Capítulo II
Uma abordagem da justiça
A necessidade de uma teoria da justiça está relacionada com a disciplina de argumentar racionalmente sobre um assunto do qual é muito difícil falar. Afirma-se às vezes que a justiça não diz respeito à argumentação racional; que se trata de ser adequadamente sensível e ter o faro certo para a injustiça. É fácil ficar tentado a pensar nessa linha. Quando deparamos, por exemplo, com uma alastrada fome coletiva, parece natural protestar em vez de raciocinar de forma elaborada sobre a justiça e a injustiça. Contudo, uma calamidade seria um caso de injustiça apenas se pudesse ter sido evitada, em especial se aqueles que poderiam ter agido para tentar evitá-la deixaram de fazê-lo. Qualquer que seja o raciocínio argumentativo, ele só pode intervir partindo da observação de uma tragédia e chegando ao diagnóstico da injustiça. Além disso, casos de injustiça podem ser muito mais complexos e sutis que a estimação de uma calamidade observável. Poderia haver diferentes argumentos sugerindo diversas conclusões, e as avaliações sobre injustiças podem não ser nada óbvias.
Os requisitos de uma teoria da justiça incluem fazer com que a razão influencie o diagnóstico da justiça e da injustiça. Por centenas de anos, aqueles que escreveram sobre a justiça em diferentes partes do mundo buscaram fornecer uma base intelectual para partir de um senso geral de injustiça e chegar a diagnósticos fundamentados específicos de injustiça. Tradições de argumentação racional sobre a justiça e a injustiça têm histórias longas – e impressionantes – por todo o mundo; com base nelas, podemos considerar esclarecedoras sugestões de razões de justiça.
Ainda que a justiça social tenha sido discutida por séculos, a disciplina recebeu um impulso especialmente forte durante o Iluminismo europeu nos séculos XVIII e XIX, encorajado pelo clima político de mudança e também pela transformação social e econômica em curso na Europa e nos Estados Unidos. Há duas linhas básicas e divergentes de argumentação racional sobre a justiça entre importantes filósofos ligados ao pensamento radical daquele período. A distinção entre as duas abordagens recebeu muito menos atenção do que ela ricamente merece.
Uma abordagem – iniciada por Thomas Hobbes no século XVII, e seguida, de diferentes modos, por destacados pensadores, como Jean-Jacques Rousseau – concentrou-se na identificação de arranjos institucionais justos para uma sociedade. Essa abordagem, que pode ser chamada, segundo Amartya Sen (A Ideia de Justiça - tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. Companhia das Letras: São Paulo, 2012, p. 36) de “institucionalismo transcendental”, tem duas características distintas. Primeiro, concentra a atenção no que identifica como a justiça perfeita, e não nas comparações relativas de justiça e injustiça. Ela apenas busca identificar características sociais que não podem ser transcendentais com relação à justiça; logo, seu foco não é a comparação entre sociedades viáveis, todas podendo não alcançar os ideais de perfeição. A investigação visa identificar a natureza do “justo”, em vez de encontrar algum critério para afirmar que uma alternativa é “menos injusta” do que outra.
Segundo, na busca da perfeição, o institucionalismo transcendental se concentra antes de tudo em acertar as instituições, sem focalizar diretamente as sociedades reais que, em última análise, poderiam surgir. É claro que a natureza da sociedade que resultaria de determinado conjunto de instituições depende necessariamente também de características não institucionais, tais como os comportamentos reais das pessoas e suas interações sociais. No detalhamento das prováveis consequências das instituições, se e somente se uma teoria institucionalista transcendental as comentar, são feitas algumas pressuposições comportamentais que ajudam na operação das instituições escolhidas.
Ambas as características se relacionam com o modo “contratualista” de pensar, que Thomas Hobbes iniciou e que foi levado adiante por John Locke, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant. Um “contrato social” hipotético, supostamente escolhido, claramente diz respeito a uma alternativa ideal para o caos que de outra forma caracterizaria uma sociedade, e os contratos que foram mais discutidos por tais autores lidavam, sobretudo, com a escolha de instituições. O resultado geral foi o desenvolvimento de teorias da justiça que enfocavam a identificação transcendental das instituições ideais.
Contudo, é importante observar que, na busca de instituições perfeitamente justas, os institucionalistas transcendentais às vezes também apresentaram análises profundamente esclarecedoras dos imperativos morais e políticos para o comportamento socialmente apropriado. Isso se aplica em especial a Immanuel Kant e John Rawls: ambos participaram de investigações institucionais transcendentais, mas também forneceram análises abrangentes dos requisitos das normas comportamentais. Ainda que eles tenham focado as escolhas institucionais, suas análises podem ser vistas, de forma mais ampla, como abordagens da justiça focadas em arranjos, em que arranjo se refere tanto ao comportamento certo como às instituições certas. É claro que existe um contraste radical entre uma concepção de justiça focada em arranjos e uma concepção focada em realizações: esta necessita, por exemplo, concentrar-se no comportamento real das pessoas, em vez de supor que todas sigam o comportamento ideal.
