Do tupi ïsa’ùua, significando formiga grande, também conhecida como cortadeira e carregadeira. A saúva é um inseto da ordem Hymenoptera, juntamente com outras formigas, vespas e abelhas. As formigas de todas as espécies – e as há em grande número – reúnem-se na família Formicidea. As fêmeas são aladas, mas apenas no período nupcial. Nesta fase, ela é conhecida como tanajura. As operárias são ápteras.
As formigas brasileiras dividem-se em sete subfamílias, compreendendo 1.015 espécies, entre elas a lava-pés e a tocandira, conhecidas por suas ferroadas doloridas. A saúva (Atta sp) se inscreve na subfamília Myrmicineae juntamente com a quenquém (Acromyrmex ambiguus), que cultivam fungos como alimento em casas subterrâneas. As da saúva são enormes e chamadas de panelas, com acesso à superfície por galerias e olheiros.
As espécies de saúva sempre representaram uma barreira natural à agricultura. Mesmo os cultivos das sociedades indígenas eram alvo delas. A civilização européia implantada nos trópicos americanos tem sido duramente atacada pelas saúvas. Quase todas as lavouras, as construções, as estradas, as represas, as pontes e outros empreendimentos podem se transformar em objetivo de seus combates implacáveis.
Tamanha voracidade não poderia passar despercebida aos cronistas coloniais e aos naturalistas europeus. José de Anchieta, escrevendo em 1560, anota que, “Das formigas, só parecem dignas de menção, as que estragam as árvores; as chamadas Içá têm cor arruivada, esmagadas cheiram a limão, abrem grandes buracos debaixo do chão. Nas primaveras, isto é, em Setembro, se o sol está quente, soltam enxames, quase sempre no dia seguinte ao de chuva e trovões.” Gabriel Soares de Sousa, em 1587, inculpa a saúva por falta de vinhedos no Brasil. Pero de Magalhães Gandavo chama-a de “Rei do Brasil”, pois, segundo ele, quem mandava na lavoura era a saúva.
Saúva
O marechal José Arouche de Toledo Rondon fez um relato candente do poder de destruição desta formiga: “As formigas vermelhas chamadas saúvas na língua do país, são insetos formidáveis e só elas comem mais pastagens que os gados. O lavrador vê com seus olhos que em uma noite tosquiam todo um arvoredo, deixando-o incapaz de produzir frutos um par de anos; elas pegam tudo que é cultura sem excetuar os pastos bravios e ainda ervas amargosas. Em uma palavra, é o maior flagelo que têm os lavradores, pois além do dano diário, a sua multiplicação vai inutilizando as terras com incrível rapidez, em grande parte da Capitania.”
Foi o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em suas infatigáveis viagens entre 1816 e 1822, quem criou a célebre frase “Ou o Brasil mata a saúva ou a saúva mata o Brasil”, impressionado com os estragos causados pelo inseto social. Mário de Andrade, em Macunaíma, usa com freqüência uma paródia: “Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são.” H. Clarck, em 1867, exclamou que “o Brasil é um grande formigueiro.” Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, o personagem central do romance vê seus planos de prosperidade falirem diante do assédio da saúva.
Reconhecendo os prejuízos causados pela saúva a uma economia de mercado, os governos brasileiros, em distintos níveis, começaram a legislar sobre o combate ao inseto. Em 1785, a Câmara da Cidade do Salvador, no mais antigo diploma legal conhecido sobre o assunto, declarou guerra aos formigueiros nas zonas rurais, obrigando o lavrador, sob pena de multa e de prisão por 30 dias, a destruir formigueiros em sua propriedade. Em 1903, a Prefeitura de Manaus criou um serviço para a extinção da formiga. Entre 1910 e 1912, o governo de São Paulo confiou a Renato Zamith a direção do serviço de combate às saúvas. Acompanhou o Distrito Federal, em 1917, dispondo sobre a eliminação de formigueiros em terras públicas e particulares. No ano seguinte, a prefeitura de Belo Horizonte criou o Serviço de Extinção da Formiga. A mesma providência foi tomada pela Prefeitura de São Paulo, em 1935, criando o Serviço de Extinção de Formigueiros. Verifica-se, assim, que, no século XX, o combate à saúva é progressivamente avocado pelo Estado, tornando-se uma questão de interesse público.
