Há exatos 50 anos, no dia 4 de Abril de 1968, um crime de ódio vitimava um dos homens mais importantes do século XX, o Nobel da Paz, Dr. Martin Luther King Jr. Para entendermos o contexto de seu assassinato, voltemos à construção histórica dos EUA. Em meu livro “O X de Malcolm e a questão racial norte-americana” (Editora Unesp), lancei mão de conceitos da Prof. Dra. Marilena Chauí em seu “Mito Fundador e sociedade autoritária”, no qual a filósofa vê a fundação do Brasil, isto é, o primeiro momento da chegada dos portugueses em nosso território, como o “achamento do paraíso”, “território mágico”, “terra sem males”, “morada dos deuses”, que navegantes imaginavam existir a partir de lendas medievais. Essa fundação mítica percorreu a formação histórica do Brasil, criando a narrativa que ainda existe em nossa cultura atualmente, a do “Brasil paraíso”, tão bem mostrada na cultura popular e suas afirmações “Deus é brasileiro”, “neste território tudo dá”. Lembre-se: é uma narrativa fantástica.
Apliquei essa tese do “mito fundador” à historiografia norte-americana e concluí que os primeiros ingleses que chegaram à América do Norte, perseguidos pelas questões religiosas oriundas dos Atos de Supremacia de Henrique VIII, batizaram aquele território como “terra da liberdade”. Logo, da mesma forma que há uma visão fantasiosa do “Brasil paradisíaco”, também há a mesma visão sobrenatural sobre os EUA, supostamente a “terra da liberdade”, onde “todos conseguem desenvolver-se livremente”, mas que desde o século XVII já aportavam navios negreiros trazendo escravizados para servirem os senhores brancos.
Para fortalecer a ideia de que a liberdade é um mito nos EUA, lembremo-nos de que a Independência do país, realizada pelos ideais liberais no 4 de Julho de 1776, pregava a defesa de uma economia e política livres do domínio britânico, mas que não alcançava a população de origem africana, a qual continuou sendo escravizada por quase mais um século. O Prof. Dr. Roberto Schwarz, em seu “As ideias fora do lugar”, afirma que a sociedade brasileira da independência em 1822 era uma “comédia ideológica” por querer o liberalismo econômico, mas também manter a escravidão. Nos EUA não foi diferente, a comicidade dos “pais da pátria” está em fundar uma nação supostamente liberal, inspirada em John Locke, mas que mantinha a base da economia em uma inferioridade dos negros(as), escravizados. Por todo o século XIX estouraram rebeliões de escravizados no país, questionando a ordem escravocrata, com destaque para o viés religioso e radical de Nat Turner, na Virgínia, até chegarmos à década de 1860, contexto da eleição do nortista Abraham Lincoln, o qual tinha um projeto abolicionista-industrial para o país. O presidente eleito advogava pela abolição muito mais convicto no futuro capitalista do país do que na questão da igualdade racial, à qual ele dava indícios de descrença como em vários discursos feitos antes da presidência.
O sangrento embate entre o Sul escravista e o Norte industrial levou à vitória de Lincoln e a uma suposta abolição. Entretanto, uma nação dividida estava feita, e dela nascerá a figura de Dr. King, em meio a uma família negra, batista, em 1929. O estado em que nasceu, Georgia, era parte do “velho sul”, que não aceitava que negros tivessem os mesmos direitos que os brancos. Assim, dois tipos de ação surgiram: a violência institucional, marcada pelo apartheid que proibia a população negra de ter os direitos sociais, políticos e civis mais básicos, como o de livre-trânsito, liberdade de expressão, direito de voto pleno, direito à universidade e o terrorismo nazistoide, feito pela ação de grupos como a Ku Klux Klan, a qual assassinava negros pelo país em seus rituais em nome da “verdadeira família cristã norte-americana”. Lembremo-nos: não havia lei contra linchamento de negros no país até 1964. Essas leis segregacionistas, semelhantes às da África do Sul do, e ao sentimento de eugenia existente entre os alemães nazistas, ficaram conhecidas nos EUA como “leis Jim Crow” em referência a um personagem homônimo do sul, o qual ridicularizava os afro-americanos com danças e roupas, pintando-se de preto – daí a referência negativa até hoje da black face.
