Funciona sem Estado? Premia o mérito e o esforço? Promove a concorrência? Corresponde à “natureza humana”? Promove, aos poucos, o bem-estar de todos? Breve guia para tempos infames
Seymou Fogel, Riqueza da Nação
Sempre que escrevo sobre capitalismo, coisas estranhas e engraçadas acontecem. “Isso não é nem capitalismo, cara. Cresce!” Não é? Aparentemente capitalismo significa o que qualquer um queira que signifique, e portanto, é qualquer coisa que alguém quer que seja. Assim como todo Deus, creio, capitalismo é tudo para todas as pessoas. Mas isso nos deixa ainda mais incapazes de realmente compreender muito — nos deixa cegos, confusos e andando para trás. Tempos sombrios espreitam, ao fim do caminho em que não se faz perguntas. É, mais ou menos, para onde os EUA, talvez o mundo, estão caminhando.
Vamos discutir alguns mitos do capitalismo, cada um baseado em uma definição diferente do termo – e ver se conseguimos entender um pouco mais sobre o que ele “realmente” é.
O mito do capitalismo platônico. Os anglo-saxões amam dizer que o capitalismo é seu ideal platônico: se nós apenas deixássemos capitalistas com seus próprios dispositivos, e parássemos de interferir, a competição iria garantir que a virtude levasse tanto à prosperidade como à decência. Este mito — que também é do capitalismo laissez-faire –– é o mais fácil de refutar. Foi testado muitas vezes. Nos EUA, por exemplo, durante a “era de ouro” pós-Guerra de Secessão. Novamente em tempos mais recentes, na era da “austeridade”, dos anos 1980 até agora. Nós removemos todos os obstáculos no caminho dos capitalistas que podíamos. O resultado não foi uma explosão da competição, mas o exato oposto — o surgimento de enormes monopólios, que exploraram as pessoas de várias maneiras: sub-remunerando-as, exigindo-lhes trabalho exaustivo, cobrando preços altos, sobretributando-as e corroendo suas democracias. Que lista… O mito do capitalismo platônico é apenas isso — um mito. O capitalismo não atingirá o ideal de competição, virtude e prosperidade se o libertarmos. O exato oposto irá acontecer. O que isso nos diz sobre sua natureza?
O mito do capitalismo darwiniano. Este mito assenta-se no primeiro. Sugere que, por meio da competição, emergirá magicamente um resultado darwiniano: a sobrevivência do mais apto, o que irá resultar no bem maior para todos. O problema é que o capitalismo é darwiniano demais para que as sociedades sobrevivam a ele – porque não é natural, e sim uma seleção artificial, ao estabelecer seu próprio critério de “mais apto” entre as pessoas. Qual é o tipo? Atributos de crueldade, astúcia, ganância, avareza, cálculo, inautenticidade. É isso o necessário para chegar ao topo dos sistemas capitalistas, porque é precisamente o que o sistema recompensa, cultiva e valoriza — já que seu único propósito é maximizar lucros cegamente, a qualquer custo. Mas também significa que as pessoas que não cultivam — ou não podem cultivar — estes atributos, são consideradas passivas e pesos mortos, nos sistemas capitalistas. O que acontece com elas? São descartadas, abusadas e jogadas fora.
O resultado é que os piores, e não os melhores alcançam o topo e ganham fortunas inimagináveis — frequentemente dando às pessoas o pior — enquanto os melhores e mais inteligentes acabam trabalhando para eles e também desperdiçando seus talentos. O capitalismo é darwinista — é verdade — mas não em um sentido nobre, produtivo, criativo, se é que isso de fato existe, e sim em sentido autodestrutivo, calamitoso e voraz. Ele seleciona os piores entre nós para comandar os recursos de toda a economia: tempo, esforço, criatividade, imaginação, ideias. Tais recursos são desperdiçados em besteiras e itens supérfluos: iates, mansões e bolhas da bolsa de valores, que são obtidos dando-se às pessoas baixa qualidade de medicamentos, água potável e educação, em vez de investir em sistemas de saúde, aposentadoria e pesquisa.
O mito do capitalismo Emersoniano. Ralph Emerson tornou-se famoso por escrever sobre a noção de “auto dependência”. Deste então, especialmente os norte-americanos, adoram pensar que o capitalismo é um exercício forte, áspero e desafiador de auto dependência — algo como sobreviver numa floresta equatorial. Mas nada é assim. Se você compreender que o capitalismo deixado a sós com seus próprios dispositivos irá destruir a sociedade, então, para manter o sistema vivo, em moderação, ele precisa de freios – o que significa governo. O pensamento norte- americano, mas não só ele, cometeu um erro fatal. Ao supor que capitalismo produz “auto dependência”, assumiu que uma sociedade não precisa de investimento social, bens públicos, governo, democracia.
Mas o capitalismo não é e nunca foi auto-dependente — ele sempre dependeu do Estado. A escravidão dependia fundamentalmente de leis e regras marítimas e aplicação da legislação. As colônias precisavam de navios e exércitos. Atualmente, o capitalismo é muito apoiado em todos os sentidos imagináveis, desde leis aos códigos, de tribunais a pontes e ruas, hospitais e escolas. Toda grande “inovação” capitalista, também, foi uma grande descoberta a partir das pesquisas feitas com financiamento público — da vacina aos antibióticos, da internet até a rede world wide web. O capitalismo não é auto-dependente. Mas finge sê-lo e ensina que o é, para que as sociedades acabem crendo nesse mito.
