 Há décadas ouvimos o  discurso de que é preciso melhorar a qualidade da educação no Brasil, de que  essa qualidade é essencial para o desenvolvimento do país etc. Hoje, vários  programas públicos, assim como movimentos da sociedade civil, carregam esta  bandeira, mas o que é, afinal, esta qualidade? 
 
Que qualidade queremos?
Há décadas ouvimos o  discurso de que é preciso melhorar a qualidade da educação no Brasil, de que  essa qualidade é essencial para o desenvolvimento do país etc. Hoje, vários  programas públicos, assim como movimentos da sociedade civil, carregam esta  bandeira, mas o que é, afinal, esta qualidade? 
 
Que qualidade queremos?
 
 Conforme foi recentemente publicado, só 33% das metas do Plano Nacional de  Educação foram cumpridas entre 2001 e 2008, e foram apenas as metas  quantitativas. Das metas qualitativas, nada foi conseguido, muito pelo  contrário, elas pioraram. A taxa de repetência no ensino fundamental aumentou  de 21,7% em 2001, para 27,7% em 2007, e a evasão no ensino médio aumentou de 10%  em 2006, para 13,2% em 2008.
 
 Depois de tantos planos fracassados2, fica claro que a raiz deste problema  ainda é desconhecida pelos nossos gestores públicos. Reconhecidos estudiosos da  educação, como Edgar Morin3, Francisco Imbernón, Saturnino De La Torre, Isabel  Alarcão e tantos outros, já nos alertam há anos que o grande obstáculo para  oferecermos uma educação adequada às demandas do nosso tempo, se encontra no  âmbito das relações humanas, na qualidade das relações humanas na escola, em  especial durante o ensino infantil e fundamental, um período essencial para o  desenvolvimento humano.
 
 No Brasil, o foco da relação do professor não é com os alunos, mas com o  conteúdo, e os sistemas oficiais de avaliação do ensino, focados em notas,  também estimulam esta cultura. Embora a formação em pedagogia, teoricamente,  prepare o professor para lecionar em qualquer ano do ensino infantil ou  fundamental de 1º ao 5º ano, ele se especializa no conteúdo relativo a um único  ano escolar, e a cada ano pega uma nova turma de alunos para ensinar o mesmo  conteúdo. Assim, ele não se compromete com o desenvolvimento e o sucesso futuro  dos alunos. Se a criança tem dificuldades é cômodo transferir a culpa para a  família ou o para o professor anterior, e ela será problema do próximo professor.  Também é fato que, para se manter com um baixo salário, é comum o professor  assumir uma carga horária muito alta, trabalhando em vários períodos, o que  inviabiliza um envolvimento mais profundo com seus alunos. Nossas políticas  públicas não estimulam o comprometimento do professor com o desenvolvimento  individual dos alunos por longo prazo, nem uma aproximação efetiva do professor  com as famílias, e, no fim, ninguém é responsabilizado pelo fracasso de um  aluno.
 
 Devido à pressão que a sociedade impõe ao poder público pela melhoria da  qualidade na educação, governantes, assim como gestores de escolas privadas,  tentam resolver o problema comprando “sistemas de ensino” apostilados, que não  têm relação com as necessidades individuais dos alunos e nem com a identidade  de suas comunidades. Com estes sistemas “economiza-se” o tempo para preparar  aulas. Assim, os professores podem ter os vários empregos – necessários, pois  os salários continuam baixos – e  não têm tempo para dedicar ao seu  aprimoramento e aos seus alunos. É a pura lógica industrial: investe-se nos  sistemas e economiza-se na mão de obra. Assim a qualidade de vida dos  professores vai para o ralo e a qualidade da educação vai junto. Adotar estes  sistemas equivale a obrigar pessoas que podem andar a usar muletas. Eles já  atingem milhões de crianças brasileiras, e quem mais se beneficia são as  editoras que os vendem. A educação, principalmente a infantil e fundamental,  não pode ser tratada como se fosse apenas um treinamento, desvinculada das relações  humanas e da individualidade dos alunos, e os professores como se fossem  incapazes de criar e planejar suas aulas. Isso tira a autonomia da escola,  engessa e massifica o ensino, relega os professores a meros coadjuvantes, a  aplicadores de tarefas e testes, tolhendo seu protagonismo, e perpetua o status  quo.
 