Nesta guerra sem quartel, muitos soldados foram recrutados e as mais diversas e letais armas empregadas. Em vão. Os efetivos das várias espécies de saúva se renovam rapidamente e retomam o combate. Guilherme S. Capanema, depois Barão de Capanema, recebeu concessão para extinguir a saúva por meio de sulfato de carbono, em 1873, sendo a mesma prorrogada por mais dez anos em 1882. No ano seguinte, Eduardo B. R. Franco recebeu concessão para empregar máquina de matar formigas injetando gases asfixiantes em suas cavernas. Gases de lenha e enxofre eram introduzidos nas galerias com uma fornalha. Ainda em 1883, Antonio F. Dias recebeu o direito de fabricar um produto de nome sulfurina e um trado para perfurar formigueiros. Um aparelho denominado Alambique Formicida, concebido por Eduardo B. R. Franco, teve concessão para poder operar em 1885. Usando nove substâncias químicas, Joaquim F. Romariz ganhou, em 1887, o direito de fabricar o Formicida Romariz. Reduzindo para cinco constituintes, Valentim G. Guedes recebeu autorização para fabricar o Formicida Paulista. Entre 1891 e 1892, Samuel A. Bataillard ganhou o privilégio de fabricar um misto de formicida com um aparelho, origem dos que se usam ainda hoje. Um método completamente novo e que evita o acesso da formiga à planta foi concebido em 1893 por José Zucchi, prenunciando os processos preconizados pela ecoagropecuária.
Vê-se, portanto, que os métodos do período colonial e dos primeiros tempos do Império estavam sendo substituídos por métodos químicos que podiam ser industrializados. Há inimigos naturais da saúva, como as moscas da família Phoridae, cujas larvas parasitam as operárias. As formigas carnívoras, como a lava-pés, a bandeirante, a correição e a cuiabana, atacam a saúva para devorá-las. Besouros do gênero Canthon, como o Canthon dives, e o C. virens, predam a içá quando das revoadas. O besouro Taeniolobus sulcipes (família Carabidae) foi visto atacando içás em formigueiros iniciais em São Paulo, assim como já se verificou o ataque do percevejo Vescia angrensis, da família Reduviidae atacando formigas no sauveiro. Aranhas, lagartos, lagartixas, rãs e sapos são excelentes caçadores de saúva em dia de revoada ou já sem as asas. Entre as aves, destacam-se bem-te-vis, pardais, siriris, sabiás, galinhas, perus, gaviões e outras espécies que se alimentam de saúvas. Dos mamíferos, destaquem-se o tamanduá e o tatu, sendo este mais eficiente em suas tocas que atingem a panela do formigueiro. Contudo, o poder de fogo deles parece ser insuficiente para controlar um exército com grande capacidade de recrutamento, ainda mais que os inimigos naturais da saúva estão em processo de extinção com os desmatamentos, a drenagem de áreas úmidas e o emprego de agrotóxicos.
Ana Primavesi, uma das expoentes da chamada ecoagropecuária, ensina que a plantação do gergelim em torno dos olheiros atrai as formigas para as folhas desta planta, que, carregadas para o formigueiro, não permitem a produção de fungos, levando as formigas à morte por fome. Outro sistema é espalhar mandioca-brava em torno dos olheiros, intoxicando as saúvas com ácido cianídrico. Pode-se ainda colher terra do próprio sauveiro para cercar uma planta ou um canteiro que se quer proteger do ataque das formigas, ou ainda carvão moído e farinha de ossos. Nenhuma saúva transpõe a barreira.
Objeto de incontáveis estudos por biólogos e engenheiros agrônomos, a saúva ainda não mereceu a devida atenção dos historiadores e cientistas sociais. João Dornas Filho escreveu um ensaio intitulado “A saúva e o Brasil”, incluído em seu livro Aspectos da Economia Colonial, hoje bastante esquecido. Depois de passar em revista a opinião dos cronistas e naturalistas, ele relata, já invadindo a esfera das representações mentais, um processo analisado por Vieira Fazenda acerca de uma querela entre frades católicos e saúvas, no Convento de Santo Antônio, Capitania do Maranhão, início do século XVIII. A demanda foi formalizada perante o tribunal da Divina Providência. Os franciscanos atuaram na defesa das rés, alegando em seu favor que receberam a vida e os hábitos diretamente do Criador, dando exemplo de trabalho, prudência, caridade e piedade, pois davam sepultura às mortas. Além do direito à vida, elas antecederam todos na ocupação da terra. Depôs, como testemunha de defesa, o capitão Urbano Duarte, maior de 94 anos, dizendo que as rés eram criaturas a quem não se pode imputar malícia, pois não sabem distinguir o bem do mal, e que as encontrou ali quando o convento foi fundado. A sentença final determinou que os frades destinassem parte das terras do Convento para que as formigas se instalassem definitivamente nelas sob pena de excomunhão.
Neste mesmo estudo, Dornas Filho trata dos embates entre colonos e saúvas e do uso da tanajura como alimento, tema também abordado por Luís da Câmara Cascudo.
Bicho-de-pé
Fêmea de bicho-de-pé com abdômen distendido
Inseto da ordem Sifonáptera, que compreende todas as pulgas, num total de 1.100 espécies em todo o mundo e com cerca de 60 espécies no Brasil. As espécies de bicho-de-pé reúnem-se na família dos hectopsilídeos. Embora a pulga e o bicho-de-pé sejam ectoparasitas, o primeiro se distingue do segundo por sugar o sangue do hospedeiro sem precisar abrir galerias em sua pele e por saltar mais alto. Com a capacidade de propulsão da pulga, o ser humano adulto saltaria uma barreira de 255 metros de altura. O bicho-de-pé salta mais baixo, atingindo até a altura do joelho de uma pessoa e preferindo se alojar embaixo das unhas dos dedos dos pés. Trata-se da menor pulga, alcançando o macho em torno de 1 mm. A fêmea pode crescer até o tamanho de uma pequena ervilha quando fecundada.
