O prêmio entregue a cada ano aos funcionários do setor financeiro equivale, praticamente, a um suborno pelo silêncio a respeito da corrupção.
ROMA, maio (IPS) - É impressionante como a cada semana se conhecem novas ações judiciais, em várias partes do mundo, contra o setor financeiro, por delitos e irregularidades, sem que se registre uma reação considerável por parte da opinião pública.
É surpreendente, porque isso acontece em meio a uma crise muito grave, com altos índices de desemprego, trabalho precário e um aumento sem precedentes das desigualdades, efeitos causados, em grande medida, pela especulação financeira.
Tudo começou em 2008 com a crise hipotecária e o estouro da bolha dos derivados financeiros nos Estados Unidos, seguido pela explosão da crise da dívida soberana na Europa.
Calcula-se que haverá que esperar ao menos até 2020 para que alguns países consigam recuperar os níveis econômicos existentes em 2008. Isso significa uma década perdida.
Para resgatar os bancos, o mundo gastou algo em torno de quatro bilhões de dólares de recursos vindo das finanças públicas, dinheiro tirado dos contribuintes.
Vejamos um exemplo: esse resgate do setor bancário na Espanha absorveu mais dinheiro que o que foi destinado ao orçamento anual de educação e saúde juntos. E a história continua.
No dia 20 de maio, cinco grandes bancos aceitaram pagar uma multa de 5.7 bilhões de dólares às autoridades dos Estados Unidos, por uma ação de manipulação do mercado de divisas. Os bancos são bastante conhecidos: os estadunidenses JP Morgan Chase e Citigroup, os britânicos Barclays e Royal Bank of Scotland e o suíço UBS.
No caso do UBS, o Departamento de Justiça de Estados Unidos adotou a inusual medida de anular um acordo de não acusação que havia pactado anteriormente, justificando este passo devido aos reiterados escândalos relacionados ao banco. “O UBS tem um prontuário que não pode ser ignorado”, disse a promotora Leslie Caldwell.
Trata-se de um desvio significativo das diretrizes que o Departamento de Justiça emitiu em 2008, segundo as quais as consequências colaterais devem ser tomadas em conta nas acusações feitas contra as instituições financeiras.
“A consideração de consequências colaterais está concebida para situações onde há o risco de que uma acusação particular cause um dano desproporcional as acionistas, os titulares dos fundos e os empregados que não são sequer suspeitos nos casos”, disse Mark Filip, funcionário do Departamento de Justiça que escreveu o memorando de 2008.
A respeito do caso da gigantesca companhia de auditoria Arthur Andersen, que avalou as falsificadas contas da empresa energética Enron, e que posteriormente declarou falência, Filip disse que “em última instância, a Arthur Andersen nunca foi considerada culpada de nada, mas o simples fato de ter sido acusada a destruiu”.
Com o revelador título de “Grande Demais Para Cair”, esta foi, aliás, uma garantia de impunidade que não escapou da mira dos administradores do sistema financeiro.
No recente dia 11 de maio, Denise L. Cote, juíza da Corte Federal do distrito de Manhattan, condenou dois grandes bancos, o japonês Nomura Holdings e o britânico Royal Bank of Scotland, por estelionato contra duas instituições públicas de empréstimos imobiliários, conhecidas como FannieMae e Freddie Mac. O esquema funcionava através de créditos hipotecários que continham diversos erros e tergiversações.
Nomura Holdings e Royal Bank of Scotland foram somente dois dos 18 bancos acusados de manipular o mercado imobiliário. Os outros 16 grupos chegaram a um acordo extrajudicial para pagar quase 18 bilhões de dólares em sanções, evitando, assim, que suas falcatruas fossem ventiladas publicamente.
O Royal Bank of Scotland e o Nomura Holdings rejeitaram um acordo similar e processaram o governo dos Estados Unidos, argumentando que foi a crise imobiliária que provocou o colapso de seus créditos hipotecários.
