Um conto de fantasia...
Em uma noite dessas, não uma noite especial, uma como todas as outras, ela surgiu, ficou em cima do telhado observando tudo e todos ao redor da casa antiga e da qual todos os vizinhos, jovens ou velhos, mulheres, homens e principalmente as crianças tinham medo, nada naquela casa grande e sombria, parecia inspirar vida ou alegria, a última moradora, diziam, era uma velha bruxa vinda de uma terra estrangeira e longínqua de onde havia fugido da caça as bruxas, organizada pela temida Santa Inquisição, a senhora sempre usava roupas pretas, tinha o cabelo despenteado e um olhar triste e recheado de raiva que fazia com que os vizinhos tremessem de medo diante dela, era de poucas palavras e estas eram sempre ou quase sempre rudes e cheias de amargura, como se as pessoas que ali vivessem estivessem lhe fazendo uma grande ofensa pelo simples fato de existirem.
Certo dia, depois da chegada de um novo padre para substituição do abade anterior que havia falecido de forma tranquila devido à idade avançada, a anciã simplesmente desapareceu, diziam a boca pequena, que o novo sacerdote, era na verdade um enviado do Cardeal para averiguar a presença de bruxas naquela região. Todos acreditavam que a velha senhora havia fugido com receio de que o inquisidor estivesse a sua procura. Muito tempo depois todos souberem que a mulher havia partido não por medo, mas por necessidade, sua única filha estava morrendo e desejava o perdão da mãe antes de fazer a grande passagem desta vida para a eternidade. Foi uma viagem longa aquela, passarem-se meses antes que ela regressasse e foi neste período que a gata negra surgiu.
Durante os longos dias de verão não se ouviu nenhum som saído daquele lugar abandonado, mas a noite tudo mudava, era como se os espíritos ocupassem toda a casa e promovessem uma grande e magnifica festa, as janelas de venezianas quebradas chocavam-se ruidosamente deixando as cortinas dilaceradas à mostra numa dança fantasmagórica, logicamente não poderia haver nenhum ponto de luz, pois não havia nenhuma pessoa no lugar, a única iluminação possível era a que vinha da lua, ainda assim havia quem jurasse que em noites sem luar, surgia uma luminosidade fraca sob as janelas do salão ou de algum quarto na parte superior do casarão, como se uma vela fosse levada de um lado a outro da habitação, e um miado alto que incomodava a todos, pois não era um miado comum, era triste, tenaz e longo, muito longo.
Uma vez ou outra se via o brilho do olhar sinistro da gata em uma janela ou em uma saliência de uma parede ou em seu lugar preferido, no telhado, de onde ela observava tudo, caminhando vagarosa ou rapidamente, por muitas vezes acompanhando os passos de algum bêbado que se aventurava aproximando-se dos portões grandes e oxidados, mas ao sentir o ambiente pesado e nebuloso do lugar, afastava-se cambaleante, nenhuma pessoa ousava invadir aquele espaço de exclusividade total da gata negra, ninguém naquela vila silenciosa sabia onde aquela felina se escondia durante o dia, na casa não poderia ser pois não havia comida por lá, ainda que se alimentasse somente dos muitos ratos que por certo viviam nos cômodos empoeirados da casa.
As crianças diziam que a velha havia se metamorfoseado na gata para se ocultar do padre inquisidor, as mulheres cochichavam dando razão as fantasias infantis, afirmando que a desconhecida senhora era mesmo uma bruxa e que devia ter partido muito antes, os homens vociferavam na taverna depois de meia dúzia de copos de cervejas, que se a velhota voltasse lhe cortariam a cabeça fora ou a enforcariam em praça pública, como os inquisidores sempre faziam ou talvez fosse queimada viva, como era costume para “purificar-lhes a alma dos terríveis pecados praticados”. A igreja sempre justificava esses atos como sendo em nome de um bem maior, a salvação de um herege das garras do mal, mas os mais idosos tinham medo que poderia acontecer com a volta daquela senhora a cidade, havia muita especulação em torno dela, e se fosse verdade que o novo abade era um inquisidor ela correria um grande perigo.
Ao cair da noite daquele mesmo dia a anciã que havia se tornado o motivo de tantas fofocas e comentários maliciosos, voltou a sua casa e qual não foi à surpresa de todos quando a viram com um traje azul claro, uma bíblia na mão direita e com o braço esquerdo entrelaçado, quem poderia imaginar?! Com o padre. Curiosas às crianças perguntaram:
- Padre, o senhor não vai enforcar a bruxa?
Surpresos com a pergunta olharam-se nos olhos por um momento e o padre perguntou de quem o menino estava falando.
- Como de quem? – perguntou de volta o garoto com a sobrancelha arqueada e respondeu de pronto – Ela ora!
- Depois de velha sou chamada de bruxa! O que há de errado com o povo dessa cidade?
- Não se preocupe, vamos esclarecer tudo! Menino vá a todas as casas que puder e diga a todos os moradores para irem à igreja, pois tenho algo muito importante para contar, se quiser chame seus amigos para ajudar.
O garoto fez o sinal da cruz e saiu em disparada, golpeando agitado em todas as portas que encontrava no caminho levando a mensagem do padre. Em meia hora o povo da cidade estava todo reunido perto do pátio da igreja, aguardavam ansiosos a revelação. Quando o pároco surgiu na porta e pacientemente acabou com o engano a respeito da misteriosa senhora, os habitantes que já haviam tecido inúmeras possibilidades sobre aquela anciã ficaram decepcionados. Na verdade a velhinha usava sempre roupas pretas porque era viúva, vivia sozinha porque sua única filha havia fugido para se casar com um estrangeiro e desde então não teve mais noticias dela. Depois de anos sem ver a mãe sua filha lhe escreveu uma carta pedindo que a visitasse, estava morrendo e queria seu perdão, dizia na carta que havia consagrado seu único filho, como último pedido do marido, que perdera apenas dois anos após o casamento, vítima de uma queda de cavalo, e gostaria que ela conhecesse o neto que havia sido designado para congregar na sua cidade natal. A velhinha havia partido no mesmo dia em que recebera a carta para ir ao encontro da filha, o mesmo em que o rapaz chegava à cidade, e desencontraram-se, depois de ficar os últimos meses ao lado da filha, a senhora de coração aberto, percebeu que era hora de tirar o luto e voltar a viver, pois não estava mais sozinha, tinha um neto.
- E quanto à gata?
- Que gata?
- Aquela que vive no telhado da casa!
- A gata negra?
- Ela mesma!
- Quando mudei para aquela casa ela já estava lá, e creio que conheço o motivo de sua inquietação quando alguém se aproxima.
- E qual é?
- Filhotes! Durante os meses que fiquei fora, a gata deu cria, tenho oito belos gatinhos em casa. Dois deles completamente brancos, outros três mesclados de preto e branco e três completamente negros. A gata não estava assombrando a casa e sim protegendo os filhotes.
Disse a velha dando uma sonora gargalhada, que terminou contagiando a todos que ali estavam, e assim tudo voltou à normalidade e logo os vizinhos encontraram outro alvo para suas fofocas e esqueceram-se da anciã e sua gata. E então ela pode realizar seus sortilégios com tranquilidade, sem que ninguém suspeitasse que por trás daquela face, agora, recheada de sorrisos, estava uma poderosa bruxa, que todas as noites, liberava sobre a cidade uma mágica poção que transformava as noites frias de inverno em uma suave brisa de primavera.
CONTO CEDIDO POR DANIELA DOS SANTOS TEIXEIRA ALUNA DO 3° PERÍODO DE HISTÓRIA DA FAFIMA