Vamos supor que um cidadão decente tome conhecimento da existência de um prisioneiro submetido há nove anos ao confinamento mais impiedoso e destrutivo, na maior parte do tempo sob o famigerado Regime Disciplinar Diferenciado, assim descrito por Carlos Lungarzo, professor universitário que há mais de três décadas milita na Anistia Internacional:
"O RDD é um simples sistema de tortura, que se diferencia do clássico por não haver utilização de ação direta sobre o corpo da vítima, mas cujos efeitos são comparáveis.
O RDD restabelece oficialmente a tortura, (...) só que sob a hipocrisia de evitar a palavra tortura. Os efeitos dolorosos (que são procurados pelo torturador) estão todos presentes no RDD: isolamento de som, ausência de luz natural ou hiperluminosidade, bloqueio de funções motrizes com a mecanização de todos os movimentos do preso (como portas que são abertas de fora, e que impedem o detento girar uma maçaneta, contribuindo para a atrofia muscular), perda da noção de tempo e obliteração da memória em curto e médio prazos, o que acaba mergulhando a pessoa numa autismo irreversível.
...A prisão perpétua normal pode acabar algum dia. Mas ninguém pode repor-se de um suicídio ou de uma psicose profunda irreversível".
Isto indignaria qualquer ser humano digno deste nome e, muito mais, um militante de esquerda.
Mas, e se a vítima de tal tratamento cruel e degradante se chamar Mauricio Hernández Norambuena?
Aí poderá pesar mais o fato de o chileno Norambuena ser um personagem histórico com o qual boa parte da esquerda brasileira não aceita ter a mais remota identificação.
Ele pegou em armas contra a ditadura de Augusto Pinochet e não as depôs quando sua pátria se redemocratizou. Adiante, liderou o sequestro do publicitário Washington Olivetto em São Paulo, cujo resgate seria em dinheiro (uma heresia para os guerrilheiros daqui, pois só admitíamos o recurso à prática hedionda do sequestro em circunstâncias extremas, para salvar companheiros da tortura e da morte - "vida se troca por vida" era nosso lema).
Por mais que seus defensores aleguem motivação idealista, há forte possibilidade de que o objetivo fosse apenas o proveito pessoal.
Foi o que concluiu o Supremo Tribunal Federal, ao autorizar a extradição de Norambuena -- não consumada apenas porque o Chile se recusou a reduzir sua pena (prisão perpétua) ao máximo admitido pelo Brasil (30 anos).
Carlos Lungarzo e eu estamos nos posicionando -- e conclamando os companheiros e as pessoas com espírito de justiça a se posicionarem -- pelo cumprimento da sentença de Norambuena em condições aceitáveis numa democracia, bem como pela imediata extinção do aberrante e fascistóide RDD.
Não se trata de solidariedade revolucionária nem de uma convicção íntima de que o preso seja inocente, como no Caso Battisti. Longe disto. Ambos reconhecemos a culpa de Norambuena e não questionamos o veredicto judicial. Mas, nem um cão merece o tratamento que lhe estão impondo.
Precisamos ter a coragem de defender os princípios e valores corretos, mesmo que isto possa nos acarretar impopularidade.
Em 1914, quando a avassaladora máquina de propaganda burguesa exacerbava os sentimentos belicosos das massas e mesmo alguns líderes socialistas preferiam oportunisticamente apoiar seus governos no esforço guerreiro, Lênin, Trotsky e Rosa Luxemburgo tiveram a dignidade de, arriscando-se até ao fuzilamento, exortarem os trabalhadores a não atirarem nos seus irmãos de outros países.
Da mesma forma, perderemos toda autoridade moral para exigirmos a punição dos torturadores dos anos de chumbo se consentirmos na tortura maquilada que Norambuena está sofrendo e na tortura convencional que continua a grassar em escala desmedida nas delegacias e presídios brasileiros.
A tortura que devemos repudiar é toda e qualquer tortura, não apenas a que atinge aqueles com quem simpatizamos.
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* Jornalista, escritor e ex-preso político. http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com
SOBRE O MESMO ASSUNTO, LEIAM TAMBÉM O ARTIGO DE CARLOS LUNGARZO BRASIL: TORTURAS MEDIEVAIS