A CAROLINA
Querida! Ao pé do leito derradeiro,
em que descansas desta longa vida,
aqui venho e virei, pobre querida,
trazer-te o coração de companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
que, a despeito de toda a humana lida,
fez a nossa existência apetecida
e num recanto pôs um mundo inteiro...
Trago-te flores, — restos arrancados
da terra que nos viu passar unidos
e ora mortos nos deixa e separados.
Que eu, se tenho nos olhos mal feridos
pensamentos de vida formulados,
são pensamentos idos e vividos.
1906
O DESFECHO
Prometeu sacudiu os braços manietados
e súplice pediu a eterna compaixão,
ao ver o desfilar dos séculos que vão
pausadamente, como um dobre de finados.
Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilião,
uns cingidos de luz, outros ensangüentados...
Súbito, sacudindo as asas de tufão,
fita-lhe a água em cima os olhos espantados.
Pela primeira vez a víscera do herói,
que a imensa ave do céu perpetuamente rói,
deixou de renascer às raivas que a consomem.
Uma invisível mão as cadeias dilui;
frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;
acabara o suplício e acabara o homem.
ESPINOSA
Gosto de ver-te, grave e solitário,
sob o fumo de esquálida candeia,
nas mãos a ferramenta de operário,
e na cabeça a coruscante idéia.
E enquanto o pensamento delineia
uma filosofia, o pão diário
a tua mão a labutar granjeia
e achas na independência o teu salário.
Soem cá fora agitações e lutas,
sibile o bafo aspérrimo do inverno,
tu trabalhas, tu pensas, e executas
sóbrio, tranqüilo, desvelado e terno,
a lei comum, e morres, e transmutas
o suado labor no prêmio eterno.
CÍRCULO VICIOSO
Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
— "Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
— "Pudesse eu copiar o transparente lume,
que, da grega coluna à gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!"
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
— "Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela
claridade imortal, que toda a luz resume!"
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
— "Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?"
UMA CRIATURA
Sei de uma criatura antiga e formidável,
que a si mesma devora os membros e as entranhas,
com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
e no mar, que se rasga à maneira de abismo,
espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
parece uma expansão de amor e de egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo,
gosta do colibri como gosta do verme,
e cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela, o chacal é como a rola inerme,
e caminha na terra imperturbável como,
pelo vasto areal, um vasto paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo,
vem a folha que, lento e lento, se desdobra,
depois a flor, depois o suspirar do pomo.
Pois essa criatura está em toda a obra,
cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto.
E é nesse destruir que as suas forças dobra.
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
começa e recomeça uma perpétua lida,
e sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.
SONETO DE NATAL
Um homem, — era aquela noite amiga,
noite cristã, berço no Nazareno, —
ao relembrar os dias de pequeno,
e a viva dança, e a lépida cantiga,
quis transportar ao verso doce e ameno
as sensações da sua idade antiga,
naquela mesma velha noite amiga,
noite cristã, berço do Nazareno.
Escolheu o soneto... A folha branca
pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
a pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,
só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"
SUAVE MARI MAGNO
Lembra-me que, em certo dia,
na rua, ao sol de verão,
envenenado morria
um pobre cão.
Arfava, espumava e ria,
de um riso espúrio e bufão,
ventre e pernas sacudia
na convulsão.
Nenhum, nenhum curioso
passava, sem se deter,
silencioso,
Junto ao cão que ia morrer,
como se lhe desse gozo
ver padecer.
De Ocidentais (1901)
A GONÇALVES DIAS
(excerto)
Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros!
Virgens da mata, suspirai comigo!
A grande água o levou como invejosa,
nenhum pé trilhará seu derradeiro
fúnebre leito; ele repousa eterno
em sítio onde nem olhos de valentes,
nem mãos de virgens poderão tocar-lhe
os frios restos. Sabiá-da-praia
de longe o chamará saudoso e meigo,
sem que ele venha repetir-lhe o canto.
Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros!
Virgens da mata, suspirai comigo!
De Americanas (1875)