Crise sobre os escombros do muro

Professor de História faz uma análise sobre a importância da queda do Muro de Berlim, em novembro de 89

“Lembro da tristeza quase desesperada de alguns marxistas quando da queda do Muro”
 
Arthur Soffiati nasceu no Rio de Janeiro a 10 de fevereiro de 1947. Morou em Campinas, Curitiba, Paranaguá, Rio, São Fidélis e Campos. Licenciou-se em História pela Faculdade de Filosofia de Campos (Fafic), especializou-se em História Moderna e Contemporânea pala Universidade Católica de Minas, cursou mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalhou como professor no Liceu de Humanidades de Campos e na Fafic. Desde 1985, integra os quadros da Universidade Federal Fluminense. Autor de vários livros, em 1977, ajudou a funda o Centro Norte Fluminense para Conservação da Natureza. Tem, portanto, 32 anos ininterruptos de ativismo em defesa do meio ambiente.

Há 20 anos o mundo assistia a derrubada do muro de Berlim, alegria para uns e tristeza quase desesperadora para os socialistas. Esse clima de comemoração no entanto retorna ao mesmo tempo em que o mundo enfrenta as consequências de mais uma crise do capitalismo. Paralelamente a China que este ano comemora o 60º aniversário da fundação do regime comunista, “se constitui numa das mais poderosas economias capitalistas do mundo, com grande crescimento e competitividade.”

Nesse clima de “difícil previsão”, o professor e ambientalista Arthur Soffiati concede esta entrevista concordando com o pensamento de Imannuel Wallerstein “que prevê uma crise estrutural geral para o capitalismo, mas não consegue vislumbrar que sistema vai substituí-lo, esperando que este novo sistema seja pautado pela democracia, pela justiça social e pelo respeito aos limites da natureza”.  

Monitor Campista -  O que representou para o mundo a queda do muro de Berlim? É o símbolo do fracasso  do socialismo?
Arthur Soffiati - A queda do Muro de Berlim representou o início de um processo histórico que selou o fim da Guerra Fria e o fim de uma experiência socialista marxista bastante distante do projeto político de Karl Marx. Logo após a queda do muro, aconteceu o fim da União Soviética, que se partiu em vários estados, o fim do Pacto de Varsóvia, que colocava os países do leste europeu no bloco soviético, e o esfacelamento dramático da Iugoslávia, com conflitos sangrentos. Desta experiência, restaram a China, Cuba e a Coréia do Norte. A revolução bolchevique de 1917 foi um acontecimento que deslumbrou socialistas marxistas do mundo inteiro. Esperava-se que ela criasse um sistema que superaria o capitalismo e promovesse a justiça social. No entanto, a partir de Stalin, a União Soviética foi se cristalizando como um Estado centralizado, tendo à frente um líder carismático e ditatorial. A economia estatizada substituiu a burguesia por uma classe de burocratas que não detinha os meios de produção, mas exercia monopólio deles e gozava de regalias, tais como residências suntuosas nas cidades, casas de veraneio e outras vantagens. O regime ditatorial silenciou a oposição e os críticos do sistema vigente, desrespeitando frontalmente qualquer traço de democracia. O país se transformou no centro de um bloco de poder a competir com os Estados Unidos, centro de outro bloco de poder, a fim de mostrar que o socialismo era mais eficiente que o capitalismo em termos econômicos e sociais. No entanto, os trabalhadores e o ambiente pagaram um preço muito alto.    
 
E o que representa a queda de Wall Street  para o mundo? É o símbolo do fracasso do capitalismo?
Será mesmo que Wall Street caiu? Pareceu que a recente crise do capitalismo superaria em profundidade e extensão a crise de 1929-1932, mas já há sintomas inequívocos de recuperação. Tudo indica tratar-se de uma crise conjuntural, e, aqui, abro um parêntese para fazer a distinção entre crise conjuntural e crise estrutural. Uma crise conjuntural é como uma doença que o organismo atingido consegue vencer com ou sem remédio. É como uma gripe que nos abate, mas que superamos e voltamos a ser como éramos. Este tipo de crise é inerente ao capitalismo. O sistema enfrentou várias delas ao longo de seus setecentos anos de história. Algumas foram leves, permitindo que o capitalismo voltasse ao que era anteriormente, como aconteceu após a crise conjuntural entre 1817 a 1851. Outras foram mais profundas e exigiram do capitalismo mudanças estruturais para continuar existindo, como a grande crise representada pelas revoluções do fim do século XVIII, que desembocaram no capitalismo clássico, e a sucessão de crises que se estendeu de 1873 a 1933, que levou à formação do Estado de Bem-Estar Social. Nunca, porém, o capitalismo enfrentou uma crise estrutural no seu todo. Este tipo de crise pode ser comparado à morte de um indivíduo ou à extinção de uma espécie. Embora crises estruturais do capitalismo tenham ocorrido na Rússia, na China, no leste europeu e em Cuba, para só citar os casos mais conhecidos, o sistema capitalista continua existindo, apesar de necessitar trocar de roupa de vez em quando.     

