O Brasil já não é considerado um país do terceiro mundo. Faz parte do Bric – Brasil, Rússia, Índia e China, os “países em desenvolvimento”. Nossa economia nos leva, célere, ao primeiro mundo, esse mesmo, que inclui os mais ricos, como Estados Unidos e países do bloco europeu. Espero só que, quando entrarmos finalmente para o mundo dos ricos/desenvolvidos, não tenhamos que aturar a decadência de todos esses povos nobres que, ainda, nos rejeita.
Pensando nessa corrida para a supremacia que merecemos, vejo notícias edificantes. No Rio, por exemplo, a Justiça deu um ultimato típico de um povo civilizado: em seis meses, a prefeitura terá que substituir as atuais lixeiras de rua, e distribuir as novas em cinco cores diferentes. E especifica: azuis para papel e papelão; vermelhas para plásticos em geral; verdes para vidro; amarelas para metais e marrons para dejetos orgânicos.
Acho a decisão judicial da 4ª Vara de Fazenda Pública um passo importante. Fico orgulhoso. Agora sim, vai ficar tudo organizadinho, vamos reciclar tudo direitinho.
No dia em que a ordem foi publicada, porém, um caminhão de lixo me fez cair na real. Junto com o lixo orgânico, recolhia – e comprimia, tudo junto – também uma enorme quantidade de papelão.
Como em casa já separamos o lixo, quis saber do síndico do prédio como é que estava sendo recolhido isso. Descobri, desolado, que o caminhão de lixo realmente misturava tudo.
Não há coleta especial porque a própria Comlurb, autarquia municipal responsável pelo recolhimento do lixo que produzimos, não tem condições de fazer um recolhimento seletivo. Mas, a favor dos que, como eu, separam o lixo, a prefeitura diz que ajudamos, pelo menos, os catadores de recicláveis. Os mesmos que, aliás, também espalham o lixo dos prédios que não separam o lixo.
Voltei a me sentir do terceiro mundo, quase um selvagem. Mas foi passageiro porque, em seguida, a Comlurb avisou que, com a Rocinha agora em paz, nenhum beco mais ficaria sem recolhimento de lixo. Vida decente para quem mora em comunidades menos favorecidas. Isto é sinal de desenvolvimento.
Comentei com minha mulher a notícia. Ela também se sentiu bem em saber que, pelo menos, os moradores das favelas, agora, teriam mais dignidade e correriam menos perigo de contaminações da sujeira.
À noite, nesse mesmo dia, ela, que também é jornalista, chegou do bairro do Riachuelo, onde existem muitas favelas, todas menos votadas que a Rocinha ou o Complexo do Alemão. Isto é, comunidades que só se tornam notícia quando há alguma tragédia. Como ela sabia que eu estava pensando em fazer um texto para o site, fotografou o lixo na rua, acumulado há tempo, e nem dentro da favela estava.
O material mostra como o governo só mostra trabalho onde tem holofotes. Em seguida, entro no prédio de uns amigos, em Copacabana. No elevador, avisos de que todos devem separar o lixo orgânico do reciclável.
Não me segurei. Procurei a síndica, de nome Maria Luiza Landrino, querendo saber o que ela faz do lixo que pode ser reutilizado. Ela diz que faz a campanha no prédio há cerca de seis meses. Que conta com a adesão de cerca de 40% dos moradores, o que resulta em cem quilos de lixo reciclável por mês.
Perguntei a ela se ela não sabia que a Comlurb misturava tudo. Ela confirmou que esteve pessoalmente tentando arranjar um modo de reaproveitar o lixão, mas também ouviu a resposta de que a coleta seletiva, por enquanto, é impossível.
Diante de minha expressão de idiota, ela explicou que tinha feito acordo com uma empresa de material reciclável. Agora, toda semana, a empresa, particular, claro, recolhe os cem quilos de lixo no prédio. “Só não aceita isopor”, conclui a síndica.
Novo alento. Tem gente que pensa alto e resolve.
“Infelizmente, neste item ‘reciclagem’, a nossa Comlurb ainda não fornece treinamento adequado e nem empoderamento aos seus funcionários para garantir um destino certo ao nosso lixo reciclável”, disse ela.
Lembremos de outra coisa: o Seguro Residencial do Banco Itaú, se compromete a recolher móveis e eletrodomésticos na casa dos clientes e dar a ele o destino certo. O Santander mantém a política do Banco Real de receber pilhas e baterias.
A Câmara Municipal também entrou na onda de limpeza ambiental. Publicado no Diário Oficial da Câmara e tudo: o lixo nos gabinetes também deve ser separado. A justificativa é maravilhosa – servirá de exemplo para a população. Agora só falta saber que vereador vai procurar uma empresa para levar a papelada dos senhores parlamentares. Escrito, está perfeito, na prática, porém, deixa para lá. Não vira notícia, por que preocupar.
Lixo em rua do Riachuelo
E a vida rumo ao desenvolvimento continua. O “jogo do contente”, fantasia inventada pela personagem otimista, também fictícia, Pollyanna, criada por Eleanor Porter, no início do século passado, nos anima. Ficamos brincando de acreditar enquanto as autoridades, também no setor de lixo, buscam espaços nos jornais.
Assim, com tanta fantasia colorida, estamos sendo reconhecidos pelo mundo como um povo em desenvolvimento. Acho que o que atrapalha é a geografia mesmo. Somos um belo e alegre país tropical. Não precisamos nos preocupar com o meio ambiente. Até o Canadá, país considerado seríssimo, desistiu do acordo de Kyoto, alegando que está sendo multado por algumas ações, enquanto os Estados Unidos nunca assinaram o tratado. Está certo o Canadá. Sai do acordo para não ser cobrado. Como os norte-americanos. Mas ficam todos, arrogantes e superiores, de olhos abertos com o que acontece na Amazônia.
Parvo, continuo separando o lixo em casa e levando as pilhas para o banco. Faço o jogo da Pollyanna. E me deixaria enganar plenamente se não pudesse, no mínimo, compartilhar desta tribuna as manhas e artimanhas dos políticos deste Brasil.
P.S. Na hora de enviar este texto, reparei que a Justiça Federal libertou Marcos Valério, que estava preso em Salvador, e está notificando que Jader Barbalho (PMDB-PA), apesar de não ter passado pelo processo da Ficha Limpa, poderá tomar posse como senador. Mas, este, já é outro assunto – que podemos incluir, entre tantos outros, no nosso real “jogo do contente”.
* Edgard Catoira é jornalista, foi chefe de sucursal da Editora Abril na Bahia, secretário de redação da Veja em São paulo, gerente da Abril Press. No Rio de Janeiro, foi editor da revista TV Guia, das revistas femininas da Editora Abril, revista Playboy, revista Amiga, editor de projetos especiais do Jornal do Brasil e de O Globo. Trabalhou como chefe de Comunicação Social da Embratur, Fundação Roberto Marinho, Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Educação da Prefeitura do Rio de Janeiro, Secretaria da Infância e Juventude e Câmara Municipal. É editor dos livros Guia do Jardim Botânico, Meio Ambiente e Desenvolvimento – Uma Experiência Brasileira e White Martins.
** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.