A história se repete. O presidente Bolsonaro anuncia a intenção de descentralizar investimentos em cursos de filosofia e sociologia, sob o argumento de que o desenvolvimento do país requer carreiras técnicas. Em 1970, o ditador Médici quis fazer uma reforma do ensino médio. Depois de 60 dias, um grupo apresentou um projeto para acabar com o “ensino verbalístico, propedêutico e academizante”, substituindo-o por uma formação técnico-profissional capaz de preparar o jovem para ingressar no mercado de trabalho.
O Brasil vivia o “milagre econômico”. O que o regime militar pretendia era reduzir a demanda por vagas no ensino superior, formar profissionais para atender supostas necessidades do mercado e eliminar o debate ideológico nos bancos da academia. Hoje, essa intenção volta à tona com a reiterada intenção do governo Bolsonaro de limpar a Universidade pública do “marxismo cultural”, conforme prega o grupo que deseja contrapor sua visão ideológica à “doutrinação de esquerda” no ambiente acadêmico.
O espaço que o governo escolhe para fazer sua “revolução” é o de Ciências Humanas, mais especificamente os cursos de filosofia e sociologia, aos quais procura atribuir insignificância. Para Bolsonaro e seu núcleo educacional, o que o Brasil precisa é de engenheiros, médicos, dentistas, agrônomos, veterinários, enfim, profissionais de ciências exatas e biomédicas. Pensadores, que se transformam em debatedores, contestadores, pessoas de intenção crítica, essas, nem pensar. Fogo neles. Até porque são esses nichos que os bolsonaristas e seu guru, Olavo de Carvalho, identificam levas de socialistas e comunistas.
O fato é que ontem como hoje, governos com algum traço militarista se mostram profundamente contrariados com o questionamento que sofrem, principalmente de vertentes fincadas na Universidade pública. (A propósito, não são os militares da estrutura governamental quem defende a “limpeza” no espaço acadêmico. Os integrantes das Forças Armadas, reformados, que estão na administração, sinalizam interesses centrados no desenvolvimento nacional).
A pregação de Bolsonaro mais se assemelha a uma toada de refrãos. Até porque os cursos de filosofia e sociologia representam menos de 2% do total de alunos de graduação das federais, ou seja, 25.904 de um total de 1.283.431 alunos. E na pós-graduação, essa percentagem é de 2,5% do total de programas de mestrado e doutorado. Somente 1,4% dos gastos do CNPQ, agência federal de fomento à pesquisa, são direcionados às ciências sociais.
Dito isto, cheguemos ao cerne da intenção do presidente e seu entorno conservador. Trata-se de querer jogar fora do baralho educacional as cartas que propiciam leitura crítica da realidade brasileira. Não se quer dizer que esta leitura não possa ser feita por outras áreas do conhecimento. Mas é na filosofia e na sociologia, dois eixos das ciências humanas, que os cidadãos encontram os fundamentos para explicar a própria história da Humanidade. Vejam o termo aqui expresso: Humanidade. O conjunto dos humanos que habitam o planeta, a longa caminhada de sua trajetória, a evolução de seus passos, os ciclos de sua história, as diferenças sócio-culturais das gentes, a evolução de seu pensamento.
Atirar contra a filosofia e a sociologia é querer excluir da aprendizagem clássicos do pensamento, dentre eles Sócrates, Platão, Aristóteles, Tales de Mileto, Pitágoras, Xenófanes, Heráclito, Diógenes, Demócrito, Arquimedes, Ptolomeu, Sêneca, Cícero, Tomás de Aquino, para citar alguns entre os mais antigos; ou ainda Erasmo, Maquiavel, Bacon, Newton, Galileu Galilei, Thomas Hobbes, Pascal, Spinoza, John Locke, Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Kant, Schopenhauer, Comte, Stuart Mill, Marx, Bertrand Russel, Marcuse, Heideger, Sartre, Bobbio, Camus, Foucault, Harbermas, Baudilllard, Castoriadis, entre tantos outros. Sem deixar de lado esses três: Marx, Durkheim e Max Weber. (Quem se habilita a inserir na lista Olavo de Carvalho?)
Queimar o pensamento de figuras dessa estatura é apequenar a História do Homem em seu habitat. Inseri-los na mesa de estudos é prestar um tributo à Humanidade.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação twitter@gaudtorquato