Muhammad Ali esteve no Brasil quando assumia conscientemente o papel de símbolo da luta dos negros contra o racismo e Pelé era um gênio do futebol e um zero à esquerda em preocupações sociais.
Um repórter perguntou ao grande Ali o que achava de Pelé. Com seu brilhantismo habitual, ele respondeu algo assim (não encontrei a frase exata): "Se alguém é um esportista extraordinário, isto já basta. Mas, se além disto, ele também levanta as bandeiras de sua gente e trava o bom combate, aí sim ele é completo".
Sócrates era completo.
Parafraseando o que Foreman disse sobre o próprio Ali, talvez Sócrates não tenha sido o maior jogador brasileiro de todos os tempos, mas, sem dúvida, foi o melhor cidadão brasileiro que já atuou no futebol profissional.
A ponto de, quando os melhores cidadãos brasileiros saíram às ruas para recuperar o direito de elegerem o presidente da República, ele se ter comprometido com a multidão que lotava o Vale do Anhangabaú (SP) a recusar a proposta estratosférica da Fiorentina e permanecer no País para ajudar a reconstruí-lo, caso fosse aprovada a emenda das diretas-já.
Vale também lembrar ter sido ele o grande artífice da democracia corinthiana --que serviu, para o povão, como uma amostra da democracia que almejávamos para a sociedade, ou seja, o grupo todo decidindo e não um cartola a mandar e desmandar sozinho.
Perdemos um grande companheiro, um irmão de fé. Foi doído demais.
HABILIDOSO COMO POUCOS, CEREBRAL COMO NENHUM
Mais do que a partida catimbada na qual, algumas horas depois, um excessivamente cauteloso Corinthians conquistou o Brasileirão/2011, reterei a lembrança pungente dos atletas e torcedores repetindo o gesto característico do Magrão --a saudação do Poder Negro-- durante o minuto de silêncio. Quase fui às lágrimas.
O time que Sócrates regeu não fazia finais insossas, jogando com o regulamento na mão para, no final, festejar um 0x0.
Inesquecível foi o bicampeonato paulista em 1983, quando o doutor conseguiu o incrível feito de marcar todos os gols do Corinthians nas quatro partidas finais: 1x1 e 1x0 contra o Palmeiras, 1x0 e 1x1 contra o São Paulo.
Foi o jogador mais inteligente que já vi atuar -- fazendo a ressalva de não haver acompanhado com idêntica atenção a carreira de Cruyff, até porque as partidas da Europa não eram disponibilizadas amplamente na TV como agora.
Pode ser que o maestro da laranja mecânica se equiparasse ao Sócrates. Pode ser.
A utilização frequente do calcanhar, p. ex., foi um expediente genial que ele encontrou para superar uma deficiência física. Algo como os dribles desconcertantes que Garrincha dava apesar de ter uma perna mais curta do que a outra --só que premeditado, não intuitivo.
Alto, magro e com pés pequenos, Sócrates tinha pouco equilíbrio e qualquer esbarrão dos zagueiros o atirava no chão. Daí ter desenvolvido toda uma técnica para não reter a bola, evitando os choques.
Quando estava marcado e recebia o passe, mesmo pelo alto, procurava dar destino imediato à bola, lançando-a para o companheiro com um único toque, no chão ou no ar.
Era um espetáculo a precisão desses toques --os de calcanhar inclusos. Muitos jogadores, com a bola rolando no gramado, não conseguiam passar tão bem.
Também me chamava a atenção o fato de que na arquibancada, com uma visão bem mais ampla do tabuleiro e, portanto, vislumbrando melhor o lance correto a ser feito, eu raramente encontrava um jogador que o fizesse na maioria das vezes.
Sócrates era uma exceção absoluta: quase sempre o fazia. Ou um melhor ainda, que não me ocorrera.
Impagável foi seu drible do olhar num jogo sem muita importância do Corinthians contra um time pequeno.
Puxando o contra-ataque, ele conduziu a bola olhando sempre para a direita, o que fez toda a defesa adversária se preocupar com o corinthiano para o qual o doutor fazia menção de lançar a bola.
Pelo contrário, sem virar o rosto, ele deu um toquinho hábil para o companheiro que descia sozinho pela esquerda, colocando-o diante do goleiro.
Depois, enquanto os corinthianos comemoravam, os zagueiros logrados ficaram entreolhando-se em silêncio, com cara de bobos...
Finalmente, eu sempre reparei que ele achava natural fazer aquilo que fazia. Não mostrava vaidade.
Ao chegar no Corinthians, surpreendeu a torcida com sua fleuma depois de fazer seus golaços: virava as costas e voltava para o seu campo.
Quando isto começou a ser comentado negativamente --afinal o Corinthians sempre foi time da grande massa, portanto vibrante--, ele mudou de atitude e passou a comemorar os gols, esforçando-se para aparentar um entusiasmo que geralmente não estava sentindo.
Percebia-se que considerava ter feito apenas sua obrigação.
* Celso Lungaretti é jornalista e escritor. http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com