E ali, naquele momento ao revê-lo, olhei bem no fundo dos seus olhos e me perguntei: Por que quando eu era criança eu queria tanto ser um menino?
Eu ficava em casa junto com as minhas bonequinhas, todas aquelas Barbies bonitas que eu adorava quando ganhava, mas que logo eram esquecidas, abandonadas, e assim que eu enjoava delas, ia correndo abrir o portão e ver os meninos jogando bola.
- Nenhuma menina na rua, ai que saco! Eu pensava.
Eu queria muito aprender a jogar futebol, mas os meninos nem me davam a chance de tentar aprender, nunca me deixavam entrar no time.
Então eu simplesmente voltava para as minhas bonecas e sempre fingia que elas estavam jogando futebol, realizando nelas a minha vontade.
Hum... como eu amava assistir os jogos de futebol com papai, mas na verdade quem o influenciava a assistir os jogos era eu. Papai nunca foi muito chegado a futebol, o que tornava muito estranha essa minha sina pelo esporte, já que eu não tinha nenhuma influência da família. Eu simplesmente gostava.
E quando papai embarcava, eu assistia aos jogos sozinha e mamãe não entendia porque eu vibrava tanto ao ver uma bola rolando no campo. Na verdade eu também não sabia bem o que era isso, da onde vinha essa vontade de jogar e essa paixão por assistir jogos, e não via problema nenhum nisso. Mas o que eu não entendia de verdade era por que as pessoas tinham tanta implicância com o fato de eu ser louca por futebol, e quando fui crescendo descobri que futebol não era uma “Paixão nacional” e sim uma “Paixão masculina nacional”.
Fui crescendo e então me tornei uma bela adolescente. Eu corria atrás dos meus objetivos, e não dava trégua para as imposições da sociedade. Eu não tinha consciência disso, mas estava me tornando uma autêntica feminista... Nunca me conformei com o fato dos meninos não me quererem no time. Comprei uma bola e fiquei treinando sozinha em casa, por um bom tempo, e não achei nada muito difícil. E então planejei o dia em que iria invadir o campo e mostrar para eles o que eu sabia. Eu podia permanecer sem jogar com eles, mas eu queria aparecer lá, pelo simples orgulho de mostrar que sabia tão bem ou até melhor que eles.
O dia chegou. Era uma sexta à noite, dia de pelada, esperei a melhor parte do jogo, e entrei no meio do campo para dar o meu show de embaixadinhas, que era o que eu mais gostava e me divertia fazendo. Dominei a bola com o pé, coxa, cabeça e peito. E enquanto os meninos me olhavam estatelados, ainda tive o prazer de saber que nenhum deles daria o show que dei, já que eu sempre os observava.
E então chegou o momento em que ele parou na minha frente, aquele, o mais “marrento” de todos, o “machão”, o “valentão” do bairro, uma “muralha”, sua voz chegava a estremecer quem ouvia, e ele me fez uma proposta:
- Se você conseguir passar por nós todos, chegar na trave e fazer um gol, você joga com a gente, mas se não, você nem pense em passar novamente por aqui!
Aceitei.
E todos me miravam com um olhar muito cínico, afinal, era uma “missão impossível”, eles eram muitos, e eram bons.
Os primeiros foram os mais fáceis de driblar, ninguém tirava a bola do meu pé, e depois de muita sorte e esforço eu estava quase chegando à trave, a muralha parou na minha frente, o mesmo que me fizera a proposta, me olhava com um ar debochado, e seus olhos diziam: “Você nunca vai passar por mim, você é uma MENINA”. Aquilo me deu um ódio tão profundo, chutei a bola com a maior força que eu tinha, não para acertar o gol, mas sim as bolas dele. E incrivelmente consegui. Fiquei parada sem reação, quando o vi cair de joelhos, gritando de dor; fiquei impressionada, quando vi o machão, CHORAR! É isso mesmo, aquele que dizia sempre que homem não chora e que lugar de mulher é na cozinha, chorando de dor por ter levado uma bolada, e o pior; UMA BOLADA DE UMA MULHER!!