Há espaço para o retorno das discussões ideológicas?
Após a queda do Muro de Berlim e o fim da União soviética, o intelectual norte-americano Francis Fukuyama ingenuamente proclamou o fim da história e das ideologias. Digo ingenuamente porque ele entendia a história restrita à luta entre socialismo e capitalismo, entre os blocos soviético e norte-americano. Quando lhe questionaram acerca das guerras localizadas, ele respondeu que elas não passavam de ajustes a um mundo capitalista e liberal, visto por ele como monótono e tedioso por falta de inimigos. O sociólogo e historiador Immanuel Wallerstein logo demonstrou, de forma muito inteligente e criativa, que era simplismo confundir o fim da Guerra Fria com o fim da história e das ideologias, que o fim de uma ordem mundial abria espaço para a construção de outra ordem. Ele leu os casos do fundamentalismo islâmico, do Irã e do Iraque como manifestações de uma nova ordem que se constituía. Por sua vez, o intelectual britânico Perry Anderson mostrou que o fim da Guerra Fria deixava uma multidão de pobres e miseráveis além de uma crise ambiental planetária. É certo que as ideologias, no seu sentido positivo, se enfraqueceram com o fim da bipolaridade, mas não morreram e voltam a crescer agora, discutindo a democracia, o socialismo e o ambientalismo.
 
Na cartilha do capitalismo: 'estado mínimo', o estado deixou de ser problema e agora  volta a ser solução?
O capitalismo viveu dois momentos de Estado mínimo em atenção aos interesses da burguesia. O primeiro começou a se estruturar com as revoluções industrial e francesa e terminou com a sucessão de crises entre 1873 e 1933, que levou à construção de um Estado intervencionista não para combater o capitalismo, mas para salvá-lo da “ameaça comunista”. O segundo momento começou, na América Latina, com o golpe que derrubou Salvador Allende, no Chile. O economista Milton Friedman, grande defensor de um Estado mínimo, passou, então, a dar as cartas teóricas. O Consenso de Washington ordenou a receita para que um país se tornasse confiável ao sistema financeiro mundial. No Brasil, Collor de Mello foi o presidente que aceitou esta receita e iniciou o chamado neoliberalismo. Não bastou muito tempo para que os problemas sociais e ambientais se agravassem. Hoje, economistas críticos, como Joseph Stiglitz, e até conservadores, como Delfim Neto, condenam o Estado mínimo neoliberal. Respondendo resumidamente a sua pergunta: as duas experiências de Estado mínimo só foram solução para a burguesia, mesmo assim por tempo limitado.   
 
Seria um plano socialista para salvar o capitalismo?
O neoliberalismo sempre foi uma proposta conservadora. Embora exista um socialismo conservador, nunca o neoliberalismo foi apresentado pelo socialismo como solução para o capitalismo, a menos que tenhamos em mente os ex-socialistas Fernando Henrique Cardoso, José Serra, José Genoíno, José Dirceu e Dilma Roussef.
 
Qual o papel da China nos mercados financeiros internacionais?
Lembro da tristeza quase desesperada de alguns marxistas quando da queda do Muro de Berlim, mas do consolo que representou para eles a sobrevivência da China e de Cuba. Num mundo predominante capitalista, a China também acabou “traindo” os socialistas. Jean-Paul Sartre, na década de 1960, chegou a dizer que o comunismo seria alcançado pela via maoísta, e não pela via soviética. Hoje, a China se constituiu numa das mais poderosas economias capitalistas do mundo, com grande crescimento e competitividade. Costuma-se dizer que a economia chinesa é capitalista e que seu capitalismo é estatizado. Temos dificuldades de compreender a China. De fato, no plano político, o estado chinês é centralizado e ditatorial. No plano econômico, existe um pragmatismo que visa mais o crescimento acelerado e o mercado externo.    
 
A divisão do poder no mundo caminha para ser multipolar?
Parece que sim. Com o fim do bloco soviético, os Estados Unidos tiveram a ilusão de uma supremacia unipolar. Logo em seguida, percebeu-se que o fim da Guerra Fria criava espaço para novos atores na esfera capitalista. A Rússia não perdeu sua força de todo. A Comunidade Europeia avançou com voracidade sobre antigos países socialistas do bloco soviético. China e Índia despontaram como potências econômicas. O G-7 mais a Rússia têm em seus calcanhares os países emergentes, que desejam consolidar o G-20. No entanto, esta ordem multipolar não me agrada, por ser capitalista. Imannuel Wallerstein defende a idéia de que o capitalismo não pode viver criando escombros sociais e ambientais e que seus dias estão contados. Ele prevê uma crise estrutural geral para o capitalismo, mas não consegue vislumbrar que sistema vai substituí-lo. Nem eu. De fato, fica muito difícil fazer previsões num contexto tão conturbado e ainda não consolidado. Só espero que este novo sistema seja pautado pela democracia, pela justiça social e pelo respeito aos limites da natureza. Como se pode ver, em mim, as ideologia continuam vivas.
 
Original em:
www.monitorcampista.com.br/pagina.html?materia=40697&edicao=1083&editoria=3

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