Existem várias espécies de bicho-de-pé. Elas se reúnem no gênero Tunga, do tupi ‘tuna. A que parasita o ser humano é a Tunga penetrans. Ao contrário das pulgas, que podem transmitir a peste, caso piquem um rato contaminado pelo bacilo Pasteurella pestis, o bicho-de-pé só representa perigo à saúde humana se o orifício escavado na pele permitir qualquer tipo de infecção, que pode causar gangrena. A parasitose provocada por ele chama-se tungíase e impressionou bastante os europeus dos períodos colonial e imperial. Se a saúva atacava as lavouras, o bicho-de-pé atacava os lavradores e outros colonos. Raro o viajante e naturalista que não foram infestados por ele.
O mais completo estudo sobre o sifonáptero continua sendo “Tunga – nome indígena desaparecido do falar brasileiro e fixado na denominação científica de um ectoparasita de origem discutida”, incluído em Estudos da Língua Nacional, de Arthur Neiva.
Parece que o mais antigo europeu a dar notícia do invertebrado foi Oviedo, em Chronica de Las Índias, publicada em 1551. Hans Staden, Jean de Léry, Gabriel Soares de Souza, Claude D’Abéville, Guilherme Piso, George Margrave e outros fizeram registro dele. De todos, o que melhor analisou a tunga foi Piso. No século XIX, quase todos os naturalistas estrangeiros sentiram a sua presença na carne. O príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied, com seu proverbial senso de observação, não se deixa abalar, mesmo atacado pelo inoportuno animal. Freireyess, que, juntamente com Sellow, integrou a expedição de Maximiliano, dedica, em livro correspondente a outra viagem, uma página inteira ao bicho-de-pé encontrado entre a Serra da Estrela e o Rio Paraíba do Sul, segundo o naturalista, local em que ele pululava em maior quantidade em todo o Brasil. Resignadamente, Saint-Hilaire lamenta que “Desde o começo dessa viagem não havíamos cessado, eu e meus empregados de ser atormentados pelos bichos de pé…” Hermann Burmeister também não escapou do ataque do ectoparasita.
A tungíase tratava-se de uma endemia de tal forma generalizada no campo e na cidade durante os períodos colonial e imperial que os habitantes do país já haviam se acostumado a ela no seu cotidiano. Eis porque os registros acerca dela geralmente competiam aos estrangeiros, que se assustavam com seu ataque.
Sobre a pátria de origem do animal, Arthur Neiva polemiza com Octavio de Freitas, que, em 1935, publicou o livro Doenças Africanas no Brasil. Com base no suíço Samuel Braun, que percorreu a região africana do Congo entre 1610 e 1620, Freitas sustenta que a Tungapenetrans foi trazida para o Brasil pelos africanos escravizados. Já Neiva recorre a Staden e, principalmente, a Gabriel Soares de Souza, que considera um observador meticuloso, para defender a tese de que o invertebrado é originário da América.
Atualmente, a tungíase está restrita a alguns redutos, onde continua como endemia facilmente curável pela medicina caseira, sem se constituir em problema preocupante de saúde pública. No entanto, pelos transtornos causados aos europeus, representando a bem dizer uma barreira natural à colonização, o bicho-de-pé está a merecer um estudo pelo ângulo da ecohistória.
Referências
CARRERA, Messias. Entomologia para Você. São Paulo: Edusp, 1963.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Histórico das Palavras Portuguesas de Origem Tupi. São Paulo/Brasília: Melhoramentos/EDUnB, 1999.
DORNAS FILHO, João. Aspectos da Economia Colonial. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1959.
MARICONI, Francisco A. M. As Saúvas. São Paulo: Editora Agronômica Ceres, 1970.
NEIVA, Arthur. “Tunga – nome indígena desaparecido do falar brasileiro e fixado na denominação científica de um ectoparasita de origem discutida”. Estudos da Língua Nacional. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940.
PRIMAVESI, Ana. Manejo Ecológico de Pragas e Doenças. São Paulo: Nobel, 1988.
SILVA, R. F. A Legislação sobre a formiga saúva no Brasil. Rio de Janeiro: Tip. Jornal do Commercio, 1935.
SOFFIATI NETTO, Aristides Arthur. O Nativo e o Exótico: Perspectivas para a História Ambiental na Ecorregião Norte-Noroeste Fluminense entre os Séculos XVII E XX. Rio de Janeiro: Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996 (dissertação de mestrado).
* Pesquisador do Núcleo de Estudos Socioambientais da Universidade Federal Fluminense/Campos dos Goytacazes – RJ.