Cargos públicos, segundo Michael Walzer – 1ª Parte – A Igualdade Simples

Justiça Distributiva: Perspectivas e Concepções

Capítulo X
Cargos públicos, segundo Michael Walzer – 1ª Parte – A Igualdade Simples

Conforme o pensamento de Michael Walzer:

o cargo público é qualquer posto no qual toda comunidade política tem interesse, e escolhe a pessoa que o detém ou regulamenta as normas para sua escolha. O controle das nomeações é essencial. A distribuição de cargos não é questão de livre escolha individual ou de pequenos grupos. A iniciativa privada não pode apropriar-se dos cargos, que também não podem ser hereditários nem vendidos no mercado.

Essa é, naturalmente, uma definição estipuladora, pois as posições sociais e econômicas do tipo que abrange foram, no passado, distribuídas de todas essas maneiras. Nas sociedades que Weber chamava de “patrimoniais”, até os postos burocráticos do Estado eram considerados propriedades pelos poderosos e passavam de pai para filho. Não havia necessidade de nomeação; o filho sucedia o pai da mesma forma que na posse das terras; e, embora o governo declarasse o direito de reconhecer, não poderia recusar o título. Atualmente o mercado é a principal alternativa ao sistema de cargos, e os detentores do poder do mercado ou seus representantes autorizados – gerentes de pessoal, gerentes de fábrica etc. – são a principal alternativa às autoridades constituídas. Mas a distribuição de funções e postos no mercado está cada vez mais sujeita à regulamentação política.

A ideia de cargo é bem antiga. No ocidente, desenvolveu-se mais claramente dentro da Igreja cristã e adquiriu seus contornos especiais no decorrer de uma longa luta para se desobrigar do mundo privatizado do feudalismo. Os chefes da Igreja faziam argumentações: primeiro, os postos eclesiásticos não podiam pertencer a quem os detivesse nem a seus patronos feudais e doados a amigos ou parentes; em segundo lugar, não podiam ser negociados nem vendidos. O nepotismo e a simonia (venda de favores divinos, bênçãos, cargos eclesiásticos, prosperidade material, bens espirituais, coisas sagradas, objetos ungidos, etc. em troca de dinheiro; o ato de pagar por sacramentos e consequentemente por cargos eclesiásticos ou posições na hierarquia da igreja) eram pecados, e pecados que seriam provavelmente cometidos se pessoas físicas controlassem a distribuição dos cargos religiosos. Os cargos deviam ser distribuídos, pelo contrário, pelas autoridades constituídas da Igreja, que agiam em nome de Deus e servindo a Ele. Deus, poderíamos dizer, foi o primeiro meritocrata; e a piedade e os conhecimentos divinos eram as qualificações que Ele exigia de Suas autoridades (também, sem dúvida, capacidade administrativa, talento no trato com o dinheiro e savoir-faire político). A liberdade de decisão não foi abolida, mas deslocada dentro da hierarquia oficial e submetida a uma série de restrições.

Os cargos são importantes demais para serem considerados espólio da vitória. Ou as vitórias são transitórias demais, as maiorias instáveis demais, para dar forma ao funcionalismo público de qualquer Estado moderno. Pelo contrário, o concurso tornou-se o mecanismo distributivo fundamental – tanto que hoje em dia, num estado como Massachusetts (Estados Unidos), por exemplo, praticamente o único cargo para o qual não há concurso (à exclusão do governador e de seu gabinete, e de diversos comitês consultivos e reguladores) é o de “operário”, e mesmo para ele as normas de contratação são rigidamente supervisionadas. Não restaram espólios. Os empregos vêm-se transformando continuamente em cargos, em nome da honestidade e da eficiência (“bom governo”) e também em nome da justiça e da igualdade de oportunidades.

A luta pela ideia de cargos na Igreja e no Estado compõe duas partes de uma história que agora tem uma terceira parte: uma ampliação gradual da ideia na direção da sociedade civil. Hoje a afiliação à maioria das profissões se tornou “oficial” à medida que o Estado controla as normas de licenciamento e participa da regulamentação das normas de exercício profissional. De fato, qualquer emprego para o qual seja exigido um diploma acadêmico é uma espécie de cargo, já que o Estado também controla o reconhecimento das instituições acadêmicas e quase sempre é ele mesmo que as administra. Em princípio, pelo menos, as notas e os diplomas não estão à venda. Talvez seja a pressão do mercado que obrigue os patrões a exigir diplomas (cada vez mais avançados); mas no decorrer da seleção acadêmica, da formação e dos exames, criam-se normas que não são simplesmente padrões do mercado e nas quais os agentes do Estado têm grande interesse.

