Minha biblioteca
Arthur Soffiati
Comecei a formar minha biblioteca aos 18 anos, em 1965. Antes, eu lia os livros da biblioteca do meu pai. Passei o ano de 1965 em Niterói, na casa da família de uma prima de minha mãe. Nas minhas idas ao Rio de Janeiro, comprei Ensaio sobre a música brasileira, de Mário de Andrade. Foi paixão à primeira leitura. Daí em diante, passei a comprar todos os livros dele e sobre ele. Tenho primeiras edições de seus livros, como A escrava que não é Isaura, de 1925, Clã do Jaboti e Amar, verbo intransitivo, estes dois últimos de 1927. Meu amor continua até hoje. Começo a comprar, novamente, suas obres completas, agora publicadas pela Editora Agir.
Minha biblioteca é eclética como eu. Ela se parece com camadas geológicas. Cada uma representa uma fase da minha vida, um interesse meu, um autor que amei ou continuo amando. As seções dela são filosofia, religião, ciência, psicologia, antropologia, folclore, sociologia, economia política, ciência política, história, ecologia, literaturas brasileira e de vários países (prosa e poesia), artes visuais, quadrinhos, música (inclusive partituras), catálogos de exposições, anais, obras raras, assuntos regionais, teses, dicionários, livros que não me interessam, mas que me foram dedicados etc.
Conto já com cerca de sete mil títulos. Há recantos românticos na minha biblioteca. Gosto de ficar nela, no lugar silencioso em que se situa: numa sala de 3X6 metros sobre uma garagem e rodeada de árvores. Passo os dias sozinho lá, apenas com Corina, a gata, me fazendo companhia.
De vez em quando, me surpreendo com achados que faço entre os livros. São obras das quais me esqueci. Procurando livros para consulta, encontrei a primeira edição de Cana caiana, de Ascenso Ferreira. Noutro canto, Pequeno dicionário luso-brasileiro de vozes de animais, de Julio Lemos.
De 1964 a 1969, estudei arqueologia e fiz pesquisas de campo. Desta época, guardo livros dos quais havia esquecido. Encontrei, meio estragadinho, Paliçadas e gases asfixiantes entre os indígenas da América do Sul, de Erland Nordenskiöld. Algum dos meus poucos leitores conhece este autor? Tenho também um exemplar de Sambaquis do litoral carioca", de Ernesto de Mello Salles Cunha, que conheci em escavações na Ilha do Governador. Voltei a me encontrar com ele em Campos, como professor da Faculdade de Odontologia. O diretório estudantil dela tem o seu nome. Deparo-me ainda com O sambaqui do Macedo, de Wesley Hurt e Ondemar Blasi, e me pergunto por que li e guardei este opúsculo. Por que, ainda guardo Pré-história da Bahia, de Carlos Ott?
Revirando a camada geológica correspondente a Folclore, que me interessou muito numa fase da minha vida, me deparo com Vaqueiros e cantadores, de Luis da Câmara Cascudo, edição de 1939. Correspondi-me com ele no final da sua vida e recebi vários escritos seus autografados. Aliás, comecei minha vida de escritor pelo folclore, com o artigo "O papagaio carioca", publicado na Revista Brasileira de Folclore. Tenho vários escritos inéditos que pretendo publicar um dia.
Em literatura, tenho as obras completas de Machado de Assis e uma edição de Memorial de Ayres do tempo em que ainda se usava o y em palavras portuguesas. Lima Barreto, obras completas, deixadas pelo meu pai para meu irmão e dele passadas a mim. Muitos outros poetas e ficcionistas povoam minha biblioteca, importantes e esquecidos. Nesta camada geológica, lembro dos livros que recebo pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil, de cujo grupo seleto faço parte.
Vou para a camada de história e revejo a edição completa de Estudio de la historia, 15 volumes mais o atlas, em 22 tomos, de Arnold Toynbee. Um ex-aluno, hoje professor da Faculdade de Direito de Campos, já fez várias ofertas por ela.
Quando terminei o doutorado, um ex-professor da UENF me aconselhou a deixar meus interesses do passado e me especializar em história ambiental regional. Não hesitei um minuto sequer em lhe dizer não com um sorriso sutil, como o de Simão Bacamarte de O alienista, que ele talvez nunca tenha lido.
Estou sentindo uma saudade imensa da minha biblioteca, das leituras sem qualquer finalidade que não seja o prazer. Não tenho mais tempo para estudar como no passado. Desde 2001, quase não leio. Minha vida se restringe a aulas, palestras, relatórios, pareceres, reuniões e tantas outras tarefas enfadonhas. Quero me aposentar para retornar ao silêncio e ao prazer da leitura a esmo. Hoje, não me importo mais que me considerem elitista e alienado. Sei que não disponho mais de idade para ler tudo o que gostaria de ler, mas lerei o que a vida me permite. No fim, meu eu original acabou vencendo o eu de acadêmico e especialista que tentaram me impor.