Luz Maldonado contraiu a doença de Chagas por um alimento e em uma área urbana de classe média e alta de Caracas. Foto: Estrella Gutiérrez/IPS
O mal de Chagas pode ser contraído pela ingestão de alimentos contaminados, em áreas urbanas e não necessariamente pobres. Pesquisadores venezuelanos avançam para sua cura.
Caracas, Venezuela, 17 de dezembro de 2012 (Terramérica).- O mal de Chagas, terceira doença infecciosa da América Latina, muda de rosto e se urbaniza, enquanto um novo tratamento mostra uma luz para milhões de afetados. A mudança de rosto é exemplificada pela venezuelana Luz Maldonado, professora de 47 anos que há cinco contraiu a enfermidade por beber um suco contaminado, em um foco que atingiu 103 pessoas em uma escola de Chacao, município de classe média e alta de Caracas. Um menino morreu e a vida dos demais mudou para sempre.
As microepidemias por contágio alimentar são novas e, segundo fontes científicas ouvidas pelo Terramérica, agravam a virulência porque milhares de parasitas ingressam repentinamente na corrente sanguínea. As maiores foram detectadas em 2005 no Brasil, em dezembro de 2007 em Caracas, e em 2010 na localidade vizinha de Chichiriviche de la Costa.
Maldonado convive com cefaleias, edemas e erupções, problemas de articulação, perda de memória, taquicardias, insônia e depressão, em boa parte efeitos colaterais dos medicamentos contra o parasita. Por trás da doença está o Trypanosoma cruzi, parasita unicelular transmitido por insetos hematófagos que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), afeta entre 17 e 20 milhões de pessoas na América Latina. Além disso, quase 25% da população regional está em risco de contrair a enfermidade, que mata anualmente pelo menos 50 mil pessoas.
Segundo a OMS, o mal de Chagas é uma das 13 enfermidades tropicais mais desatendidas, a terceira de origem infecciosa na América Latina, atrás da aids e da tuberculose, e a parasitose de maior morbidade e impacto socioeconômico na região. Somente o Uruguai foi declarado, em meados deste ano, livre do inseto que a transmite.
Os dados são relativos porque muitos casos “nunca são diagnosticados”, explicou ao Terramérica a chefe de imunologia do Instituto de Medicina Tropical (IMT), Belkisyolé Alarcón de Nola. Essas pessoas não têm sintomas ou os atribuem a outros males. Morrem décadas depois por um incidente cardíaco ou cerebrovascular, sem vincular ao mal de Chagas, disse a médica e pesquisadora que coordena na Venezuela o acompanhamento dos pacientes com essa doença.
Agora “está superada a imagem de um mal rural e de pobres”, afirmou Nola. “Podemos ter casos em qualquer altitude, latitude ou camada social, e devemos modificar a maneira de enfrentar os vetores. A urbanização invadiu áreas silvestres dos vetores”, acrescentou. Caracas, enclave em um vale a mil metros de altitude, “tem uma espécie de dedos verdes que adentram nela e que são as áreas mais acessíveis para que os vetores cheguem às moradias”, explicou a médica.
Os desmatamentos e queimadas de florestas “deixam com pouca alimentação os chipos”, com são chamados aqui os insetos transmissores, que em outros países recebem nomes como barbeiros, vinchucas, talajes, chinches, chirimachas, pitos ou chichas, detalhou Nola. “Temos vetores por todas as partes e mais ainda com a mudança climática, porque quanto maior o calor, mais favorecida é a reprodução de insetos”, destacou.
Habitualmente, os insetos afetados picam as pessoas e ao ficarem cheios defecam ali mesmo. A pessoa se coça e assim as fezes entram no organismo pela picada ou por outros orifícios, como os olhos, quando coçados. Em Caracas “existe um mau vetor, o Panstrongyilus geniculatus, que é lento e defeca tardiamente”, disse Nola. Mas esse “mau vetor” está se adaptando. “Atraído pelas luzes das casas em áreas urbanas e periurbanas, entra pelas janelas e cozinhas, vagueia por utensílios e alimentos e evacua onde bem entende”, deu como exemplo.