O mito do capitalista benthamiano. Faço um desserviço a Jeremy Bentham ao usar esta qualificação. Entenda que as percepções de Bentham — sobre usos e “utilidade” — foram cruelmente caricaturadas pelos pensadores norte-americanos, séculos depois. Pretendíamos que acreditássemos que o capitalismo, ao nos levar a produzir o que é mais útil para os outros, tornaria melhor a situação de todos. É verdade? Como poderia? Se o capitalismo seleciona os piores como produtores — e nós trabalhamos para eles, sem ter nenhum poder sobre eles — como poderíamos acabar focados no que é “útil” aos outros? Sistemas de saúde pública, aposentadorias ou creches não seriam mais “úteis” do que uma centena de Facebooks e Amazons? Então por que seus respectivos presidentes Zuckerberg e Jeff Bezos, são inimaginavelmente ricos – enquanto a população não tem acesso a sistemas de bem-estar?
O mito diz que o capitalismo irá magicamente indicar às pessoas as coisas mais úteis a produzir, e viveremos vidas de facilidade e conforto. Mas basta olharmos para o mundo para constatar que isso não é verdade. As populações são bombardeadas com as coisas mais relativamente inúteis – Alexas e Siris por exemplo [assistentes virtuais pessoais da Amazon e Apple, respectivamente]. É verdade que estas coisas podem tornar sua vida um pouco mais fácil e confortável. Mas na hierarquia do que é genuinamente útil aos seres humanos, poder deitar em sua cadeira reclinável e ter um robô lhe dando uvas na boca está na última posição, quando você não consegue ter sistema de saúde, remuneração, educação e aposentadoria decentes. A vida humana precisa de cuidado, nutrição, apoio e cultivo — mas o capitalismo não tem nenhum incentivo ou qualquer razão para prover tais coisas. Nesse sentido, o capitalismo mantém as sociedades famintas do que é mais genuinamente útil.
Na verdade, se realmente pensarmos a respeito, o capitalismo faz precisamente o oposto do que fornecer as coisas que as pessoas mais precisam, quando elas mais precisam, que é o real significado de “utilidade”. Quando as pessoas estão vulneráveis, desesperadas e em grande necessidade — é nesse exato momento que o sistema explora selvagemente suas fraquezas, implacavelmente, sem consciência, remorso, de modo impiedoso.
O mito do capitalismo bom. Este mito diz que diz que o capitalismo irá tornar todo mundo, não só capitalistas, melhores pessoas, virtuosas e nobres, ao instilar nelas valores de moderação, humildade, coragem e sabedoria, as fazendo “alocêntricas”, ou focadas no outro. Funcionou assim para você?
O capitalismo não torna as pessoas nobres e virtuosas – mas exatamente o oposto, porque primeiro as torna pobres. Como as pessoas vivem à beira do abismo — tanto as empobrecidas como as antigas “classes médias” – a virtude torna-se um luxo. Quando você está lutando para colocar comida na mesa para seus filhos, nobreza e grandes virtudes são apenas teorias ocas. O capitalismo prende as pessoas a corridas desenfreadas, na busca por status, em competições intermináveis por superioridade, no superficial, trivial e sem sentido, reduzindo vidas a programas de entretenimento e loterias desesperadas. O resultado é que as pessoas continuam pobres, e obrigadas a fazer qualquer coisa para sobreviver. Talvez, então, até dispostas a comprar o próximo mito: o de que você está sobrecarregado e sub-remunerado, mas algum dia também será capitalista…
O mito do capitalismo neoclássico. Bem, tudo acima vai contra maior mito capitalista de todos, que provavelmente é aquele em que você ainda acredita – mesmo se acha que não. Este mito diz que o capitalismo irá gotejar prosperidade de cima pra baixo. Isto é: um dia, todos serão capitalistas — e viverão uma vida de incontáveis riquezas, conforto, facilidades, sem ter que trabalhar. Será? Que parcela das sociedades, no mundo todo, chegou a esta condição? (E não, “ter casa própria”, enquanto no banco você assumiu uma dívida gigante, não faz de você um capitalista. Usar um ativo pelo qual você está endividado faz de você o oposto de um capitalista.)
O mito do capitalismo que goteja é o mais perigoso de todos, porque a maioria das pessoas acredita nisso – mesmo quando não o percebem. Em algum lugar, no fundo, mesmo que não admitam isso para si mesmas, elas colocaram fé em um sistema, como mostra sua própria mente, que não está funcionando.
Nunca devemos ter fé cega nos sistemas humanos como se fossem deuses. Se o fizermos acabaremos sendo seus prisioneiros – não seus senhores. Precisamos examinar o que está diante de nossos olhos – e fazer disso um hábito. Contos de fadas cintilantes das terras prometidas, por mais tentadoras e sedutoras que sejam, não substituem uma mente que reflete e olhos que veem. É um trabalho difícil. É impressionante assistir ao fracasso, queda e colapso do capitalismo — e é este o grande marco de nossa era. Por que, então tantos de nós mantemos nossos olhos e mentes bem fechados, em vez de abri-los? A resposta pode ser: é mais confortável assim, especialmente quando o mundo está em chamas.
Por Umair Haque
Tradução: Marianna Braghini