a Cisjordânia palestina, nem vê neles qualquer desgraça moral e estratégica. Nada disso. A questão agora é a Síria – e aqueles malditos russos, culpados de tudo.
Já há alguns anos, em Beirute, encontrei uma edição de segunda mão, de 1950, já bem gasta, do livro de Robert E. Sherwood, Roosevelt and Hopkins: an intimate history e – hoje, o tenho já encadernado em couro pelo meu encadernador libanês favorito – devorei-o numa noite, numa sentada. Que grande livro!
Sherwood, que escrevia os discursos do presidente Roosevelt na 2ª Guerra Mundial, usou os documentos particulares de Harry Hopkins, principal conselheiro diplomático de Roosevelt, para escrever o que continua a ser o melhor relato da reunião dos Três Grandes, em Yalta, quando Roosevelt, Churchill e Stálin reuniram-se para decidir o futuro do mundo do pós-guerra.
Hoje se pensa em Yalta como a liquidação da independência da Polônia, entregue a Stálin (Churchill já selara esse negócio vergonhoso, antes, em Moscou), mas em janeiro de 1945, os exércitos de Hitler ainda lutavam e a ONU só existia no papel. E parte importante da reunião foi dedicada à criação da ONU, a dar poder de voto à União Soviética e a criar o veto no Conselho de Segurança então proposto – com EUA, Reino Unido, Rússia e China (a França entrou depois). E Churchill, o imperialista essencial, foi integralmente a favor de se criar a regra do veto no Conselho de Segurança.
Escreve Sherwood:
Na verdade os britânicos defenderam empenhadamente o veto, como meio de impedir que surgissem dificuldades para seus próprios interesses imperiais. Os EUA foram favoráveis, para criar uma espécie de seguro contra o risco de o Conselho de Segurança empurrar as forças norte-americanas para todos os tipos de guerras em qualquer parte do mundo.
Em outras palavras: Churchill não queria que a ONU tivesse poderes para mandar missões militares para a Índia e outras “possessões” britânicas; e Roosevelt não queria as forças dos EUA envolvidas em guerras impopulares – ou impossíveis de vencer – para defender interesses alheios.
Roosevelt tinha “a lembrança de Woodrow Wilson sempre viva”, escreveu Sherwood, o que sugere que Kennedy, Johnson e Nixon já não a tivessem assim tão viva, quando foi a vez do Vietnã. A “concessão” aos russos foi um direito de vetar, assegurado a todos os membros do Conselho de Segurança, contra qualquer ideia de impor sanções – ou, até, de fazer guerra – contra aquele membro.
Em outras palavras: cada um dos cinco grandes podia vetar qualquer ideia de qualquer dos outros quatro, de invadi-lo – e, por extensão, de invadir respectivos amigos ou aliados. Essa, precisamente, é a política que Putin aplica hoje à Síria.
Os russos aceitaram que nenhum membro do Conselho pudesse impedir que se discutissem suas próprias ações.
Stálin estava muito mais interessado em conseguir votos na Assembleia Geral da ONU para Ucrânia e Bielorrússia – nações constituídas dentro da União Soviética; esse dois países, como Stálin lembrou a Roosevelt, eram maiores em população e em importância que outras nações que estariam representadas na ONU. Roosevelt não parava de resmungar sobre o Brasil, porque era menor que a Rússia, mas maior que os EUA.
Stálin, Sherwood observa, “começou dar sinais de impaciência e irritação”, e Hopkins escreveu bilhete bem claro a Roosevelt:
Sr. presidente, acho melhor o senhor deixar esse assunto para os ministros do Exterior, antes que haja problemas. Harry.
Churchill, muito arrogantemente, fez questão de dizer a Stálin e Roosevelt que o veto britânico também protegeria as demandas de ambos sobre Hong Kong, ao que Stálin retrucou:
Imagine se o Egito levanta a questão da devolução do Canal de Suez?
Três anos depois da morte de Stálin, claro, foi exatamente o que o Egito fez.
No caminho de volta de Yalta, Churchill encontrou-se com o novo presidente da Síria, Shukri Quwatli, que queria a Síria independente da França. Os sírios e os libaneses, pensou Churchill, “antes lutarão, que aceitarão qualquer privilégio para a França”.
Hoje, Grã-Bretanha – e França – falam de ação militar na Síria. Mas ainda enfrentam o que ficou decidido em Yalta.
Robert Fisk |
30/6/2013, Robert Fisk, The Independent (UK)
“Britain’s problems with a veto on Syria go right back to Yalta” [*]
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Nota dos tradutores
[*] A Conferência de Yalta, também chamada de Conferência da Crimeia, é um conjunto de reuniões ocorridas entre 4-11/2/1945 no Palácio Livadia, na estação balneária de Yalta, nas margens do Mar Negro, na Crimeia. Foi a segunda das três conferências em tempo de guerra entre os líderes das principais nações aliadas (a anterior ocorreu em Teerã, e a posterior em Potsdam). Os chefes de governo dos EUA (Franklin D. Roosevelt) e da União Soviética (Joseph Stalin) e o primeiro-ministro do Reino Unido (Winston Churchill) reuniram-se em segredo em Yalta para decidir o fim da Segunda Guerra Mundial e a repartição das respectivas zonas de influência. Em 11/2/1945, assinaram os acordos que visavam a pôr fim rápido à guerra e à estabilidade do mundo após a vitória.