Coincidentemente, dois grandes escritores nasceram em junho, embora não no mesmo dia: Machado em 21 de junho de 1839, no Rio de Janeiro, e Pirandello em 28 de junho de 1867, em Agrigento, na Sicília. Deste último, estamos comemorando, portanto, 150 anos do nascimento.
Embora pertençam a gerações diferentes, ambos possuíram várias características em comum. Pode-se dizer, aliás, que os personagens machadianos conheceram um desenvolvimento lógico (e radical) nos personagens pirandellianos. Machado nunca conheceu Pirandello, assim como Pirandello nunca conheceu Fernando Pessoa, mas é como se tivessem estabelecido um profícuo diálogo, no qual procuraram escarafunchar a condição humana, levando ao limite máximo a dessacralização das últimas ilusões românticas e das incipientes ilusões cientificistas, respectivamente, das últimas décadas do século XIX e do primeiro quartel do século XX.
Assim, por exemplo, o machadiano Jacobina, o alferes de O Espelho, constata que a sua existência está contida inteiramente na farda, peça do vestuário que lhe atribuíram no grande teatro social, enquanto o pirandelliano Vitangelo Moscarda , protagonista do romance Uno, nessuno e centomila, leva às últimas consequências a sua rebeldia contra a opressão exercida pelo inferno das máscaras que somos obrigados a vestir.
Em O Alienista, o rigor científico e a consequente catalogação das atitudes humanas leva à desumanização e à derrocada final do protagonista, vítima da sua própria obsessão científica. No romance Quaderni di Serafino Gubbio operatore, o protagonista Serafino é reduzido à condição de uma mão que gira a manivela de uma filmadora, nos primórdios do cinema mudo. Ambas as personagens representam a desconfiança destes dois grandes escritores com relação ao progresso científico-tecnológico.
Essencialmente grande contista, cronista e romancista, Machado encontrou na narrativa o seu gênero adequado, buscando inserir-se na tradição do romance luso, mas de maneira original, empregando uma língua essencialmente “brasileira”, sem que para isso tenha sentido a necessidade de barroquismos ou de outros artifícios meramente formais. Pirandello começou poeta, mas logo chegou ao seu porto inicialmente na prosa (contos e romances) e, sobretudo, no teatro. Distanciou-se da tradição “verista” (realista) de seu conterrâneo Giovanni Verga, não encontrando no dialeto ou na imitação da sintaxe dialetal o seu modo de escrever em italiano. Embora cá e lá se encontrem expressões dialetais em seus contos e romances, além de uma peça teatral escrita em duas versões (italiano e siciliano), ele preferiu direcionar o foco da leitura não para os aspectos formais linguísticos, muitas vezes provincianos, e sim para a análise impiedosa da condição humana, empregando um italiano “médio”, “toscano”, adequado ao contexto social em que se movem os seus personagens, isto é, quase sempre urbano e da média burguesia.
Há muitos pontos de convergência entre os universos dos dois escritores. No entanto, basta apenas um para que se tenha uma ideia precisa da grandeza e da riqueza de ambos: Machado e Pirandello observaram ironicamente ou “humoristicamente” os pobres seres vivos dotados de razão, aparentemente um inútil “acréscimo” à condição de criaturas com instintos de sobrevivência, como tantos outros animais. Este “supérfluo”, na denominação de Pirandello, já aparece em Machado, mas não é mencionado explicitamente, pois o escritor carioca esmiúça a condição humana sem imaginar uma possível, e inútil, rebeldia, tanto contra a opressão das máscaras quanto contra a inevitável morte sem esperanças de redenção no além-túmulo.
No escritor siciliano, como se verifica na obra-prima teatral “Seis personagens à procura de um autor”, a rebeldia chega até a se voltar contra o próprio escritor-criador que insiste em não dar a forma definitiva a personagens apenas esboçados. Na condição de personagens dramáticos rejeitados, eles inutilmente se revoltam, buscando desesperadamente, entre atores e diretores “vulgares”, adeptos de uma concepção teatral “antiga”, um autor que possa ao menos fixar as suas misérias no plano da criação artística, superando a infalível condição humana que paulatinamente mata a forma provisória com que fomos criados até à destruição final.
Pirandello e Machado, enfim, continuam extraordinariamente atuais, à medida que advertem os seus leitores para que abram os olhos e enxerguem as contínuas ilusões que se apresentam, sob tantas formas apenas aparentemente diversas, em todos os períodos históricos, tanto em ideologias como em crenças religiosas, sempre prometendo soluções “fáceis” para problemas que necessariamente não têm solução. Pirandello, mais do que Machado, acredita na criação artística como a única “vantagem” que possuiríamos em relação aos outros seres vivos, mas tristemente constata que o nosso “autor” ou não existe ou não se manifesta, mostrando-se surdo aos nossos vãos protestos.
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Sérgio Mauro é profesor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.
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