O significado de qualificação e o problema do nepotismo

JUSTIÇA DISTRIBUTIVA: PERSPECTIVAS E CONCEPÇÕES
Capítulo 10
Cargos públicos, segundo Michael Walzer
3ª parte
O significado de qualificação e o problema do nepotismo

Para Michael Walzer, a cidadania é o primeiro cargo, o “lugar” social e político fundamental e a precondição de todos os outros. Os limites da comunidade política também são os limites do processo de politização. Quem não é cidadão não tem o direito de se candidatar; as salvaguardas normativas das oportunidades iguais não se aplicam a eles. Não há necessidade de se anunciar empregos em publicações estrangeiras; os recrutadores não precisam aventurar-se além das fronteiras; não é preciso firmar prazos levando-se em conta o correio internacional. Pode ser tolice excluir os estrangeiros da competição por certos cargos (mais claramente, no corpo docente das universidades, onde talvez nos sintamos obrigados a reconhecer a afiliação na “república das letras”), mas a exclusão não é violação de seus direitos a “quinhões justos” de bem-estar e seguridade social, só surge no contexto da vida política compartilhada. É uma das coisas que os membros devem uns aos outros.

Entre cidadãos, a ponderação igualitária aplica-se a todos os pontos de seleção, não só entre os candidatos a cargos, mas também entre candidatos à educação e, por conseguinte, é uma restrição que não se aplica apenas a essa comissão de seleção, mas todas as comissões e a todas as decisões que restrinjam gradualmente o número de candidatos qualificados. Imaginemos uma criança de cinco anos capaz de definir metas de longo prazo para si mesma, de elaborar um projeto, de decidir, digamos, que quer ser médica. Deveria ter mais ou menos as mesmas oportunidades que qualquer outra criança – com semelhantes ambições, inteligência, sensibilidade às necessidades do próximo – de obter a formação necessária e conquistar o lugar desejado. A declaração de que todos os cidadãos deve ter exatamente a mesma parcela de oportunidades disponíveis não faz muito sentido, não só devido à repercussão imprevisível de determinadas escolas e professores sobre determinados alunos, mas também em razão da colocação inevitável de indivíduos distintos em diversos concursos. Só se pode prometer a igualdade simples dentro de um grupo singular em um só local e em só momento. Mas os grupos de candidatos diferem radicalmente com o passar do tempo, e os conceitos dos cargos mudam. Assim, o indivíduo que pareceria bem qualificado para determinada vaga no ano passado fica perdido na multidão neste ano, ou suas qualidades não são mais aquelas nas quais a comissão de seleção se concentra. A consideração igual não significa que seja preciso manter constantes para todos os indivíduos as condições de competição; somente que, quaisquer que sejam as condições, é preciso prestar atenção nas qualidades de cada indivíduo.

De fato, o que está em questão não são simples qualidades, mas qualificações. As qualificações são qualidades precisas ou importantes para determinado cargo. A importância, naturalmente, sempre é questão de polêmica, e é ampla a escala de discordâncias permissíveis. Mas essa escala tem seus limites; algumas coisas não devem entrar nas discussões da comissão de seleção. Se não houvesse limites, a ideia da consideração igual desmoronaria, pois o que queremos dizer quando afirmamos que se devem avaliar todos os candidatos é que eles devem ter (mais ou menos) a mesma oportunidade de apresentar suas credenciais e fazer a melhor defesa possível de si mesmos. A defesa que apresentam é que sabem fazer o serviço e fazê-lo bem. E, para apresentar tal defesa, precisam ser capazes de formar uma ideia do que significa fazê-lo, de quais conhecimentos o cargo requer, quais posturas e valores são apropriados etc. Se forem aceitos ou rejeitados por motivos que não tenham relação com nada disso, pode-se então dizer que suas qualificações foram examinadas. Se não soubéssemos distinguir qualificações de qualidades, não poderíamos jamais saber se os indivíduos tiveram a oportunidade de se classificar. Nem seria possível que as pessoas, como a minha criança imaginária de cinco anos de idade, definisse metas para si mesmas e se empenhassem de maneira racional por alcançar tais metas.