 Sabemos que a educação é radical: ela é a raiz do bem ou raiz do mal. O que  chamamos de escolas públicas, no Brasil, são, na maioria, escolas estatais,  obrigadas a seguir programas impostos pelo estado, escolas sem “alma”, que  cerceiam a criatividade e a iniciativa dos professores, e, como consequência,  desestimulam a criatividade, a iniciativa e o interesse dos alunos. Aí os  jovens chegam ao ensino médio despreparados e desmotivados, sem acreditar na  escola, nem nas suas próprias chances de sucesso, e acabamos com o “apagão” de  mão de obra que o país enfrenta hoje.
 
 Neste cenário, fica claro que nossa educação básica se perdeu do fator humano.  As crianças não precisam da escola apenas para serem instruídas, elas precisam  para se desenvolver como seres humanos. Embora esta seja uma responsabilidade  primordial da família, sabemos que a escola é um ambiente privilegiado para o  desenvolvimento de valores como a responsabilidade, a solidariedade, a sociabilidade,  a tolerância, a inclusão, a justiça, a democracia, a diversidade, a cidadania e  a sustentabilidade, entre outros.
 
 Sem pretender esgotar aqui este assunto, relaciono alguns princípios que  considero condicionantes para uma educação de qualidade, com base nas relações  humanas e na educação como arte social, e que podem ser um caminho para  enfrentarmos nosso maior desafio: substituirmos a cultura do consumismo pela da  sustentabilidade.
 
  O professor como formador comprometido com o sucesso do aluno
 
 O êxito da educação básica depende, em primeiro lugar, da qualidade da relação  humana entre professor e aluno. Tanto no ensino infantil, como no fundamental,  o foco do professor precisa deixar de ser apenas o conteúdo, e passar a ser o  aluno, e seu desenvolvimento como ser humano completo, que pensa, se  sensibiliza, se relaciona e atua no mundo. A mudança deste paradigma é  essencial para que outras transformações sejam conseguidas. Tanto no ensino  infantil quanto no fundamental, é preciso criar a possibilidade e incentivos  para que cada professor se comprometa com a condução de sua turma pelo maior  tempo possível, e com o sucesso individual de seus alunos.
 
 No ensino infantil, isso seria por cerca de três anos. No ensino fundamental, o  professor formadorpoderia acompanhar sua turma do 1º ao 5º ano, ministrando as  atividades e matérias básicas. Aulas de música, língua estrangeira, educação  física, trabalhos manuais etc. podem ser ministradas por professores  especialistas. O professor formador precisa conhecer a fundo cada aluno, seu  temperamento, suas qualidades e dificuldades, e conhecer sua família, para  poder atuar da melhor forma com cada um, assumindo perante os pais o  compromisso de conduzi-lo em sua formação. Deve preparar suas aulas a partir de  seu conhecimento sobre o desenvolvimento humano, sua visão de mundo, os  conteúdos curriculares e o conhecimento sobre seus alunos e, claro, deve poder  dedicar-se a apenas uma turma. Nas séries superiores do ensino fundamental os  professores com licenciatura também deveriam ter estímulo para acompanhar suas  turmas. Desta forma se fortaleceria também o vínculo dos professores com as  escolas.
 
 Como o exemplo pessoal do professor, independentemente de sua vontade,  influencia na formação moral e social dos alunos, principalmente durante o  ensino infantil e o fundamental, ele precisa se preparar para ensinar a  responsabilidade sendo responsável e coerente em suas atitudes, ensinar a  justiça sendo justo com todos os alunos, ensinar a solidariedade sendo  solidário, ensinar a inclusão, incluindo, ensinar respeito, respeitando seus  alunos, e, para entusiasmá-los pelo conhecimento, precisa ensinar com  entusiasmo.
 
 Este modelo de relação entre professor e aluno não é novo. É aplicado nas  escolas que adotam a pedagogia Waldorf no Brasil, há mais de 50 anos. Nestas  escolas há professores formadores no ensino infantil e no fundamental. No  fundamental os professores acompanham sua classe do 1º ao 8º ano, ministrando  as matérias básicas. Eles recebem as crianças todos os dias na porta da classe,  e as cumprimentam pegando em sua mão, desejando bom dia a cada uma, dizendo seu  nome e olhando nos seus olhos. No fim das aulas se despedem da mesma forma.  Assim, cada criança sente que foi olhada e percebida por seu professor, e que  está no foco de sua atenção. Esta simples atitude já muda a disposição com que  a criança recebe o que vem deste professor.
 