Entretanto, a sentença da juíza Cote afirmou que foi precisamente o contrário: o comportamento delitivo dos bancos foi o que acentuou a derrubada do mercado hipotecário.
Vale destacar que, até agora, as multas acumuladas desde 2008, impostas pelo governo dos Estados Unidos a somente cinco bancos importantes, superam os 250 bilhões de dólares. Contudo, nenhum banqueiro foi à prisão, as multas foram pagas e o problema foi sepultado.
A questão é dirimir se todos esses casos são eventuais desvios de conduta de alguns administradores gananciosos, ou se trata da nova “ética” do setor financeiro.
É necessário recordar que, recentemente, foi revelado que 25 administradores de fundos de cobertura (hedge funds) receberam cerca de 14 bilhões de dólares e que o gestor melhor remunerado entre eles foi quem deu a si mesmo a astronômica cifra de 1,2 bilhão de dólares, equivalente à soma da média dos salários médios de 200 mil atividades profissionais estadunidenses.
A respeitada Universidade de Notre Dame divulgou, no dia 20 de maio, um informe alarmante, baseado numa pesquisa que envolveu mais de 1, 2 mil executivos de fundos de cobertura, bancos de investimentos e outras áreas do mundo financeiro dos Estados Unidos e do Reino Unido, na qual cerca de um terço dos que ganham mais de 500 mil dólares por ano admitiram que “já foram testemunhas ou têm conhecimento direto de irregularidades em seu lugar de trabalho”.
O informe da universidade estadunidense sustenta, inclusive, que “quase um de cada cinco pesquisados sentem que, às vezes, os profissionais de serviços financeiros devem se envolver em atividades pouco éticas ou ilegais se querem ter sucesso no mundo financeiro atual”.
Sobre isso, quase metade dos profissionais pesquisados incluindo os de mais altos salários, consideram que as autoridades são “ineficazes na detenção, investigação e julgamento de infrações relativas a essas falcatruas”.
Um quarto dos entrevistados afirmou que caso considerassem que não havia nenhuma possibilidade de serem presos por tráfico de informação privilegiada para ganhar 10 milhões de dólares, passariam essa informação.
Quase um terço acredita que “as estruturas de remuneração ou os planos de bonificação em vigor em suas empresas poderiam incentivar os empregados a romper a ética ou violar a lei”.
A maioria mostrou um temor que aludia a ameaças implícitas dos seus empregadores, que provavelmente optariam por “aplicar represálias contra os que passassem informações sobre irregularidades em sua empresa”.
Portanto, o prêmio entregue a cada ano aos funcionários do setor financeiro equivale, praticamente, a um suborno pelo silêncio a respeito da corrupção.
Os exemplos de Wall Street e de Londres serão cada vez mais comuns, a medida em que se projetem no sistema financeiro.
Uma nova “ética” se está instaurando e se propagará se não for interrompida – e que, atualmente, não parece estar sendo coibida.
Uma consideração final. Na mesma terceira semana de maio (quantas coisas aconteceram em tão curto espaço de tempo!), a Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos apresentou denúncias contra quatro respeitadas associações do país dedicadas ao combate ao câncer, por uso indevido de milhões de dólares em doações.
Uma delas, o Fundo para o Câncer dos Estados Unidos, havia declarado que 100% dos recursos arrecadados foram usados em atenção médica, transporte de pacientes sessões de quimioterapia e compra de medicamentos para crianças. A Comissão descobriu que, na verdade, menos de 3% das doações recebidas foram realmente destinadas ao cuidado de pacientes com câncer.
A “nova ética” é um câncer de rápida metástase.
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*Jornalista ítalo-argentino. Cofundador e ex-diretor geral da Inter Press Service (IPS). Nos últimos anos, fundou e difundiu o Other News, um serviço que proporciona “informação que os mercados eliminam”. Other News Em Espanhol: www.other-news.info/noticias/ Em inglês: www.other-net.info/