Quatro cachorros

(ensaio para um conto de terror)

Eu estava numa rua, quando vi quatro cachorros caminhando lado a lado em minha direção. Atrás deles, havia um homem alto, magro e maltrapilho, barba e cabelo desgrenhados. Os quatro cães estacaram em minha frente. Eram vira-latas, pequenos, feios, mas bem alimentados. Nenhum deles revelava disposição agressiva ou amistosa. Seus olhos e suas caudas não se moviam.

Desde criança, tenho o impulso de tocar a ponta de focinho de cachorro, apertando levemente aquela pequena massa preta, a verificar se esta úmida ou seca, fria ou quente. Não controlei minha mão e ela se dirigiu, como que automaticamente, ao focinho de um deles. De pronto, os quatro avançaram em minha direção dando altos pulos. Não rosnavam nem mostravam os dentes, porém, aos saltos, me cercavam, tolhiam meus passos e me envolviam numa roda. Comecei a demonstrar certo pânico.

Então, o homem que os acompanhava, não sei se dono deles, disse: “eles só param se você lhes der comida”. “Como vou lhes dar de comer se não tenho nada aqui comigo?”, perguntei. “O problema não é meu, retrucou ele, nada posso fazer.” Ainda com a palavra, ele completou: “vá a um açougue e compre um pedaço de carne para os quatro”. “Como vou caminhar até lá, se eles não me deixam andar e se estou sem dinheiro”, foi a minha fala. “Bom, então aguente as consequências”.

Tomado de pavor, acordei. Ainda bem que era apenas um sonho, não, um pesadelo. Meu pijama estava ensopado de suor. Minha mulher acordou com o estardalhaço que fiz e, tentando me distrair, sugeriu que eu jogasse no cachorro logo de manhã. Aos poucos, me acalmei e, respirando pausadamente, voltei a dormir. Meu sono foi acompanhado pelo medo de encontrar os quatro cachorros novamente. Voltei a sonhar com a rua em que os cães apareceram. De súbito, lá estavam os quatro a me cercar com seus pulos, como a me cobrar a comida que lhes devia por ter tocado o focinho de um deles.

Desta vez, consciente de que sonhava, decidi enfrentá-los sem medo. Senti uma dor estranha na mão e acordei outra vez. Na minha mão direita, havia a marca de uma leve dentada, com pequenos furos correspondentes aos caninos. Fiquei aterrorizado. O sonho era real demais para ser sonho. Não dormi mais. Passei a noite em claro pensando no que me acontecera.
No dia seguinte, busquei auxílio. Um psicanalista me disse que parecia uma sorte de trauma que eu houvera sofrido em algum momento de minha vida e que, manifestado em sonho, eu somatizara. Mandei-o plantar batatas com suas explicações estapafúrdias. Enquanto me dirigia a um posto de saúde para tomar vacina anti-rábica, liguei para outra pessoa contando-lhe o incidente. Espírita, ela me explicou que, em outra vida, eu devia ter sido funcionário público que trabalhava em carrocinha ou algo parecido. Acreditando ela que os animais também têm alma, concluiu que espíritos de cães maltratados por mim vieram se vingar. Houve um amigo católico que sugeriu exorcismo.

Não dormi mais com medo de ser agora atacado na jugular. Mas o sono apertava. Queimei neurônios pensando como eu poderia atravessar o portal do sono levando comida, caso fosse assediando de novo pelos cães. Não havia como desmaterializar a comida e levá-la para o outro lado. Passei a usar produtos estimulantes a fim de não dormir.

Tudo inútil. O sono foi me vencendo. Entre dormindo e acordado, ouvi latidos ao longe. Julguei delirar, quando, num horizonte imaginário, os quatro cachorros, como os quatro cavaleiros do Apocalipse, assomaram em grande velocidade, formando uma matilha enfurecida. Sozinho em meu escritório, não tive tempo de pedir socorro nem de recorrer a um objeto com que pudesse me defender. Os quatro se abaterem sobre mim com grande violência. Eles atravessaram a barreira entre sono e vigília para buscar no meu corpo a comida que lhes devia. Agora, estou no chão. Eles me dilaceram. Um deles come uma víscera minha como se fosse bofe. Molho um dedo no meu próprio sangue para escrever as derradeiras linhas deste acontecimento macabro.

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