Justiça Distributiva: Perspectivas e Concepções
Capítulo X
Cargos públicos, segundo Michael Walzer – 2ª Parte – A Meritocracia e o Sistema Chinês de Exames
A Meritocracia e o sistema chinês de exames
Conforme salienta Michael Walzer, o mérito implica um tipo bem restrito de merecimento, tal que o titulo precede e decide a seleção, ao passo que a qualificação é uma ideia muito mais vaga. Um prêmio, por exemplo, pode se merecido porque já pertence à pessoa que teve melhor desempenho; só falta identificar tal pessoa. As comissões de premiação assemelham-se a júris porque examinam o passado e aspiram a uma decisão objetiva. O cargo, pelo contrário, não pode ser merecido porque pertence às pessoas a quem ele serve, e elas ou seus agentes são livres para fazer as opções que lhes aprouver. As comissões de seleção diferem dos júris porque os membros olham tanto para o futuro quanto para o passado: fazem previsões acerca do desempenho futuro do candidato e também expressam preferências com relação ao modo como se deve preencher o cargo. As ponderações sobre cargo dividem-se entre essas duas. A concorrência por determinado cargo é uma concorrência que ninguém, em especial, merece (ou tem o direito de) vencer. Sejam quais forem as qualificações do indivíduo, ele não sofre injustiça se não for escolhido. Não escolher não é, em si, injusto. Se alguém for escolhido sem menção a suas qualificações, mas devido a seu sangue aristocrático ou porque subornou os membros da comissão de seleção, diremos que, de fato, não merece o cargo. Todos os outros candidatos foram tratados com injustiça. E é possível dizer da boa escolha que tal pessoa a mereceu. Neste caso, porém, é provável que muitas outras pessoas o mereçam, também, e que nenhuma delas o merece realmente. Os cargos não se encaixam nos indivíduos da mesma forma que os veredictos. Supondo-se uma seleção honesta, ninguém pode reclamar de ter sido tratado injustamente – mesmo que, da perspectiva do próprio cargo ou das pessoas que dele dependem, se tenha escolhido o candidato errado. Isso fica mais claro no caso dos cargos eletivos, mas a argumentação se aplica a todos os cargos, com exceção dos puramente honorários, que são exatamente iguais aos prêmios. (Talvez seja porque todos os cargos são, em parte, honorários, que as ideias de mérito entram sorrateiramente na discussão dos diversos candidatos).
Walzer traz o seguinte exemplo: X é o candidato mais qualificado à direção de um hospital porque possui mais talentos administrativos, dos que normalmente se requer no cargo, do que qualquer outro candidato. Mas um grupo que deseja conduzir o hospital em determinada direção convence os colegas da comissão de seleção a escolher Y, que apoia a iniciativa. Podem estar certos ou errados com relação ao que querem fazer com o hospital, mas foram injustos com X.
Segundo Walzer, decerto o título “doutor”, por exemplo, pertence a todos os indivíduos que alcançaram certas notas em avaliações médicas. O teste propriamente dito simplesmente decide quem, e quantos, são esses indivíduos. Deve ser, então, verdadeiro que qualquer pessoa que estude com afinco, trabalhe com o material necessário e passe no exame merece ser médico: seria injusto negar-lhe o título. Mas não seria injusto negar-lhe estágio ou residência em determinado hospital. A comissão de seleção do hospital não precisa escolher o candidato com nota mais alta; não faz apenas a análise retrospectiva dos exames, mas faz uma previsão do que o candidato ainda deve realizar. Nem é injusto que os pacientes se recusem a consultá-lo acerca de seus problemas médicos. Seu título é mera qualificação para que ele procure uma vaga e um consultório; não lhe dá direito a nenhum dos dois. O exame que concede o título é importante, mas não é o mais importante; e é só porque o exame não é o mais importante que lhe concedemos a importância que tem. Se os cargos, com toda sua autoridade e suas prerrogativas, pudessem ser merecidos, estaríamos à mercê do merecimento. Pelo contrário, concedemo-nos espaço para a escolha.
Até o título de “doutor”, salienta Michael Walzer, embora seja como um prêmio porque pode ser merecido, difere do prêmio porque não pode ser merecido definitivamente. Concede-se prêmio por desempenho, e como não é possível desfazer o desempenho, não se pode tomar o prêmio. Uma subsequente descoberta de fraude poderia levar à desmoralização do ganhador, mas na medida em que o desempenho permanece, também permanece a honra, haja o que houver depois. Os títulos profissionais, pelo contrário, estão sujeitos a contínua ponderação pública, e mencionar a nota do exame que concedeu o título não tem valor se o desempenho posterior não estiver à altura dos padrões publicamente estabelecidos. A desqualificação, com certeza, envolve um processo judicial ou semijudicial, e estaríamos inclinados a dizer que somente os indivíduos “merecedores” podem ser desqualificados com justiça. Novamente, o afastamento de determinado cargo é outro assunto. Os métodos podem ser, e costumam ser, de caráter político; o mérito não é obrigatoriamente levado em conta. Para alguns cargos há métodos tanto judiciais quanto políticos: os presidentes, por exemplo, podem ser cassados ou derrotados na candidatura à reeleição. Só podem ser cassados, presume-se, se o merecerem; podem ser derrotados sem relação com o mérito. A norma comum é que tanto os títulos quanto determinados cargos sejam policiados – aqueles com relação a questões de mérito, estes com relação a quaisquer questões que sejam de interesse para pessoas interessadas.