Na transição para a infecção oral, “há muitos pequenos focos, muitos não diagnosticados”, embora nenhum como o de Chacao, “por ser plenamente urbano e pelo número de afetados”, que consumiram suco de goiaba infectadas com fezes do inseto, na escola municipal. Dois tipos de cepas originam o mal de Chagas. Uma afeta do México até o norte da América do Sul e outra do Brasil até o extremo sul. A primeira afeta sobretudo o coração, e a segunda também prejudica esôfago e cólon, disse a especialista do IMT.
Essa enfermidade tem três fases: a primeira, aguda, de casos “com sintomas e quadros muito acentuados” e outros suaves ou confundíveis com outros males. A segunda é indeterminada ou assintomática. Na terceira, crônica, “o tecido do miocárdio é destruído e não se regenera, sendo substituído por tecido fibroso. O coração aumenta de tamanho e sua contração já não é efetiva, manda menos sangue para os pulmões e cai paulatinamente em insuficiência cardíaca”, explicou Nola.
Há apenas dois medicamentos indicados pela OMS para erradicar os parasitas: o nifurtimox, de 1960, e o benznidazol, de 1974. Mas a erradicação é parcial quando os parasitas estão alojados em tecidos profundos e na fase crônica. Além disso, o tratamento tem efeitos colaterais. “Os que provocam maior temor são os efeitos neurotóxicos, porque geram moléstias de neuropatia periférica, com sensação de frio, de calor, pés muito sensíveis e grandes cefaleias”, completou Nola.
Entretanto, as descobertas dos pesquisadores venezuelanos, Julio Urbina e Gustavo Benaim, levaram Argentina e Bolívia a realizarem exames clínicos baseados em seus experimentos, enquanto na Venezuela “aspiramos fazer um estudo-piloto também”, informou a médica.
Benaim, chefe do laboratório de sinalização celular e bioquímica de parasitas do estatal Instituto de Estudos Avançados, disse ao Terramérica que o objetivo é “atacar o parasita sem afetar o ser humano, como faz o tratamento atual, e conseguir drogas para a fase crônica, ainda inexistentes”. O estudo foi baseado em uma propriedade do Trypanosoma cruzi: não apresenta colesterol em suas membranas, mas sim o esterol ergoesterol. “Acabando com o esterol, que lhes é indispensável, acaba-se com o parasita”, explicou Benaim.
Distribuição mundial e patologia. Foto: Cortesia Gustavo Benaim
Há medicamentos efetivos para inibir a síntese do ergoesterol, como o posaconazol, aprovado pela Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos, embora apenas para fungos com esse esterol. Os pesquisadores vincularam isto com outra descoberta clínica: pacientes chagásicos cujas arritmias eram tratadas com amiodarona melhoravam substancialmente. “A aplicação nos parasitas é brutal, o efeito é letal para eles”, disse, entusiasmado, Benaim em seu laboratório.
A amiodarona já é usada para tratar arritmias e 30% dos afetados pelo mal de Chagas nos Estados Unidos a recebem. “Não é inócua”, pois contém iodo, mas seus efeitos secundários são muito inferiores aos do tratamento atual, segundo Benaim. “Estudamos o mecanismo de ação do posaconazol e da amiodarona; sabia-se que ambos são inibidores de esteroides, mas demonstramos que a amiodarona também desorganiza a regulação do cálcio dos parasitas”, explicou o pesquisador. “Sua combinação produz um efeito que se potencializa, permite baixar as doses e limita os efeitos colaterais”, destacou.
Outro novo medicamento contra a arritmia, a dronedarona, com menos iodo e mais eliminável, também foi testado em seu laboratório e “resultou muito exitoso, com mais potência e efeitos mais rápidos” para aniquilar o parasita, revelou Benaim. Um artigo sobre o novo tratamento foi publicado em outubro na Nature Review Cardiology. Além do mal de Chagas, pode funcionar em outras parasitoses, como leishmaniose. “Um bom inibidor dos esteroides pode acabar com essas doenças parasitárias, vistas como de pobres e por isso desatendidas”, afirmou. Nesses casos, “não é negócio pesquisar tratamentos, uma triste realidade”, ressaltou o cientista. Envolverde/Terramérica
* A autora é correspondente da IPS.