Mas sabemos, pelo menos em termos gerais, quais são as qualidades importantes, pois as qualidades importantes são inerentes ao exercício do cargo, abstraído da experiência. As comissões de seleção têm o compromisso de procurar tais qualidades – isto é, têm o compromisso de procurar candidatos qualificados, não só por justiça aos candidatos, mas também por consideração por todas as pessoas que dependem do serviço de funcionários qualificados. Também é preciso levar em conta essa dependência, embora não obrigatoriamente as preferências dessas pessoas com relação às qualidades ou aos candidatos. O direito à consideração igual funciona como qualquer outro direito, estabelecendo limites para a satisfação das preferências populares. No âmbito das qualidades relevantes, porém, ou no âmbito do debate legítimo acerca da relevância, as preferências populares devem ter peso; devemos esperar que estejam representadas na comissão de seleção.

Inúmeras características pessoais geram dificuldades ainda maiores. Para a maioria dos cargos, a idade do candidato não nos informa nada sobre o serviço que prestará. Mas nos informa, grosso modo, durante quanto tempo o prestará. Será que isso é uma ponderação importante? É claro que as pessoas devem estar aptas a mudar, não só de emprego, mas também de profissão, reeducar-se, recomeçar na meia-idade. A consistência na procura de um cargo nem sempre é uma qualidade admirável. Não obstante, nos departamentos fundamentados em compromisso de longo prazo e em serviços que exijam grande experiência profissional, é provável que os candidatos mais velhos levem desvantagem. Talvez sua maturidade devesse ser uma ponderação equilibrante – mesmo que os cidadãos mais jovens reclamem que não tiveram oportunidade igual de amadurecer. A ideia de tentar equilibrar a duração do serviço com a maturidade no cargo nos leva a concluir obrigatoriamente que estamos bem longe dos juízos acerca do mérito e muito comprometidos com polêmicas acerca da relevância.

A primeira qualidade a ser declarada irrelevante para se ocupar cargos foi o parentesco com a pessoa que fazia a indicação. Não que o nepotismo fosse incomum na esfera dos cargos, mas em geral é considerado um forma de corrupção. É um exemplo (relativamente insignificante) de tirania dizer que fulano, por ser meu parente, deve gozar das prerrogativas do cargo. Ao mesmo tempo, as campanhas reiteradas contra o nepotismo também indicam como é problemática a ideia de relevância e como é difícil aplicá-la.

Qual o problema do nepotismo?

Em certa ocasiões a exclusão de parentes ganhou status jurídico, como na Noruega, por exemplo, onde é ilícito que dois membros da mesma família pertençam ao mesmo gabinete. Também na vida acadêmica, costuma-se proibir os departamentos das universidades de contratar os parentes (mas não os amigos) dos membros atuais. A ideia fundamental é que há pouca probabilidade de predominância de padrões objetivos em tais decisões. Talvez isso seja verdade; contudo, uma proibição irrestrita parece injusta. O que se deseja na contratação é que não leve em conta o parentesco, e não que desqualifique todos os membros da família.

Quando o presidente John F. Kennedy indicou o irmão para o cargo de secretário de justiça foi, sem dúvida, um exemplo de nepotismo, mas não do tipo que precisamos nos empenhar em banir. Robert Kennedy estava suficientemente qualificado, e era provável que sua intimidade com o irmão o ajudasse no serviço que tinha de prestar. A permissividade, contudo, não pode estender-se muito. Veremos suas dificuldades se levarmos em conta a declaração dos grupos raciais, étnicos e religiosos, de que só deviam ser atendidos por detentores de cargos escolhidos entre seus próprios membros. Esse é um tipo de nepotismo coletivo, e sua consequência seria restringir de maneira radical os direitos dos candidatos.

Também pode ser que, para certos cargos (digamos, em certas partes de determinada cidade), haja necessidade de pessoas com mesma identidade racial ou étnica dos residentes, que falem a mesma língua, tenham intimidade com seus costumes etc. Talvez isso seja questão de eficiência rotineira ou mesmo – como no caso da polícia – de segurança física. Assim, as comissões selecionadoras procurarão, com legitimidade, pelas pessoas necessárias. Mas convém, crê Walzer, limitar os modos como a afiliação a grupos conta como qualificação, mais ou menos como limitamos os modos de levar em conta o parentesco, e por motivos semelhantes. A ampliação da confiança ou “amizade” para além da família, e da cidadania para da raça, etnia e religião, é uma significativa conquista política; e uma de suas principais finalidades é precisamente garantir o acesso dos talentos às profissões – isto é, o direito a todos os cidadãos de se candidatarem.

Devido à afiliação, e não por qualquer motivo que se relacione com suas qualificações, tem havido discriminação na distribuição de cargos. Por conseguinte, diz-se, em nome da justiça e da reparação, que agora devemos discriminar em favor deles e até reservar certo número de cargos exclusivamente para eles.

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