 A independência pedagógica da escola
 
 Tudo que nossa civilização criou até hoje foi, em última instância, fruto de  realizações individuais. Portanto, é fundamental estimular cada indivíduo a  desenvolver suas capacidades próprias, e só o professor é capaz de enxergar o  aluno como indivíduo. O Estado e as editoras não conseguem. Assim, cada  professor precisa ter a liberdade de atuar com seus alunos. Esta liberdade não  significa que as matérias exigidas pelos programas oficiais de ensino não sejam  contempladas. Significa a forma como serão ensinadas e o momento, assim como a  inclusão de matérias adicionais, principalmente no âmbito das artes e dos trabalhos  manuais. O projeto educativo de uma escola deve ser livre da tutela estatal,  tendo como base sua comunidade educadora, e partilhado por professores que  experimentem em si próprios a liberdade, a responsabilidade e o protagonismo. A  partir de professores livres, poderemos formar homens livres, com autonomia  para escolher seu próprio caminho e novos caminhos para a humanidade.
 
 O aprendizado deve ser prazeroso
 
 Como Heródoto já disse há 24 séculos, “educar não é encher um balde, é acender  um fogo”. A indisciplina que os professores do ensino fundamental enfrentam  hoje ocorre porque suas aulas são focadas apenas no ensino cognitivo, como se  esta fosse a única característica humana que precisasse ser desenvolvida. Ficam  somente no exercício do Pensar, desprezam o desenvolvimento do Sentir e do  Querer. Ocorre que as atividades ligadas ao Pensar sempre exigem  “concentração”, e as aulas ficam chatas, pois crianças não aguentam só se  concentrarem. Já as atividades ligadas ao desenvolvimento do Sentir e Querer  permitem uma “descontração” e, quando as três são intercaladas, cria-se um  ritmo mais saudável e produtivo, pois a aula “respira”. Os alunos passam a  gostar das aulas e o professor se estressa muito menos para lecionar. Se o  professor não cria momentos de descontração conduzidos por ele, os alunos criam  por conta própria. A indisciplina deve ser encarada como um pedido de socorro  dos alunos.
 
 O Sentir desenvolve-se por meio da vivência das relações humanas, pelo contar  histórias (contos de fadas, lendas, fábulas, mitos, biografias etc.), pela  interpretação musical, declamação de poemas, rodas rítmicas, jogos,  representação teatral etc. Interpretando personagens a criança e o adolescente  vivenciam as qualidades que influirão na formação de seu caráter.
 
 O Querer, o fortalecimento da vontade, desenvolve-se exercitando a criação  individual por meio de atividades que exigem uma ação manual transformadora,  como criar um texto, um desenho, uma pintura, uma escultura, um trabalho em  madeira e diversos tipos de trabalhos manuais, tocar um instrumento etc. O  aluno precisa criar algo a partir da sua imaginação, usando a vontade, a  perseverança, a coordenação psicomotora e o senso estético. Este é um antídoto  contra o bitolamento de seu modo de pensar, onde cada resultado conquistado  fortalece sua autoestima.
 
 As atividades artísticas devem ser utilizadas como instrumento pedagógico para  potencializar o aprendizado das matérias básicas, e não apenas como matéria  isolada, pois permitem que o professor promova a vivência lúdica dos conteúdos.  Representar uma peça sobre as grandes navegações, vivenciando as ações e  emoções dos navegantes, é muito mais rico e interessante do que decorar nomes e  datas, além de promover a socialização entre os alunos. A formação completa do ser  humano não pode prescindir da arte como instrumento, pois ela ajuda a libertar  e desenvolver as mais profundas capacidades que cada criança traz consigo.
 
 E quanto às avaliações, elas não podem incutir nas crianças o medo de errar. Se  os alunos não estiverem preparados para errar, nunca terão idéias originais, e  a maioria chegará à idade adulta tendo perdido sua criatividade. Como não  sabemos como será o mundo onde eles vão viver, e os desafios que terão que  enfrentar, a criatividade precisa ser tratada com a mesma importância que a  alfabetização.
 
