“Lembro da tristeza quase desesperada de alguns marxistas quando da queda do Muro”
Arthur Soffiati nasceu no Rio de Janeiro a 10 de fevereiro de 1947. Morou em Campinas, Curitiba, Paranaguá, Rio, São Fidélis e Campos. Licenciou-se em História pela Faculdade de Filosofia de Campos (Fafic), especializou-se em História Moderna e Contemporânea pala Universidade Católica de Minas, cursou mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalhou como professor no Liceu de Humanidades de Campos e na Fafic. Desde 1985, integra os quadros da Universidade Federal Fluminense. Autor de vários livros, em 1977, ajudou a funda o Centro Norte Fluminense para Conservação da Natureza. Tem, portanto, 32 anos ininterruptos de ativismo em defesa do meio ambiente.
Há 20 anos o mundo assistia a derrubada do muro de Berlim, alegria para uns e tristeza quase desesperadora para os socialistas. Esse clima de comemoração no entanto retorna ao mesmo tempo em que o mundo enfrenta as consequências de mais uma crise do capitalismo. Paralelamente a China que este ano comemora o 60º aniversário da fundação do regime comunista, “se constitui numa das mais poderosas economias capitalistas do mundo, com grande crescimento e competitividade.”
Nesse clima de “difícil previsão”, o professor e ambientalista Arthur Soffiati concede esta entrevista concordando com o pensamento de Imannuel Wallerstein “que prevê uma crise estrutural geral para o capitalismo, mas não consegue vislumbrar que sistema vai substituí-lo, esperando que este novo sistema seja pautado pela democracia, pela justiça social e pelo respeito aos limites da natureza”.
Monitor Campista - O que representou para o mundo a queda do muro de Berlim? É o símbolo do fracasso do socialismo?
Arthur Soffiati - A queda do Muro de Berlim representou o início de um processo histórico que selou o fim da Guerra Fria e o fim de uma experiência socialista marxista bastante distante do projeto político de Karl Marx. Logo após a queda do muro, aconteceu o fim da União Soviética, que se partiu em vários estados, o fim do Pacto de Varsóvia, que colocava os países do leste europeu no bloco soviético, e o esfacelamento dramático da Iugoslávia, com conflitos sangrentos. Desta experiência, restaram a China, Cuba e a Coréia do Norte. A revolução bolchevique de 1917 foi um acontecimento que deslumbrou socialistas marxistas do mundo inteiro. Esperava-se que ela criasse um sistema que superaria o capitalismo e promovesse a justiça social. No entanto, a partir de Stalin, a União Soviética foi se cristalizando como um Estado centralizado, tendo à frente um líder carismático e ditatorial. A economia estatizada substituiu a burguesia por uma classe de burocratas que não detinha os meios de produção, mas exercia monopólio deles e gozava de regalias, tais como residências suntuosas nas cidades, casas de veraneio e outras vantagens. O regime ditatorial silenciou a oposição e os críticos do sistema vigente, desrespeitando frontalmente qualquer traço de democracia. O país se transformou no centro de um bloco de poder a competir com os Estados Unidos, centro de outro bloco de poder, a fim de mostrar que o socialismo era mais eficiente que o capitalismo em termos econômicos e sociais. No entanto, os trabalhadores e o ambiente pagaram um preço muito alto.
E o que representa a queda de Wall Street para o mundo? É o símbolo do fracasso do capitalismo?
Será mesmo que Wall Street caiu? Pareceu que a recente crise do capitalismo superaria em profundidade e extensão a crise de 1929-1932, mas já há sintomas inequívocos de recuperação. Tudo indica tratar-se de uma crise conjuntural, e, aqui, abro um parêntese para fazer a distinção entre crise conjuntural e crise estrutural. Uma crise conjuntural é como uma doença que o organismo atingido consegue vencer com ou sem remédio. É como uma gripe que nos abate, mas que superamos e voltamos a ser como éramos. Este tipo de crise é inerente ao capitalismo. O sistema enfrentou várias delas ao longo de seus setecentos anos de história. Algumas foram leves, permitindo que o capitalismo voltasse ao que era anteriormente, como aconteceu após a crise conjuntural entre 1817 a 1851. Outras foram mais profundas e exigiram do capitalismo mudanças estruturais para continuar existindo, como a grande crise representada pelas revoluções do fim do século XVIII, que desembocaram no capitalismo clássico, e a sucessão de crises que se estendeu de 1873 a 1933, que levou à formação do Estado de Bem-Estar Social. Nunca, porém, o capitalismo enfrentou uma crise estrutural no seu todo. Este tipo de crise pode ser comparado à morte de um indivíduo ou à extinção de uma espécie. Embora crises estruturais do capitalismo tenham ocorrido na Rússia, na China, no leste europeu e em Cuba, para só citar os casos mais conhecidos, o sistema capitalista continua existindo, apesar de necessitar trocar de roupa de vez em quando.
Há espaço para o retorno das discussões ideológicas?
