Michel Temer lembra a figura de Giulio Andreotti, conhecido como IL DIVO, lendário e polêmico primeiro-ministro da Itália, figura proeminente da política no pós-Segunda Guerra Mundial. Temer foi presidente da Câmara dos Deputados mais de uma vez, presidiu o PMDB (atual MDB), exerceu a vice-presidência e a presidência da República. Foi também um aliado constante dos governos da hora. Esteve ao lado de Fernando Henrique Cardoso (FHC), Lula e Dilma Rousseff, até liderar a articulação parlamentar que levou à derrubada da ex-presidente. Assim como Lula, Temer é uma figura simbólica do regime político instaurado pela Constituição de 1988.
A sustentação partidária da assim chamada Nova República foi baseada no tripé PSDB-PMDB-PT. Os tucanos se inclinaram continuamente, a partir do início dos anos 1990, da centro-esquerda para a centro-direita, e tornaram-se o eixo que estruturava as forças conservadoras. O PT ocupou o espaço da centro-esquerda graças ao processo de moderação da legenda e à consequente ampliação de suas alianças. O PMDB, de Michel Temer, veio pelo centro. Esse partido assumiu a posição de fiador da governabilidade e tornou-se uma espécie de “nave-mãe” ou guia dos partidos do centrão (aquele conjunto de partidos que adora apoiar um governo).
Por tudo isso, a prisão de Temer e de Lula reforça a sensação que o sistema partidário que se organizou especialmente após a vitória de FHC em 1994 e comandou a vida nacional até 2018 desmoronou com a onda bolsonarista. Outros fatos evidenciam essa percepção: a diminuição significativa das bancadas do PSDB e do MDB no Congresso Nacional e a disposição declarada de Ciro Gomes de confrontar a hegemonia do PT no campo da centro-esquerda. Como vemos, gostando dele ou não, foi grande o feito do novo presidente, pois há uma clara reorganização partidária no Brasil. Entretanto, o início desse realimento dos partidos não seria possível sem a introdução de mudanças institucionais e organizacionais.
Nas últimas décadas tivemos o fortalecimento das organizações de combate à corrupção, como a Polícia Federal e o Ministério Público Federal. Tivemos ainda a criação da CGU (Controladoria-Geral da União), que tem exercido um papel chave na melhoria da transparência governamental. Somam-se a essas realizações outras melhorias institucionais. Foram implementadas a Lei de Acesso à Informação, da Improbidade Administrativa, das Delações Premiadas (que precisa ser refinada) e tivemos o fortalecimento da segunda instância do Poder Judiciário (que foi introduzida via “canetaço” do STF, e não como deveria, pela aprovação no parlamento). Não seria possível prender alguns políticos e empresários famosos sem essas mudanças.
O interessante é que as referidas transformações foram implementadas pelos líderes daquele sistema partidário que Bolsonaro praticamente destruiu no ano passado. De resto, isso mostra que eles tinham uma confiança quase absoluta na impunidade. Essa contradição lembra o pensamento de um certo filósofo alemão do século 19, não muito bem quisto pelos bolsonaristas, que dizia que um modo de produção cria os gérmens de sua própria destruição.
Além daquelas mudanças, foram iniciadas reformas políticas graduais. As coligações nas eleições proporcionais (vereadores, deputados estaduais e federais) são uma das principais responsáveis pela fragmentação partidária brasileira, que não tem paralelo em outros regimes democráticos. Aos poucos será implementada uma cláusula de desempenho (de barreira) que irá impor restrições aos partidos com poucos votos. Também foram definidos limites mais claros para os gastos de campanha. As duas últimas poderiam ser mais rígidas, mas já representam certo avanço. Contudo, essas reformas precisam continuar.
Para isso, o atual presidente deveria construir uma relação mais harmoniosa com o Legislativo (como bem disse Rodrigo Maia, em seu recente entrevero com o ministro Sérgio Moro) e assim, assumir um papel mais ativo na reestruturação do novo sistema partidário, que foi justamente deflagrada pela sua vitória. O slogan, “meu partido é meu país” pode ser ótimo para uma campanha, mas é terrível na hora de construir sólidas maiorias parlamentares. Além disso, a história brasileira nos mostra que, no conflito entre Executivo e Legislativo, geralmente quem se dá mal é o presidente (vide Vargas em 1954, Quadros, Goulart, Collor e Dilma). A nossa memória nacional evidencia que uma relação mais afinada com os partidos no Congresso é também uma questão de sobrevivência política para o chefe do Executivo. O destino de alguns presidentes e das lideranças que tiveram sua carreira política praticamente destruída nos últimos tempos nos faz lembrar novamente daquele filósofo alemão do século 19. Ele dizia: “tudo que é sólido se desmancha no ar”.
André Barsch Ziegmann é professor de Ciência Política no Centro Universitário Internacional Uninter, em Curitiba (PR).