 Um novo papel social para o professor
 
 Um professor que assume a responsabilidade, perante um grupo de pais, de  conduzir a educação de seus filhos por um período importante de sua formação,  passa a ter uma importância social muito maior do que um professor “de  passagem”. Ele deve atuar entre os alunos de modo a promover o fluir e a  harmonia das relações, e o desenvolvimento harmônico de suas capacidades  humanas de pensar, sentir e querer, criando um ambiente saudável para o  aprendizado. Educar desta forma deve ser considerado uma obra de arte social, e  o educador, um artista social. Exige um constante esforço de aprendizado e  autoconhecimento, ambiente de trabalho apropriado, e o reconhecimento da  importância deste trabalho refletido em sua remuneração e num plano de carreira  adequado e estimulante. Os jovens que tiverem a educação conduzida desta forma  poderão chegar ao ensino médio com outra disposição de espírito para o  aprendizado, com outro nível de responsabilidade social, mais idealistas e  menos céticos em relação a suas perspectivas de sucesso na vida.
 
 Fomentar o processo de auto-educação, auto-conhecimento e auto-estima do  educador como base sólida para a sua interação saudável com a criança, é uma  política pública primordial. A carreira de professor para o ensino básico  precisa urgentemente melhorar seu status, pois temos que atrair para ela nossos  melhores e mais promissores jovens. E as universidades, por sua vez, precisam  fazer seu mea culpa e renovar seus currículos, proporcionando um estudo  aprofundando do desenvolvimento humano, o estudo pedagógico dos temperamentos e  das necessidades da criança em cada etapa de seu desenvolvimento. Devem focar a  realização do ensino com sentido estético, e estruturado com atividades  artísticas, preparando-os para serem protagonistas da educação. Também é  fundamental a criação de um sistema de estágios que realmente prepare os novos  professores para a atuação em sala de aula, e um amplo programa de formação  continuada ministrado por formadores com vivência prática em sala de aula.
 
 Educação de qualidade para uma sociedade sustentável
 
 A qualidade da educação, considerada como o compromisso de promover o  desenvolvimento do aluno como ser humano completo, que pensa, se sensibiliza,  se relaciona e atua no mundo, só se sustenta pela competência, autonomia e  dedicação de seus professores. Nenhum livro didático, computador ou recurso  técnico substitui a qualidade da relação humana entre um professor preparado,  motivado e entusiasmado com seu trabalho, e seus alunos. Nenhum método  educativo supera ou substitui a palavra falada que vai de um ser humano a  outro. Só um professor bem preparado, amparado pelo ambiente de trabalho, e  dedicado, sustenta a qualidade de seu trabalho durante o tempo de duração de  sua vida profissional. Qualificar a educação através da qualificação das  relações humanas entre professores e alunos está na raiz da sustentabilidade  ambiental, social e econômica. Só a vivência cotidiana sadia dos valores humanos  pode estimular os jovens a darem mais valor às relações e qualidades humanas e  à cultura, do que aos bens materiais e ao consumo. Para nos tornarmos uma  sociedade sustentável, o paradigma cultural do sucesso e da felicidade pessoal  precisa ser mudado do TER para o SER, para conseguirmos educar uma nova geração  que consiga viver melhor, e ser mais feliz, consumindo menos.
 
 Os princípios aqui sugeridos já são aplicados nas escolas que adotam a  pedagogia Waldorf, em mais de 80 países, nos cinco continentes, mas, como se  pode perceber, são princípios universais e já existe pesquisa acadêmica sobre  sua aplicação em escolas públicas no Brasil. Eles podem contribuir para as  profundas mudanças que precisamos efetuar na educação básica brasileira, se  quisermos nos tornar uma sociedade mais humanizada, solidária, inclusiva,  justa, democrática e sustentável.
*Rubens Salles é mestre em Educação, Arte e História da Cultura,  empreendedor social e pesquisador do Instituto ArteSocial. http://www.artesocial.org.br ou Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
 
 (Envolverde/Le Monde Diplomatique Brasil)

 
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  




