Após a queda do Muro de Berlim e o fim da União soviética, o intelectual norte-americano Francis Fukuyama ingenuamente proclamou o fim da história e das ideologias. Digo ingenuamente porque ele entendia a história restrita à luta entre socialismo e capitalismo, entre os blocos soviético e norte-americano. Quando lhe questionaram acerca das guerras localizadas, ele respondeu que elas não passavam de ajustes a um mundo capitalista e liberal, visto por ele como monótono e tedioso por falta de inimigos. O sociólogo e historiador Immanuel Wallerstein logo demonstrou, de forma muito inteligente e criativa, que era simplismo confundir o fim da Guerra Fria com o fim da história e das ideologias, que o fim de uma ordem mundial abria espaço para a construção de outra ordem. Ele leu os casos do fundamentalismo islâmico, do Irã e do Iraque como manifestações de uma nova ordem que se constituía. Por sua vez, o intelectual britânico Perry Anderson mostrou que o fim da Guerra Fria deixava uma multidão de pobres e miseráveis além de uma crise ambiental planetária. É certo que as ideologias, no seu sentido positivo, se enfraqueceram com o fim da bipolaridade, mas não morreram e voltam a crescer agora, discutindo a democracia, o socialismo e o ambientalismo.
Na cartilha do capitalismo: 'estado mínimo', o estado deixou de ser problema e agora volta a ser solução?
O capitalismo viveu dois momentos de Estado mínimo em atenção aos interesses da burguesia. O primeiro começou a se estruturar com as revoluções industrial e francesa e terminou com a sucessão de crises entre 1873 e 1933, que levou à construção de um Estado intervencionista não para combater o capitalismo, mas para salvá-lo da “ameaça comunista”. O segundo momento começou, na América Latina, com o golpe que derrubou Salvador Allende, no Chile. O economista Milton Friedman, grande defensor de um Estado mínimo, passou, então, a dar as cartas teóricas. O Consenso de Washington ordenou a receita para que um país se tornasse confiável ao sistema financeiro mundial. No Brasil, Collor de Mello foi o presidente que aceitou esta receita e iniciou o chamado neoliberalismo. Não bastou muito tempo para que os problemas sociais e ambientais se agravassem. Hoje, economistas críticos, como Joseph Stiglitz, e até conservadores, como Delfim Neto, condenam o Estado mínimo neoliberal. Respondendo resumidamente a sua pergunta: as duas experiências de Estado mínimo só foram solução para a burguesia, mesmo assim por tempo limitado.
Seria um plano socialista para salvar o capitalismo?
O neoliberalismo sempre foi uma proposta conservadora. Embora exista um socialismo conservador, nunca o neoliberalismo foi apresentado pelo socialismo como solução para o capitalismo, a menos que tenhamos em mente os ex-socialistas Fernando Henrique Cardoso, José Serra, José Genoíno, José Dirceu e Dilma Roussef.
Qual o papel da China nos mercados financeiros internacionais?
Lembro da tristeza quase desesperada de alguns marxistas quando da queda do Muro de Berlim, mas do consolo que representou para eles a sobrevivência da China e de Cuba. Num mundo predominante capitalista, a China também acabou “traindo” os socialistas. Jean-Paul Sartre, na década de 1960, chegou a dizer que o comunismo seria alcançado pela via maoísta, e não pela via soviética. Hoje, a China se constituiu numa das mais poderosas economias capitalistas do mundo, com grande crescimento e competitividade. Costuma-se dizer que a economia chinesa é capitalista e que seu capitalismo é estatizado. Temos dificuldades de compreender a China. De fato, no plano político, o estado chinês é centralizado e ditatorial. No plano econômico, existe um pragmatismo que visa mais o crescimento acelerado e o mercado externo.
A divisão do poder no mundo caminha para ser multipolar?
Parece que sim. Com o fim do bloco soviético, os Estados Unidos tiveram a ilusão de uma supremacia unipolar. Logo em seguida, percebeu-se que o fim da Guerra Fria criava espaço para novos atores na esfera capitalista. A Rússia não perdeu sua força de todo. A Comunidade Europeia avançou com voracidade sobre antigos países socialistas do bloco soviético. China e Índia despontaram como potências econômicas. O G-7 mais a Rússia têm em seus calcanhares os países emergentes, que desejam consolidar o G-20. No entanto, esta ordem multipolar não me agrada, por ser capitalista. Imannuel Wallerstein defende a idéia de que o capitalismo não pode viver criando escombros sociais e ambientais e que seus dias estão contados. Ele prevê uma crise estrutural geral para o capitalismo, mas não consegue vislumbrar que sistema vai substituí-lo. Nem eu. De fato, fica muito difícil fazer previsões num contexto tão conturbado e ainda não consolidado. Só espero que este novo sistema seja pautado pela democracia, pela justiça social e pelo respeito aos limites da natureza. Como se pode ver, em mim, as ideologia continuam vivas.
Original em:
www.monitorcampista.com.br/pagina.html?materia=40697&edicao=1083&editoria=3