Já que os cargos são relativamente escassos, esses processos devem ser justos para todos os candidatos, e é preciso que sejam considerados justos; e tal justiça também exige que sua administração seja afastada das mãos de responsáveis por decisões independentes. Essa autoridade vem-se politizando cada vez mais, isto é, vem entrando na área do debate público, sujeita a ponderação e regulamentação governamental. O processo começou com as profissões, mas recentemente se ampliou e passou a impor restrições a muitos tipos de métodos de seleção. Na verdade, as leis que definem “critérios justos de contratação” e os veredictos judiciais que exigem programas de “ação afirmativa” têm como consequência a transformação de todos os empregos aos quais se aplicam em algo semelhante aos cargos.

Nestes últimos exemplos, a preocupação principal é a justiça, e não a concorrência eficiente ou honesta, embora estas duas também possam ocorrer. Walzer acha justo dizer que a tendência atual da política e da filosofia política segue na direção da transformação de todos os empregos em cargos – em nome da justiça. Esta é, certamente, a consequência da última (e menos polêmica) parte do segundo princípio de Rawls de justiça social: “As desigualdades sociais e econômicas devem ser organizadas de modo que fiquem (...) vinculadas a cargos e postos abertos a todos em condições de igualdade justa de oportunidades”. Qualquer cargo pelo qual há competição, e em que a vitória de um constitui vantagem social ou econômica sobre os outros, deve ser distribuído “com justiça”, segundo critérios anunciados e métodos transparentes. Seria injusto se algum indivíduo, por motivos próprios ou por razões não conhecidas e aprovadas publicamente, simplesmente distribuísse cargos e postos. Os cargos devem ser conquistados em concorrência pública. A meta é uma meritocracia perfeita, a concretização (finalmente!) do lema revolucionário francês – a carreira aberta aos talentos. Os revolucionários de 1789 achavam que, para se atingir essa meta, nada mais era necessário do que a destruição do monopólio aristocrático e a abolição de qualquer barreira jurídica ao progresso individual. Era também a opinião de Durkheim um século depois, quando ele definiu a boa sociedade como a que exigisse uma divisão “orgânica” da mão de obra, onde “nenhum obstáculo, de qualquer natureza, impede [os indivíduos] de ocupar na estrutura social o lugar (...) compatível com suas faculdades”. De fato, contudo, esse resultado feliz exige atuação concreta do Estado: aplicação de exames, definição de critérios para formação e diplomação, regulamentação dos métodos de seleção e recrutamento. Só o Estado pode combater as consequências particularizantes da iniciativa individual, do poder do mercado e dos privilégios empresariais, e garantir a todos os cidadãos oportunidades iguais de atingir os padrões universais.

Assim, a antiga divisão de trabalho é substituída por um funcionalismo público universal e se estabelece uma espécie de igualdade simples. A soma das oportunidades disponíveis é dividida pelo número de cidadãos interessados, e todos têm as mesmas oportunidades de conquistar um lugar. De qualquer forma, essa é a tendência contemporânea, embora ainda haja muito a fazer para atingir seu objetivo lógico: um sistema que contenha todos os empregos cuja ocupação possa constituir vantagem econômica ou social, e ao qual todos os cidadãos tenham acesso igualitário. É um quadro que não deixa de ser atraente, mas exige que entremos em acordo com relação ao fato de todos os empregos serem realmente cargos, e que precisam ser redistribuídos, se não pelos mesmos motivos, pelos mesmos tipos de motivos. Serão motivos obrigatoriamente meritocráticos, pois nenhum outro motivo vincula carreiras e talentos. As autoridades governamentais terão de definir os méritos necessários e garantir sua aplicação uniforme. Cada cidadão se esforçará por adquirir esses méritos e, então transformar a aquisição num novo monopólio. As desigualdades sociais, observou Durkheim, “expressarão exatamente as desigualdades naturais”. Não, expressarão um conjunto natural de desigualdades naturais ou artificiais associadas a frequentar escola, fazer exame, sair-se bem numa entrevista, levar uma vida disciplinada e obedecer a ordens. O que pode ser funcionalismo público universal além de uma hierarquia vasta e complicada, dentro da qual predomina uma mistura de virtudes intelectuais e burocráticas? Existe, porém, outro tipo de igualdade simples, que pretende evitar exatamente esse resultado. É menos importante, nessa tese, que todos os empregos se transformem em cargos do que cada cidadão seja transformado em detentor de cargo, menos importante democratizar a seleção do que tornar aleatória a distribuição (por sorteio ou rodízio, por exemplo). Essa era a interpretação grega do funcionalismo público, mas na era pós-clássica costuma ser mais representada por certo tipo de radicalismo populista, que tem sua fonte num profundo ressentimento contra detentores de cargos – padres, advogados, médicos e burocratas. O ressentimento pode, sem dúvida, gerar uma política complicada e sutil. A exigência espontânea e irrefletida dos radicais populistas, porém, sempre foi realmente simples: morte a todos detentores de cargos!