Se considerássemos todos os cargos como prêmios e distribuíssemos (e redistribuíssemos) tanto os títulos quanto os postos específicos com base no mérito, a estrutura social resultante seria a meritocracia. A distribuição desse tipo, com esse nome, é sempre defendida pelas pessoas que pretendem, entende Walzer, garantir consideração somente aos qualificados, e não cargos aos que merecem. Porém, supondo-se que existem algumas pessoas comprometidas com a criação de uma meritocracia restrita, vale parar um pouco para analisar os méritos filosóficos e práticos dessa ideia. Não há como fundar uma meritocracia, a não ser exclusivamente com base no histórico dos candidatos. Daí o vínculo íntimo entre meritocracia e os exames, pois o exame produz um registro simples e objetivo. O funcionalismo público universal requer um exame universal para o funcionalismo público. Isso nunca existiu, mas existe um exemplo que se aproxima bastante para ser útil.
O sistema chinês de exames
Durante uns treze séculos, o governo chinês recrutou suas autoridades por meio de um sistema complicado de exames. O sistema só se aplicava ao serviço público imperial. A sociedade civil era um mundo de laissez-faire: não havia exames para empresários, médicos, engenheiros, astrônomos, músicos, naturalistas, especialistas em prognósticos ocultos etc. O único motivo para participar do que um acadêmico chamou de “vida de exames” era obter um cargo estatal. Mas os cargos eram a mais importante fonte de prestígio social na China pós-feudalismo. Embora o poder do dinheiro tenha crescido nesses treze séculos do sistema de exames, e fosse possível, durante muito tempo, comprar cargos, o alto status era quase sempre associado a notas altas. A China era governada por uma classe de profissionais, e cada membro dessa classe possuía um certificado de mérito.
Da perspectiva do imperador, a finalidade dos exames era, em primeiro lugar, acabar com a aristocracia hereditária e, em segundo lugar, recrutar talentos para o Estado. “Os homens de ambições incomuns estão presos no meu saco!”, gabava-se o imperador T’ai-tsung (627-649) depois de assistir a um desfile de recém-formados. Mas a armadilha só funcionaria se houvesse igualdade de oportunidades, ou algo semelhante, para os súditos do imperador. Assim, o governo se esforçava (sempre com recursos inadequados) por produzir, juntamente com os exames, um sistema de escolas públicas locais e bolsas de estudo, e tomava todos os tipos de precauções para evitar a cola e o favoritismo. O sistema escolar nunca foi concluído; as precauções nunca atingiram eficiência total. Mas as crianças camponesas, os Horatio Algers da antiga China, conseguiram subir a “escada do êxito” e os exames de formatura eram notavelmente justos, pelo menos até a decadência do sistema no século XIX. Em inúmeros casos famosos, os examinadores que tentavam favorecer os parentes eram condenados à morte – castigo ao nepotismo jamais igualado no Ocidente. E o resultado era um grau de mobilidade social que talvez também nunca tenha sido igualado no Ocidente, nem em tempos modernos.
Na esfera dos cargos, o trabalho em equipe é fundamental. Hoje em dia, cada vez mais esse trabalho está sujeito às restrições jurídicas que pretendem garantir justiça e algo semelhante à objetividade: avaliação igualitária para candidatos igualmente sérios. Porém pouca gente defende a eliminação total das comissões, aplicar o mesmo exame a todos os candidatos (jamais poderão fazer a mesma entrevista) e tornar automática a posse do cargo para os candidatos que obtiverem tal nota. A comissão é apropriada em razão de seu caráter representativo. O que está em jogo, afinal, não é um cargo abstrato, mas determinado posto, em determinado momento, em determinada repartição ou órgão público, onde outras pessoas e é, ela mesma, o palco do debate constante. A escolha que ela faz, embora limitada por certos critérios universais, é acima de tudo particularista em caráter. Os candidatos não são apenas adequados ou não adequados em termos gerais; também se encaixam ou não se encaixam na vaga que querem preencher. Este último caso é sempre questão de critério e, portanto, requer que exista um grupo de juízes que discutam entre si. Algumas avaliações de adequação, no sentido de “encaixar-se”, são descartadas. Mas a lista de qualidades relevantes é sempre longa – como a dos sessenta “méritos”; e nenhum candidato as possui todas. A particularidade do cargo tem paralelo na particularidade dos candidatos. São indivíduos, com pontos fortes e fracos bem diferentes. Mesmo que alguém acreditasse na escolha da única pessoa merecedora (ou “mais merecedora”) dentre todas, não haveria como identificar tal pessoa. Os membros da comissão de seleção discordariam acerca do equilíbrio adequado de pontos fortes e fracos, e discordariam acerca do verdadeiro equilíbrio de qualquer candidato. Nisso, também começariam por emitir juízos e terminariam com uma votação.
Os defensores da meritocracia têm em mente um objetivo simples, porém de longo alcance: um lugar para cada pessoa e cada pessoa em seu lugar. Houve época em que se achava que Deus cooperava nesse esforço; atualmente, há necessidade de interferência do Estado.
Mas essa é uma concepção mística da ordem social e está longe da nossa interpretação complexa de pessoas e lugares. Insinua que, em princípio, dadas as informações completas, todas as seleções devem ser unânimes, com as quais concorde não só a comissão de seleção e os candidatos bem-sucedidos, mas também os candidatos reprovados – exatamente como os veredictos judiciais, quando até os criminosos condenados devem ser capazes de reconhecer que receberam o que merecem. Na prática, as seleções não são assim; nem é possível que sejam assim, a não ser que imaginemos um mundo onde, além de poder prever, pudéssemos prognosticar o desempenho futuro de todos os anos por vir. Mesmo então, desconfia-se que as argumentações das comissões de seleção seriam diferentes das argumentações dos júris, mas a natureza exata da diferença seria difícil de discernir.