Receita para desastre

Tomemos, primeiramente, um sistema montanhoso recente e com acentuados declives, como a Serra do Mar, com idade de 60 milhões de anos. Sendo nova, em termos geológicos, a decomposição de sua superfície não formou ainda solos profundos. Sob eles, predominam lajedos, ou seja, rocha viva. Mesmo assim, esses solos permitiram o desenvolvimento da Mata Atlântica, com árvores de grande porte, porém com raízes dispersas horizontalmente.

Tomemos, também, as partes baixas no sopé das montanhas, para onde, normalmente, as águas das chuvas correm e se acumulam. Nessas partes, é comum correrem rios e formarem-se lagoas. A vegetação nativa pode ser herbácea, arbustiva e arbórea. Tanto a vegetação original das montanhas quanto a da planície retêm água da chuva nas folhas. Esta água volta à atmosfera com a evaporação. Outra parte se infiltra no solo e vai para o lençol freático. Por fim, a terceira parte corre na superfície até encontrar rios e lagoas e chegar ao mar.

A partir deste quadro, acrescentemos uma boa dose de desmatamento no topo, nas encostas das montanhas e na planície. Drenemos as lagoas total ou parcialmente e retilinizemos os tortos cursos d’água. Na superfície desnuda do substrato, depositemos lixo e permitamos a construção de casas pobres ou de mansões. Permitamos o mesmo junto às margens de rios e lagoas. A rigor, não há necessidade de desmatar nem superfícies inclinadas nem superfícies planas. Autorizemos, por exemplo, a construção de prédios na base das montanhas, em áreas livres de vegetação nativa.

Agora, acrescentemos chuvas torrenciais ou moderadas, mas continuadas. Consideremos que as explicações de meteorologistas, como El Niño, umidade gerada pela floresta amazônica, frentes e massas frias e quentes, são insuficientes. Que é preciso, agora, levar em conta o aumento progressivo de temperatura do planeta, que leva o fenômeno do El Niño e a evaporação da Amazônia e das águas do mar a se acentuarem. Que altera sensivelmente as frentes e massas frias e quentes, aumentando a precipitação das chuvas. Em várias partes do Brasil, os verões, antes chuvosos, mostraram-se áridos. Em outras partes, choveu além do esperado. O abril de 2010, mês de outono, tem se revelado atípico nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, segundo meteorolo gistas e climatologistas, pois está chovendo, em pouco tempo, muito mais que a média mensal. É raro algum especialista em clima explicar por que.

Despejemos estas chuvas torrenciais ou continuadas em superfícies inclinadas com vegetação nativa e casas na base montanhosa. A parte da água que se infiltra no solo atinge a rocha viva e corre por ele sob a terra. Aos poucos, ela satura o solo, que desce morro abaixo, soterrando as casas construídas no sopé.

No caso das encostas desnudas e ocupadas por lixo e/ou casas, o processo é muito mais rápido, pois a esponja da floresta foi suprimida. Mesmo sem atingir a laje de pedra, no subsolo, pode haver deslizamentos que arrastam lixo e casas, causando muitas mortes. Água, terra e dejetos correm para as partes baixas e inundam os rios e lagoas, já entupidos por lixo e esgotos e cercados de ruas, avenidas, estradas e casas construídos em sua área natural de cheia. Mais outro desastre: casas e bens materiais arrastados pelas águas e inundações.

Há também o problema das estradas em áreas nativas e rurais que funcionam como verdadeiras represas, pois não há, por conta da engenharia, a preocupação em construir sistemas adequadamente dimensionados para o fluxo de água sob as rodovias. E o mais grave é que os governos, mesmo contando com o mapeamento das áreas de risco, fazem vista grossa ao uso perigoso delas, licenciam construções ilegais sobre elas, implantando infraestrutura de luz e de água e equipamentos públicos. Eles próprios, os governos, constroem nessas áreas, como se não houvesse diferenças na topografia dos terrenos, como se não houvesse sequer terrenos.

Os resultados são cada vez mais catastróficos. Mas parece que só as catástrofes têm mostrado à sociedade, aos governantes e aos empresários que a natureza existe e que não pode ser ignorada impunemente. O triste é que eles só se convencem da sua existência depois de muitas perdas e de muita dor.

Será que me refiro aos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro? Será que tomo como exemplo o norte-noroeste fluminense? Ou tudo não passa de mera coincidência?

Publicado na Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 18 de abril de 2010

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