Era um momento estranho para todos e nossos papéis se inverteram a partir dali. Depois daquilo eu corri do campo, meio assustada, e nunca mais o vi.
Mas hoje, hoje não! Hoje eu não correria. Era ele. Depois de tanto tempo eu estava revendo-o, e tive a certeza de que onde eu estava era o meu lugar. Depois de muito batalhar eu estava entrando lá naquele clube profissional para assinar o meu contrato e pouco tempo depois passei a integrar a seleção brasileira feminina de futebol. Olhei para ele: era um dos cozinheiros do clube, aquele que dizia que lugar de mulher é na cozinha, o garoto machista que me perseguiu durante toda a minha infância e adolescência, se tornara cozinheiro.
E mais do que nunca pude ter a certeza de que eu não precisava ser um menino para ter as melhores coisas, ou ser aceita em um time, não só um time de futebol, mas o time da vida, aquele que às vezes lhe exclui por você ser mulher, mas você deve correr atrás dos seus objetivos, e driblar a sociedade. Sei que é difícil, mas digo a todas: Sejam feministas!
E sei que não fui a única a sofrer esse preconceito todo, na verdade a maioria das meninas aqui da seleção passaram por isso, e como eu, todas as que estão aqui conseguiram vencer essa partida. E espero que a minha história sirva de inspiração para outras mulheres, que da mesma forma que eu consegui me superar, elas saibam que podem também!
É, é ela quem eu estou vendo agora, a que me humilhou na frente de todos os meus amigos. Olhá-la me doía, ainda mais na condição em que eu me encontrava... Ela fazia eu me lembrar da minha infância e adolescência, dos traumas que ficaram entalados na minha garganta, e ignorados em algum lugar da minha mente, e eu só pude lembrar que eles ainda existiam quando a olhei...
Minha infância não foi nada fácil, meu pai foi sempre muito machão, falava grosso, queria mandar na casa, se achava “o rei da cocada preta”, e acima de tudo não chorava. Nunca vi o meu pai chorar! E ele não só era assim como exigia que fôssemos também, éramos eu e mais dois irmãos, minha mãe era então a única mulher da casa, era quase uma escrava, fazia tudo, papai não chegava nem perto da cozinha e além de não arrumar, fazia questão de bagunçar tudo. E o mais longe de casa que minha mãe ia era ao supermercado fazer compras, e olhe lá.
Meu pai sempre dizia:
- Aprenda a ser um homem.
E se aquilo era realmente ser um homem, eu o fazia fervorosamente, o monstro que me tornei era para mim o modelo de homem ideal, meu pai se orgulhava de mim. Eu tratava minhas namoradas como um lixo. Cresci com a imagem de que a mulher deveria ser inferiorizada, e quando elas mereciam, eu até batia nelas.
Tratava todas as mulheres assim, menos uma!
Ela era a única que não deixava me aproximar (afinal, à primeira vista todas as garotas me queriam, eu era o gostosão, padrão de beleza impecável). Ela era minha vizinha. Eu sempre a via correndo atrás de seus objetivos. Nos trabalhos de escola ela sempre era a líder, e não dava a mínima para o que a sociedade pensava. Ela fazia o que dava na telha, sem pensar nas consequências, desde aquela época nascia ali uma feminista...
Mas aquele não era um “comportamento ideal” para uma mocinha, afinal, ela tinha que se por em seu lugar. Como eu tinha absoluta certeza, ela jamais me daria confiança, nem olharia para mim. Possibilidade de namoro impossível, mas eu não iria desistir. Então decidi atacar o seu ponto fraco, a paixão por futebol! Ela adorava jogar bola, era evidente! Eu fazia parte do time da rua, e fiz a cabeça de todos os garotos para não deixá-la jogar. Mexer com a paixão de alguém é algo muito provocante. Então quem sabe assim ela se poria no seu lugar e aceitaria sua condição inferior de mulher? Eu a provoquei nesse sentido até onde pude... Mas estava para chegar o dia que eu não mais poderia...
