Recostada à cabeceira de sua cama, a mulher lê um livro. Trata-se da biografia de um homem velho e solitário que vive em estado deplorável numa enorme mansão, já bastante degradada pelo tempo. Certo dia, o homem sonha que sua casa é invadida por caçadores, ladrões e assassinos. Os caçadores buscam presas na mata que cresceu no quintal e mesmo dentro da casa abandonada. Já os ladrões e assassinos querem roubar o pouco que restou ao homem, considerando-o rico.
O medo da violência e da morte leva o homem a acordar e a se dar conta de que tudo é real. Sua casa foi mesmo invadida e ele corre o risco de morrer. Sozinho, contudo, não tem como se defender. A narrativa se torna real também para a leitora, que, ansiosa em ajudar o velho, descobre que o livro é um portal. Arrastada por ele, a mulher acaba mais personagem da história do que era enquanto leitora.
Daí em diante e até o fim, a mulher e o homem ocupam o mesmo lugar no espaço da biografia. Mas a narrativa continua. Do lado de fora, estão o narrador e o autor, estupefatos com o fenômeno que aconteceu: a história fugiu do controle de ambos e passou a se escrever. Tanto o homem quanto a mulher estão ameaçados pelos ladrões e assassinos. Como num romance de Rubem Fonseca, a violência praticada contra ambos é gratuita, sobretudo depois que os delinquentes nada encontraram para roubar.
Vendo-os assim, inermes ante os invasores, o narrador deixa sua posição neutra e resolve também viajar pelo portal do livro, imiscuindo-se na trama com o fim de ajudar os personagens. O leitor dirá que o narrador não existe enquanto personagem. Trata-se de uma afirmativa discutível. Sua situação depende do autor. Nas fabulações de José Saramago, é muito comum o narrador-personagem, que se situa fora do tempo da ficção e tece comentários sobre a trama.
Mas quem fica do lado de fora para continuar narrando o que sucede na casa? O autor assume a posição do narrador, enquanto este mergulha no portal do livro para ajudar o morador e a leitora. Eu, que escrevo esta pequena história, sou seu autor, e passo agora a narrá-la diretamente, na primeira pessoa do singular. Dentro da casa, as três pessoas não conseguem enfrentar os marginais. Os caçadores atiram contra os animais. As balas se perdem e vagam a esmo. Os ladrões deixam de procurar algum objeto valioso, porventura existente, e passam a procurar o morador, a mulher e o narrador, todos eles agora personagens de uma narrativa não prevista por mim, autor. Digo que a história não pode fugir do meu controle. Não acredito que tramas possam escapar ao controle do autor, como comumente falam alguns críticos e analistas literários. Considero esta autonomia uma baboseira.
Todavia, é o que está acontecendo. Não era nesta direção que eu pretendia encaminhar a biografia. Literalmente, ela fugiu de mim sem qualquer sentido metafórico. Lembrei de um conto escrito e abandonado por meu primo em segundo grau Renan Perlingeiro Abreu. Onze fugitivos de uma prisão de segurança máxima se embrenham numa selva. Pouco a pouco, eles vão morrendo picados por cobras e esfaimados. Eles vagam em círculos, até a morte do último. Renan, então, abandona o conto porque não sobrara ninguém para escrevê-lo. Propus-lhe a figura do narrador onisciente, que não existe como personagem. Ele não aceitou minha solução e deu o caso por encerrado.
Vivo agora um dilema parecido com o de Renan. Apeei-me da posição de autor para assumir o lugar do narrador, que se tornou personagem. De fora da casa do homem velho, posso ver tudo o que acontece no cenário em que se trava uma trama digna de Julio Cortazar. Ainda que escondidos dos bandidos, os personagens correm perigo. Que devo fazer pra ajudá-los? Não posso telefonar para a polícia e contar história tão bizarra. A casa e os personagens existem. Mas qual o endereço da mansão?
Vislumbro apenas uma saída: também eu vou mergulhar no portal. Recorro a duas armas de fogo potentes e me transformo em personagem. Assim se encerra a narrativa: no meio. Lamento, leitor. Não há mais ninguém para escrever este conto infame. Você não ficará sabendo do seu desfecho. O homem idoso e a mulher leitora já eram personagens, cada um no seu espaço. O narrador passou a ser personagem e se juntou aos outros dois, movimentando-se todos no mesmo espaço. Agora, eu também me junto a eles. Ninguém mais escreverá esta biografia romanceada porque todos se tornaram personagens. Não houve tempo para encontrar um outro autor que me substituísse.
Mas alguém bate à minha porta. Vou ver quem é antes da minha viagem. Ora, ora! É Renan, que se oferece para continuar a narrativa. Seja bem vindo.