O movimento contra o aumento das passagens de transportes urbanos ganhou corpo. Milhares de pessoas organizaram passeatas em São Paulo, no Rio, em Brasília, em várias capitais de estados brasileiros, em cidades do interior e até em cidades de outros países que contam com comunidades brasileiras expressivas, como Nova Iorque, Lisboa e Londres. Outros pleitos foram incorporados pelo movimento: insatisfação com os poderes executivos e legislativos em todos os níveis da federação, combate à corrupção, críticas ao Projeto de Emenda Constitucional que retira do Ministério Público a prerrogativa de investigar, melhoria dos serviços públicos, repúdio aos gastos em preparativos para os campeonatos mundiais etc. Homens, mulheres, homossexuais, jovens e idosos aderiram ao movimento. Arnaldo Jabor fez um mea culpa e mudou de posição. Quanto ao taxista, talvez esteja reclamando dos engarrafamentos causados pelas passeatas.
Há quem critique o movimento, comodamente diante de sua televisão, pelos quebra-quebras e pelos manifestantes fúteis. Há ainda os que cobram mais politização do movimento. Desde já, é possível esclarecer que movimentos com grande participação de pessoas não conseguem exercer controle sobre os exaltados e os que apenas querem curtição. Mais difícil que criticar e elogiar é compreender. De 1968 aos nossos dias, ocorreram movimentos os mais diversos, permitindo construir uma tipologia deles, embora eu não confie muito nas tipologias por retirarem de cada movimento as suas especificidades. Mas, sem perder de vista as particularidades de cada um, as tipologias ajudam. Cabe, então, perguntar que movimento é esse?
Valendo-me do conceito operacional de circuito recursivo, por qualquer ponto em que se procure a resposta, acaba-se novamente no ponto de partida. Não se trata de um movimento de uma única classe social, ou seja, não se enquadra nos movimentos grevistas do ABC paulista, nos quais Lula despontou como liderança. Dele participam pessoas de várias classes sociais, tendo como centro a classe média antiga e nova. A predominância é de jovens estudantes – homens, mulheres, brancos, amarelos, negros, mestiços, homossexuais etc. Há repúdio à participação de partidos, tanto assim que um dos slogans apregoa a retirada das bandeiras de partidos. Há quem defenda o comando de um partido, mas qual deles, se um dos alvos do movimento é a acomodação dos partidos políticos a uma situação indesejada? A bandeira do movimento não é vermelha. É a bandeira do Brasil. Assim também o hino.
A reivindicação inicial é o aumento das tarifas de transporte coletivo, mas, no decorrer das passeatas, veio à tona com clareza um profundo descontentamento com os poderes executivo e legislativo, com a corrupção, com as ligações espúrias entre políticos e empresários. Talvez o grande perigo resida em pleito tão específico diante de tão grande descontentamento e de tanta energia maravilhosamente despendida. Se os governos atenderem ao pleito principal, o que acontecerá com o movimento? De qualquer maneira, fica o recado das ruas.
A partir dessas observações, pode-se concluir que a Primavera do Brasil não pode se enquadrar no tipo árabe, pois não visa à destituição de um ditador nem a laicização do poder, como nos países islâmicos. Não tem o mesmo objetivo do movimento dos caras pintadas, que derrubou Collor de Mello, há vinte anos.
Pautado pela não-violência, ele tem alguma influência do pacifismo gandhiano. Pela defesa dos direitos da população, ele tem filiação com os primórdios do liberalismo, sobretudo com o pensamento de Locke. Segundo este autor, o povo, detentor do poder soberano, firma um contrato social e constitui os poderes executivo e legislativo. Caso os representantes do povo não correspondam aos anseios deste, o mesmo povo que os constituiu pode destituí-los por rebelião e revolução, invocando o poder soberano. Os inspiradores do movimento parecem ser Stéphane Hessel, o intelectual nonagenário que conclamou os jovens a indignarem-se, e Zygmunt Bauman, com sua tese da modernidade líquida.
Não há demérito em classificar o movimento como protoliberal, pois o neoliberalismo esqueceu as raízes do liberalismo. É preciso lembrá-lo de suas origens. E isto o movimento popular de 2013 está fazendo com louvor.