Era uma sexta feira, e as coisas não estavam bem lá em casa. Minha mãe resolveu não mais ser submissa e ela e meu pai discutiam o tempo todo, um inferno! Eu não aguentava mais aquela situação. Era dia de pelada e fui jogar possesso de ódio. E de repente na melhor parte do jogo, ela apareceu. Dominou a bola. E começou a fazer embaixadinhas feito louca. Ela sempre nos olhava jogar, mas não achei que fosse chegar a esse ponto de atrevimento, aquela vadia tinha exagerado, não aguentava mais a presença dela, esse jeito abusado e feminista dela me fez chegar ao limite. Foi ai que decidi fazer a proposta na qual sabia que ela nunca iria ganhar:
- Ô piranha, é você contra todos. Se conseguir driblar geral e fazer o gol, o campo é seu, mas se não, nunca mais apareça na minha frente!.
Tinha certeza de que ela perderia, coitada! Eu me livraria dela e enfim a poria em seu lugar, como sempre quis!
Então começou. Ela driblou os mais fracos e conseguiu chegar a mim. Ah, mas por mim ela não passava, não mesmo.
Ela me olhou planejando uma mira e chutou. E de repente senti uma dor muito forte, um grito feroz saiu da minha garganta, e em segundos eu estava no chão, sem respirar, e senti um filete quentinho e molhado sair dos meus olhos involuntariamente. Ela não ganhara a aposta, mas fez uma coisa muito mais humilhante que isso, acertara as minhas bolas e me fizera CHORAR. EU ESTAVA CHORANDO POR CAUSA DE UMA MULHER.
Nunca mais apareci naquela rua. Mudei-me de cidade o mais rápido possível. Eu evitava qualquer tipo de contato com os velhos amigos, nunca mais vira ninguém. E a partir dali minha vida virou um inferno, só tive derrotas. “Malditas sejam as mulheres” era o que eu pensava sempre que acontecia algo ruim, pois em minha insana consciência cheia de traumas e travas elas eram as culpadas de tudo,os seres inferiores, fui criado para pensar assim...
Mas a pior das minhas decepções foi me encontrar na condição de cozinheiro e vê-la como uma das novas contratadas para a seleção brasileira feminina de futebol. É, dessa vez era ela que estava ali, me olhando cinicamente. Estava acontecendo de verdade, e pela primeira vez na minha vida depois de tanto quebrar a cara com essa minha cabeça dura, pude chegar à conclusão de que nada do que fiz em toda minha vida valera a pena. O tempo que perdi sendo machista, humilhando as mulheres, e inferiorizando o sexo feminino, eu poderia ter estudado e corrido atrás dos meus objetivos - como ela fez - e me tornar alguém na vida.
E o mais importante de tudo foi perceber que nem de longe eu me tornara um homem de verdade como pensava que era durante toda a minha juventude. Eu estava acabado e me perguntei:
- Como o meu pai queria que eu tivesse me tornado um homem de verdade, se ele nunca me ensinara a ser um?
Ana Carolina Corrêa Pereira Haber, 7/9/12.
_____________________
Ana Carolina Corrêa Pereira Haber, tem hoje 18 anos e foi nascida em 21/01/1996, na cidade de Macaé-RJ.
Estudou a vida inteira em escola pública e concluiu o ensino médio recentemente no ano de 2013 no Colégio de Aplicação . Ana, sempre foi uma menina dedicada as artes. Desde pequena cantava e fazia teatro na igreja. durante anos praticou aulas de dança, como o Ballet e o Hip hop. E até na capoeira já se aventurou. Mas sua grande paixão é pelo teatro.
Aos 11 anos começou seus estudos musicais, especificamente no canto e piano, oque continua até hoje. Sempre gostou muito de escrever, começou com simples poemas aos 12, e no ensino médio ganhou em primeiro lugar do estado do Rio de Janeiro o concurso nacional de redação, 8° Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero.Carolina acredita que a linguagem cantada e escrita se encontram e são a combinação perfeita, pois a música não deixa de ser um texto harmonizado. Muito interessada em discutir e aprender mais sobre temas polêmicos como aborto, direitos humanos e desigualdade de gênero, Carol não para por aí e pretende sempre discutir e escrever mais sobre esses temas, durante a longa caminhada que ainda tem pela frente.