As medidas propostas não levam em conta as profundas mudanças em curso no mercado de trabalho
Na embolada do (des)ajuste promovido pelos paladinos do conservadorismo econômico, a inteligência brasileira ou a falta dela está a se afogar nas esperanças angustiadas da reforma da Previdência.
Entre tantas propriedades milagrosas da Reforma, a mais proclamada é a volta do crescimento vigoroso amparada nas expectativas favoráveis dos mercados, embevecidos com a coragem e presteza do novo governo. Finalmente, dizem, um governo empenhado em exorcizar definitivamente o demônio do desequilíbrio fiscal.
Os desconfiados que ainda deambulam nos vazios das certezas indagam de seu bom senso se a badalada Reforma tem mesmo as virtudes apregoadas urbe et orbi. Não há como negar os propósitos de maior equidade das reformas propostas, à exceção dos golpes assentados nos miseráveis amparados pelos Benefícios de Prestação Continuada e nos trabalhadores rurais.
Os argumentos dos reformistas partem de um fenômeno demográfico: o Brasil envelheceu. Uma boa notícia: o IBGE informa que a esperança de vida dos brasileiros e brasileiras alcança 74,4 anos. O envelhecimento juntou-se à queda acentuada da taxa de natalidade, promovida pela rápida urbanização que acompanhou a industrialização eloquente das três primeiras décadas do Pós-Guerra. Se há males que vêm para o bem, há bens que vêm para o mal. No regime de repartição, já foi dito, os que trabalham financiam os que estão aposentados. No galope do tempo, a “nova” dinâmica populacional promete um desequilíbrio perverso entre os que trabalham e contribuem com a Previdência e aqueles que se aposentam e abocanham os benefícios.
Os estudos sobre as consequências da globalização produtiva e da rápida introdução das novas tecnologias vislumbram o crescimento dos trabalhadores ditos independentes, em tempo parcial e a título precário, sobretudo nos serviços, e a destruição dos postos de trabalho mais qualificados na indústria. O inchaço do subemprego e da precarização não só achata, como torna incertos os rendimentos dos trabalhadores, além de desobrigar os empregadores de prestar suas contribuições.
Na nova economia “compartilhada”, “do bico”, ou “irregular”, prevalece a incerteza a respeito dos rendimentos e das horas de trabalho. Algumas projeções estimam que, nos próximos cinco anos, mais de 40% da força de trabalho global estará submetida a um emprego precário. Essas transformações nos mercados de trabalho fragilizaram inexoravelmente o regime de repartição. A carteira verde-amarela de Paulo Guedes vai jogar mais água na fervura.
É uma ilusão imaginar que o regime de capitalização, prometido de forma vaga no texto da reforma, possa remediar os riscos embutidos nas transformações em curso nos mercados de trabalho. O economista José Roberto Afonso botou o dedo na ferida: “A reforma é um ajuste de contas com o passado”. Nos debates que se seguiram à apresentação das medidas, não há qualquer menção à imperiosa necessidade de uma reforma tributária, imprescindível para acompanhar as intenções de equidade das alterações na Previdência.
História antiga. Na década dos 80 do século XIX, Otto von Bismark, o Chanceler de Ferro, sob o acicate da industrialização e as pressões do movimento socialista alemão, criou a Seguridade Social fundada no regime de repartição. Empregados e empregadores passaram a contribuir para o fundo comum destinado a prover defesas contra os infortúnios do mundo do trabalho. O Kaiser anunciou o programa em 1881. O auxílio-doença foi criado em 1883, o seguro contra acidentes do trabalho em 1882, e o sistema de aposentadorias em 1889. Os proventos dos aposentados eram modestos e o período de qualificação muito longo.
Nos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt entregou o Social Security Act ao povo americano em 1935. Na Inglaterra, na primeira eleição realizada depois de 1945, o trabalhista Clement Attlee derrotou o grande liberal Winston Churchill. Acompanhado por Aneurin Bevan, seu Ministro da Saúde, pai do National Health Service, Attlee desenhou a arquitetura do Estado do Bem-Estar britânico, inspirado no relatório preparado por outro liberal, Sir William Beveridge.
Em 1942, na Inglaterra ainda maltratada pela guerra, pelo racionamento e pela debilidade econômica, Sir William Beveridge, em seu lendário Relatório, fincou as estacas que iriam sustentar as políticas do Estado do Bem-Estar. O Relatório Beveridge recebeu a colaboração das concepções da Teoria Geral do Juro, do Emprego e da Moeda – obra magna do liberal, porém iconoclasta, John Maynard Keynes.
Beveridge apontou os “Demônios gigantes da vida moderna” que os governos estavam obrigados a enfrentar: Carência, Doença, Ignorância, Miséria e Inatividade. Em seu Relatório, proclamou que a ignorância é uma erva daninha que os ditadores cultivam entre seus seguidores, mas que a democracia não pode tolerar entre seus cidadãos.
Essa forma de financiamento da seguridade social, o regime de repartição, conheceu seu auge e glória na posteridade da Segunda Guerra Mundial, à sombra do Estado do Bem-Estar. O pleno emprego foi colocado como uma meta a ser perseguida pelas políticas econômicas. Muitas constituições europeias consagraram esse princípio. A nova Constituição dizia ser a Itália uma república baseada no direito ao trabalho, assegurado a todos os italianos no artigo 1º. Os Estados Unidos promulgaram uma lei. No Pós-Guerra, o rápido crescimento das economias capitalistas esteve apoiado numa forte participação do Estado, apoiada na elevação da carga tributária abrigada em um sistema tributário progressivo, medidas destinadas a impedir flutuações bruscas do nível de atividades e a garantir a segurança dos mais fracos diante das incertezas inerentes à lógica do mercado.
O Estado do Bem-Estar estava fundado, sobretudo, na articulação de interesses entre trabalhadores e capitalistas, empenhados na construção de instituições destinadas a reduzir a angústia de quem se propõe a assumir riscos e enfrentar os azares do mercado. Os regimes de Seguridade Social estavam assentados no princípio de solidariedade. Ao reduzir a insegurança das famílias assalariadas, esses regimes tiveram papel importante na expansão do consumo das classes menos favorecidas.
As políticas econômicas tinham o propósito de criar empregos e elevar, em termos reais, os salários e demais remunerações do trabalho. O continuado aumento da renda e do emprego fazia crescer a receita dos governos. Há quem diga que o Brasil, ao promulgar a Constituição de 1988, entrou tardia e timidamente no clube dos países que apostaram na ampliação dos direitos e deveres da cidadania moderna.
É um exagero.
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