O radicalismo populista é antieclesiástico, antiprofissional e anti-intelectual. Assume essa forma, em parte, porque os detentores de cargos são sempre pessoas de origem humilde que, traidores da classe – servem aos interesses da classe alta. Mas a hostilidade também está ligada ao que Hamlet de Shakespeare chama de “insolência do poder”: isto é, as reivindicações especiais que os detentores de cargos costumam fazer, de que têm direito a seus cargos e, portanto, à autoridade e ao status que acompanham esses cargos, pois foram concursados e diplomados segundo as normas socialmente aceitas. O cargo é conquista deles, e os destaca como superiores aos concidadãos.

As formas mais ponderadas de populismo tiveram papel importante primeiro no pensamento protestante, depois no democrático e no socialista. O convite de Lutero ao sacerdócio de todos os crentes teve seu paralelo em praticamente todos os tipos de exercício de cargos. Assim, o empenho revolucionário reiterado de simplificar a linguagem do direito para que todo cidadão possa ser seu próprio advogado; ou a argumentação de Rousseau a favor de um sistema de escolas públicas nas quais os cidadãos comuns se revezariam nos cargos docentes; ou a exigência jacksoniana de rodízio nos cargos públicos; ou o ideal leninista de uma sociedade na qual “toda pessoa alfabetizada” também seja burocrata. O argumento fundamental em todos esses exemplos é que o próprio exercício do cargo, e não o mero poder e distribuir cargos, representa monopólio injustificável. Se não é preciso matar os detentores de cargos, é necessário pelo menos repudiar suas declarações de qualificação e prerrogativa. Abaixo o latim, então, e qualquer outra forma de conhecimentos herméticos que tornem misterioso ou difícil o exercício dos cargos.

Walzer comenta que o rodízio nos cargos pode coexistir com um sistema de seleção profissional. O exército alistado moderno é um exemplo óbvio, e não é difícil imaginar organizações semelhantes em muitos outros setores da vida social. Conforme indica este exemplo, porém, é difícil livrar-se totalmente da seleção. Os antigos atenienses elegiam seus generais porque achavam ser um caso em que as qualificações eram necessárias e que a loteria seria inadequada. E, quando Napoleão disse que todo recruta carregava um bastão de marechal na mochila, não estaca dizendo que qualquer recruta poderia ser marechal. Os cargos que exigem formação demorada ou qualidades especiais de liderança não podem ser prontamente universalizados; cargos escassos só podem ser ocupados por um número limitado de pessoas, e não raro o rodízio de indivíduos assumindo-os e deixando-os atrapalharia muito tanto a vida privada quanto as atividades econômicas. Nem todos podem ser diretores de hospital, mesmo que a rígida hierarquia dos hospitais contemporâneos esteja desgastada. Ainda mais importante: nem todos podem ser médicos. Nem todos podem ser engenheiros gerentes de fábrica, mesmo que a fábrica seja democraticamente administrada. Mais importante também é que nem todos podem trabalhar nas fábricas mais bem-sucedidas ou agradáveis.

Um funcionalismo público universal apenas substituiria a supremacia do poder da iniciativa privada pela supremacia do poder do Estado – e, depois, pela supremacia do talento ou da educação, ou de qualquer qualidade que as autoridades do Estado achassem necessária para o exercício do cargo. O problema é deter a universalização dos cargos, cuidar em especial do trabalho propriamente dito e de seu significado social, traçar um limite (deverá ser traçado de forma distinta em culturas distintas) entre os processos de seleção que a comunidade política deve controlar e os que deve deixar nas mãos de indivíduos e colegiados. Novamente, o rodízio nos cargos públicos só funcionará para alguns cargos, e não para outros; e a ampliação para outros tipos de predomínio. O problema não é acabar com o monopólio dos qualificados, mas impor limites a suas prerrogativas. Quaisquer que sejam as qualidades que resolvamos exigir – conhecimentos de latim, ou a capacidade de passar num exame, fazer um discurso, ou fazer os melhores cálculos de custo/benefício – devemos fazer questão de que não se tornem a base de reivindicações tirânicas de poder e privilégios. Os detentores de cargos devem ser rigidamente mantidos fieis às finalidades do cargo. Assim, como exigimos comedimento, também exigimos humildade. Se esses dois requisitos fossem devidamente entendidos e postos em prática, a distribuição de cargos se avultaria menos no pensamento igualitário do que acontece atualmente.

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