Gênero suspense, mas sobretudo político: o belo filme 'Vermelho Sol' narra a vida numa província da Argentina nos últimos meses antes do golpe civil militar de 1976 que deixou 30 mil pessoas desaparecidas, ou seja: mortas
Cena de "Vermelho Sol" (Divulgação)
Trata-se de um filme imperdível. Rojo (de 2018), forte título original, amenizado na tradução portuguesa para um poético Vermelho Sol, é de autoria de um jovem diretor argentino nascido em Buenos Aires, de 33 anos, Benjamin Naishtat, que desponta como um dos grandes cineastas do continente. Uma das mais belas produções do vigoroso e destemido cinema argentino atual, a sua estreia aqui, para as grandes plateias, chega num momento crucial, quando se está decidindo, no Brasil, qual projeto de governo, democrático ou mais uma vez autoritário, será implantado para se desdobrar pelas próximas décadas e até gerações.
Rojo fala justamente disto: o comportamento, os costumes em especial das classes médias, e os sinais sombrios (mas já tão evidentes, tanto no filme como no nosso cotidiano) que surgem em uma sociedade anunciando o período fechado de uma ditadura. O ovo da serpente flagrado justo no momento em que começa a se estilhaçar.
A história, contada em roteiro brilhante de autoria do próprio Naishtat, é o retrato de um advogado bem sucedido da província (ele é o símbolo da própria Argentina naquele momento; 1975), homem rígido, conservador e de hábitos quase obsessivos, envolvido num incidente grave e inesperado, num restaurante onde aguardava sua mulher para jantar.
Rojo pode ser visto como filme de suspense, como filme político ou como ambos. De suspense, com a entrada em cena, na sua segunda metade, do investigador, um tira que vem do Chile de Pinochet para elucidar o desaparecimento de um homem.
E cinema político porque desde a sequência introdutória à narrativa, no tal restaurante, os símbolos e as chaves apontam na mesma direção: a violência subjacente que pode explodir a qualquer momento sob a capa do rame-rame provinciano, os enquadramentos de câmera assimétricos que chamam à hipocrisia de personagens em confusão; o rapaz do tal restaurante, de alcunha hippie, que xinga os fregueses de ''nazistas''; o espetáculo do mágico que faz pessoas desaparecer; a observação de um personagem: ''O país está na merda por causa de merdas como vocês''.
''O inimigo maior é um país sem Deus'', vitupera o detetive cristão chileno. E um jovem estudante explode em raiva, ciúme e ódio mortal. O advogado respeitável é um machista que maltrata a mulher sujeitando-a as suas vontades.
O eclipse – ou a ditadura que está por vir – inspira o título do filme fotografado em tons rubros. O céu vermelho (de sangue?) se contrapõe ao sol. ''Mas será só por algum tempo'', diz um dos espectadores procurando acalmar os que se veem assustados com o início da escuridão temporária.
Secretas, sindicalistas, pequenos rufiões aproveitadores, e homens de bem armados são personagens que ensaiam e esquentam as turbinas para a nova sociedade que está por vir.
As declarações de paixão pelos Estados Unidos durante um show da turnê surrealista de caubóis americanos de passagem pela cidade. ''Estamos aqui selando o destino comum das nossas duas nações'', declara o político local a uma emissora de TV.
E sempre os tons vermelhos se espraiando pela paisagem desértica e inóspita que abraça a cidade da província de Rio Seco onde se passa Rojo. Os mesmos tons de vermelho sangue – mas também de resistência - que assombraram a Argentina durante sete anos durante os quais mais de 30 mil indivíduos ''desapareceram''.
Rojo evoca lembranças do cinema de David Lynch e de Ceylan embora os filmes prediletos de Naishtat sejam os de Cassavetes, o Classe operária vai ao paraíso, de Petri e, sobretudo o filme de Carlos Echeverría, Juan: como nada hubiera sucedido, segundo ele, o melhor filme sobre terror de estado na América Latina.
Esta semana, em entrevista concedida à jornalista Patrícia Faermann, Nahistat comentou: ''Eu acredito que o que acontece uma vez pode voltar a acontecer, sim. E existem muitas evidências a nível global de que há um retrocesso muito grande na intolerância e, nesse sentido, o Brasil é o maior exemplo, de até onde as coisas podem surpreender. Violência e intolerância são sinais de repressão''.
Vermelho Sol é uma produção Argentina, Brasil, Alemanha e França. Foi premiada no Festival de San Sebastian, na Espanha. Lá, ganhou Melhor Direção, Melhor Fotografia e Melhor Ator. O seu elenco é exemplar: Dario Grandinetti, Alfredo Castro, Andrea Frigerio, Diego Cremonesi.
Um filme, repetimos, que não se deve perder.