Em comparação com o institucionalismo transcendental, vários outros teóricos iluministas adotaram uma variedade de abordagens comparativas endereçadas às realizações sociais (resultantes de instituições reais, comportamentos reais e outras influências). Diferentes versões desse pensamento comparativo podem ser encontradas, por exemplo, nas obras de Adam Smith, do Marquês de Condorcet, de Jeremy Bentham ,Mary Wollstonecraft, Karl Marx, John Stuart Mill, entre vários outros líderes do pensamento inovador nos séculos XVIII e XIX. Ainda que esses autores, como suas ideias muito diferentes sobre as exigências da justiça, tenham proposto modos bastante distintos de fazer comparações sociais, pode-se dizer, sob o risco de exagerar um pouco, que todos estavam envolvidos em comparações entre sociedades que já existiam ou poderiam surgir, em vez de limitarem suas análises a pesquisas transcendentais de uma sociedade perfeitamente justa. Tais comparações focadas em realizações tinham com frequência como principal interesse a remoção de injustiças evidentes no mundo que viam.
A distância entre as duas abordagens, o institucionalismo transcendental, de um lado, e a comparação focada em realizações, de outro, é bastante significativa. Por acaso, é sobre a primeira tradição – a do institucionalismo transcendental – que a filosofia política hoje predominante se apoia amplamente em sua exploração da teoria da justiça. A exposição mais influente e significativa dessa abordagem da justiça pode ser encontrada na obra do mais importante filósofo político de nossa época, John Rawls. De fato, em seu livro “Uma teoria da justiça” (tradução de A theory of justice), os “princípios de justiça” são definidos inteiramente em relação a instituições perfeitamente justas, embora Rawls também investigue – de forma muito esclarecedora – as normas do comportamento certo em contextos políticos e morais.
Vários preeminentes teóricos contemporâneos da justiça também adotaram, de modo geral, a via transcendental – tais como Ronald Dworkin, David Gauthier, Robert Nozick entre outros. Suas teorias – que forneceram insights diferentes, mas importantes sobre as exigências de uma “sociedade justa” – compartilham o objetivo de identificar regras e instituições justas, embora as identificações desses arranjos institucionais assumam formas muito distintas. A caracterização de instituições perfeitamente justas transformou-se no exercício central das teorias da justiça modernas.
Consideremos uma das muitas mudanças que podem ser propostas para a reforma da estrutura institucional do mundo de hoje para torná-los menos parcial e injusto (em termos de critérios amplamente aceitos). Tomemos, por exemplo, a reforma das leis de patentes para fazer medicamentos eficientes e de produção barata sejam disponibilizados com mais facilidade aos pacientes que necessitam deles, mas são pobres (por exemplo, aqueles que sofrem de AIDS) – claramente uma questão de alguma importância para a justiça global. A pergunta que temos que fazer aqui é: quais reformas internacionais precisamos fazer para tornar o mundo um pouco menos injusto?
No entanto, esse tipo de discussão sobre a melhoria da justiça, em geral, e do alargamento da justiça global, em particular, pareceria mera “conversa fiada” para aqueles que estão convencidos, pela alegação hobbesiana – e rawlsiana -, de que necessitamos de um Estado soberano para aplicar os princípios de justiça através da escolha de um conjunto perfeito de instituições: essa é uma implicação direta da consideração de questões de justiça dentro da estrutura do institucionalismo transcendental. A justiça global perfeita, por meio de um conjunto de instituições impecavelmente justo, mesmo que tal coisa pudesse ser identificada, sem dúvida exigiria um Estado global soberano, e na ausência desse estado, as questões de justiça global pareceriam intratáveis aos transcendentalistas.
Consideramos a vigorosa recusa da relevância da “ideia de justiça global” por um dos filósofos mais originais, influentes e humanos do nosso tempo, Thomas Nagel. Em seu artigo bastante envolvente, publicado na Philosophy and Public Affairs (“The problem of global justice”), em 2005, ele se baseia exatamente em sua compreensão transcendental de justiça para concluir que a justiça global não é um assunto viável para a discussão, uma vez que as demandas institucionais necessárias para um mundo justo não podem ser satisfeitas em nível global neste momento. Como ele diz: “Parece-me muito difícil resistir à alegação de Hobbes sobre a relação entre a justiça e a soberania”, e “se Hobbes estiver certo, a ideia de justiça global sem um governo mundial é quimera” (p. 115).
No contexto global, Nagel se concentra, portanto, em esclarecer outras demandas, distinguíveis das exigências da justiça, como a “moralidade humanitária mínima” {que “governa nossa relação com todas as outras pessoas” - (ob. cit., 130-3)}, e também as estratégias de longo prazo para uma mudança radical nos arranjos institucionais {“Acredito que o caminho mais provável para uma versão da justiça global se dê através da criação de estrutura globais de poder manifestamente injustas e ilegítimas que sejam toleráveis para os interesses dos atuais Estados-nações mais poderosos (idem, 146-7)}.
Na abordagem rawlsiana, a aplicação de uma teoria da justiça também exige um conjunto extenso de instituições que determina a estrutura básica de uma sociedade plenamente justa. Não surpreende que Rawls abandone de fato seus próprios princípios de justiça quando se trata de avaliar a forma de pensar sobre a justiça global, e não siga na direção fantasiosa de querer um Estado global. Em uma contribuição posterior, “O Direito dos Povos” (tradução para “The Law of peoples”), Rawls invoca um tipo de “complemento” a sua busca nacional (ou dentro do país) das exigências da “justiça como equidade”. Mas esse suplemento vem em forma muito magra: através de uma espécie de negociação entre os representantes dos diferentes países sobre algumas questões muito elementares de civilidade e humanidade – que podem ser vistas como características muito limitadas da justiça. Na verdade, Rawls não tenta derivar “princípios de justiça” que possam emanar dessas negociações (de fato, nada que delas emergisse poderia receber esse nome), e concentra-se, em vez disso, em certos princípios gerais de comportamento humanitário.