A onipresente empresa Odebrecht foi a escolhida para planejar e executar o programa. Parece até que ela é a própria secretaria municipal de obras. A fim de proteger os núcleos do programa dos problemas causados pela umidade, as margens de lagoas e - em alguns casos - o próprio espelho d'água delas - foram aterrados com material transportado de saibreiras de Guarus. Existem forte suspeitas de que tais saibreiras operam de forma ilegal. Além do mais, a prefeitura contribui, com indivíduos e empresas, para nivelar o terreno urbano e descaracterizar sua topografia.
Já houve questionamentos por parte de engenheiros e arquitetos acerca do programa. Eles chamaram a atenção para os taludes dos aterros, não protegidos por muros de arrimo ou por outros meios, para a acomodação das terras dos aterros, para as rachaduras de ruas e casas. Inclusive, a questão ainda não está resolvida no Ministério Público Estadual. Há também uma arguição quanto ao valor de cada imóvel, no entender dos especialistas, muito além do valor de mercado para as unidades.
O funcionamento cotidiano dos núcleos do Morar Feliz vem revelando problemas previstos por especialistas sérios. O programa foi concebido em gabinetes por técnicos alheios às dimensões sociais e culturais. Não se formulou um plano habitacional popular COM os interessados, mas PARA os interessados, sem nenhuma consulta a eles. A prefeitura mostrou, mais uma vez, seu autoritarismo e sua soberba. Ela continua com a postura de se considerar a única sabedora do que é bom para as pessoas de baixa renda. Aliás, para toda a sociedade. Seus representantes se dizem abertos ao diálogo, mas não é verdade. Quem busca o diálogo encontra sempre as portas fechadas.
A prefeitura não levou em consideração, principalmente, a cultura das pessoas retiradas de certas áreas para ocuparem as unidades do Morar Feliz. Simplesmente as removeu de suas casas, enfiou-as nas que construiu e demoliu as antigas. A pressa eleitoral e o próprio estilo de governar PARA o povo SEM o povo, levou a prefeitura a não estabelecer um diálogo prévio para definir, em linhas gerais, com as comunidades a serem beneficiadas, como elas concebem um conjunto residencial. O lugar do antropólogo foi substituído por engenheiros insensíveis e arrogantes, técnicos que julgam saber o que é melhor para as pessoas de baixa renda.
Deu no que deu ou está dando no que está dando. Traficantes se infiltraram nos conjuntos habitacionais e atazanam os moradores. Casas começaram a apresentar problemas cedo demais. As reclamações começaram a pipocar: falta de áreas públicas de encontro e de lazer, falta de escolas, falta de postos de saúde, falta de transporte coletivo e outras faltas.
Aos poucos, na surdina da noite e dos finais de semana, os moradores começaram a erguer muros em frente as suas casas, a construir puxadinhos para parentes, a alterar pouco a pouco o modelo concebido pelo governo municipal. Assim como houve violência em promover as transferências, inclusive separando pessoas de uma comunidade para alocá-las em outra, está também havendo violência em coibir mudanças no modelo-padrão imposto pelo governo de cima para baixo.
Conjuntos residenciais populares devem ser como bairros. As pessoas não são estandardizadas para morarem em casas idênticas. Não darei soluções técnicas, mas entendo que um programa do porte do Morar Feliz, com intenção de construir dez mil casas, deve levar em conta as características culturais de cada comunidade e contar com a participação de cada uma no processo de concepção e de implantação das unidades.
Ao mudar a concepção da segunda fase do Morar Feliz, a prefeitura municipal parece reconhecer que errou na primeira, mas ainda continua errada em não envolver mais de perto as comunidades interessadas.