Edgar Morin e a questão palestina (I)

Em 4 de junho de 2002, o judeu Edgar Nahoun publicou no periódico francês Le Monde, juntamente com Danielle Sallenave e Sami Naïr, um artigo intitulado "Israel-Palestina: o câncer". O advogado Gilles-William Goldnadel, em nome da associação "Advogados Sem Fronteiras", processou os autores por apologia ao terrorismo. Seu pedido foi considerado improcedente, e ele recorreu em segunda instância com outra acusação: a de difamação racial. A sentença deu ganho de causa aos três, argumentando que palavras retiradas do contexto ganhavam um outro sentido.

Este episódio levou Nahoun a escrever o livro O mundo moderno e a questão judaica, que agora é lançado em português (Bertrand Brasil, 2007). Edgar Nanhoun é ninguém menos que Edgar Morin, nome que adotou durante a segunda guerra mundial. Como ele mesmo esclarece na introdução, estupefato pela acusação: "Se algo caracteriza minha obra e meu pensamento, é exatamente a recusa de qualquer desprezo ou de qualquer fobia concernindo um povo ou uma nação". Quem conhece o pensamento de Morin sabe perfeitamente que ele abomina qualquer forma de discriminação e de violência.

Como ele já havia procedido com as guerras derivadas do esboroamento da Iugoslávia, no livro Os Fratricidas, neste seu mais recente trabalho, temos um amplo exame da história dos judeus. Que ninguém espere de Morin um panfleto fácil. O livro é perfeitamente acessível ao leigo, mas aplica a teoria da complexidade na análise das atitudes de Israel com relação aos muçulmanos, aos árabes e aos palestinos.

No livro, ele defende uma tese principal. Entre os anos 70 e 135 da era cristã, a revolta dos judeus contra a dominação romana culminou com a expulsão deles da Palestina. Na diáspora (dispersão pelo mundo), os judeus guardaram suas tradições, principalmente as religiosas. Na Europa cristã, diz Morin, "compreende-se a surpreendente sobrevida judaica a partir de um circuito em que o judaísmo fechado é mantido pelo antijudaísmo e, por sua vez, o mantém (...) quanto mais os cristãos asseguram que o Messias chegou, tanto mais os judeus permanecem à espera do Messias." Em outras palavras, o preconceito dos judeus em relação aos cristãos alimenta nestes também um preconceito que reforça o primeiro em circuito recursivo.

Não raramente, o antijudaísmo dos cristãos levou-os a matanças de judeus. Mas, no fim da Idade Média, estas perseguições pretendiam a expulsão ou a conversão dos judaístas ao cristianismo. Assim, surgiram os cristãos novos e os marranos. Os primeiros adotavam o cristianismo para continuarem vivos. Os segundos também, mas permaneciam praticando seus ritos ocultamente. Os judeus consideravam os cristãos como gentios. É então que floresce uma tradição profundamente rica na Europa. Com o humanismo europeu, surgiu a figura do judeu-gentio ou do pós-marrano, um tipo híbrido que abandona o judaísmo e não se converte ao cristianismo. Há pensadores de origem judaica que levam sua cultura para o mundo cristão, mas de forma laica. O nome mais ilustre destes híbridos e Baruch Spinoza, vítima de "herem" (excomunhão judaísta) e repelido pelos cristãos por suas idéias. Spinoza é possivelmente o primeiro filósofo desligado de alguma religião.

Formou-se uma plêiade de pensadores de origem judaica em condição pós-marrana, como Montaigne, La Boétie, Cervantes, Shakespeare, Voltaire, Goethe, Tolstoi, Marx, Stirner, Bruno Bauer, Feuerbach e tantos outros. Em todas as artes, estes pós-marranos estão presentes em número significativo. O judaísmo, contudo, não morreu. Numa comunidade judaica na diáspora, o jovem judeu Sabbetai Zevi proclamou-se Messias e formou uma legião de seguidores. Forçado a se converter ao islamismo, ele foi abandonado por muitos de seus fiéis, e os que continuaram a segui-lo instalaram-se em Tessalônica, na Turquia, onde fundaram uma escola que iria formar intelectuais. Essa escola dinamizou os Jovens Turcos, que, depois da Primeira Guerra Mundial, transformaram a Turquia na primeira república laica do mundo islâmico.

Foi no âmbito dos estados nacionais europeus que se concebeu o sionismo, ideologia que pleiteava para os judeus da diáspora um igual estado nacional. O antijudaísmo então é substituído pelo anti-semitismo. Uma lógica parecida com a medieval fortalece os dois lados: quanto mais os sionistas insistem na criação de um estado judeu, mais se fortalece o anti-semitismo, num circuito recursivo. A União Soviética chegou a criar a república de Birobidjan, para os judeus russos. Mas a meta era refundar o estado judeu na Palestina. O massacre de judeus na Alemanha nazista reforçou mais ainda este desejo, e o estado de Israel foi proclamado unilateralmente pelos sionistas em 1948. Mas o espaço acabou. A questão palestina, aos olhos de Edgar Morin, será comentada na próxima semana.

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