Dr. King formou-se em teologia e concluiu seu doutorado em Filosofia pela Universidade de Boston, algo impossível de ser feito no Sul devido às leis segregacionistas. Ao longo da década de 1950, liderou um grupo de ativistas inspirados na ideia de Mahatma Gandhi: “a resistência pacífica”. O objetivo era conseguir revolucionar o país sem o uso de armas, realizando uma desobediência civil frente às medidas segregacionistas, como bem definiu o Dr. King: “Leis imorais devem ser desrespeitadas” e assim aconteceu com os ônibus em que os negros possuíam limitações para se sentar, os restaurantes em que não poderiam se alimentar, como bem retratou o jovem Cassius Clay que acabara de ganhar a medalha de ouro nas Olimpíadas de Roma, em 1960. Sua conquista o motivou a ir ao centro de sua cidade natal, Louisville, comer um cachorro quente. Na época era proibido aos negros irem ao centro. Chegando a uma lanchonete, com a medalha brilhando no peito, ele pediu um cachorro quente e a resposta do funcionário foi: “Nós não servimos negros!”.
Dr. King liderou inúmeras passeatas e marchas em defesa dos direitos civis da população negra, com destaque para a famosa “Marcha a Washington” em Agosto de 1963, na qual proferiu o incrível discurso “Eu tenho um sonho”. Naquela oportunidade, quando do fortalecimento do movimento, King sonhava com uma sociedade sem diferenciações e lembrava que, depois de um século da “abolição”, a vida da população negra era praticamente a mesma que na época das senzalas, em um contexto no qual o governo norte-americano jurava estar à frente das nações do “mundo livre” contra o socialismo, numa clara demonstração de que os EUA havia vencido o nazismo na guerra, mas não o nazismo interno, dedicado aos negros: mais uma demonstração do mito fundador, “a terra da liberdade”. Meses depois da marcha, já em 1964, em meio a um país que ainda chorava o assassinato de Kennedy, o então presidente Lyndon Johnson assinou a Lei dos Direitos Civis, interferindo nos estados que insistiam em manter as leis racistas. Posteriormente, vieram as ações afirmativas, com destaque para as cotas raciais nas universidades, abrindo espaço para a entrada de centenas de milhares de negros e, consequentemente, ocupando espaços até então impossíveis no mercado de trabalho. Se não fossem as medidas governamentais, isso teria acontecido pela boa vontade “das famílias brancas de bem” ou então pelo “esforço e mérito da população negra” em meio ao fardo racista da sociedade?
Em meio às consequências da Lei dos Direitos Civis, Dr. King foi brutalmente assassinado por um racista branco em Memphis, Tennessee, no dia 4 de Abril de 1968, fato lembrado na canção da banda U2, In the name of love: “Tiros zumbem nos céus de Memphis, livre ao final, eles tomaram a sua vida, eles não poderiam tomar o seu orgulho”. 50 anos depois sua memória é lembrada em filmes, peças de teatro (Lázaro Ramos o interpretou brilhantemente na peça “O topo da Montanha” junto a Thaís Araújo), músicas e no feriado nacional, marcado na 3ª segunda-feira de janeiro, quando marchas ocorrem no país inteiro. Certa vez, em visita para estudos nos EUA, conversei como uma garçonete negra sobre a importância de Dr. King na história do país e ela me resumiu da seguinte maneira: “Se não fosse por ele e tantos outros, eu não estaria aqui hoje”.
Vladimir Miguel Rodrigues, professor, escritor e doutorando em Letras na Unesp de São José do Rio Preto. Autor de “O X de Malcolm e a questão racial norte-americana” (Editora Unesp) e “Filosofia em tempos inquietos” (Editora Chiado).