O carnaval — essa festa que é uma das mais populares do país e arrasta multidões — segue por caminhos distintos, mas dois deles se delineiam com mais clareza: o dos “VIPs”, cervejarias e “ostentação”, e o que o nosso Boi linguarudo e sem rabo decidiu trilhar.
Ao lado dos guerreiros e guerreiras do maracatu que passam por inúmeras cidades se apresentando — enquanto as prefeituras oportunistas e demagógicas pagam uma verdadeira mixaria que mal dá para o transporte — e de passistas de frevo que carregam em sua essência o fervor dos capoeiras que outrora eram proibidos de andar em grupos e praticar suas atividades em público, é o caminho da cultura do povo, da irreverência e da combatividade.
A cada ano, o carnaval atrai milhões de pessoas em torno das mais diversas formas de expressão, onde o brinquedo é realizado segundo seus brincantes, abrindo espaço aos dispostos a se expressarem com o que possuem e se dispõem. Grande parte dos brinquedos e agremiações são emergidos do seio das massas, de trabalhadores do campo e da cidade que, de acordo com seus contextos de vida, refletem nesta festa suas resistências, lutas e contradições.
E como tudo nesse sistema podre, as forças do capital buscam, por todos os meios, atacá-la em sua essência popular, esvaziar essa celebração de toda a combatividade, identidade e unidade existente nas classes oprimidas, desde a banalização, desclassificação, folclorização e criminalização dos brinquedos por parte dos meios institucionais estatais e privados, até os fetiches que a indústria cultural insere nessa festa, produzindo blocos e eventos onde se exalta o camarote, o privado e o exclusivo para os que podem custear. Além disso, o consumo exacerbado de drogas (legais ou não) e a objetificação da mulher como troféu a ser conquistado e acumulado, vendendo esse padrão às massas com objetivo de tornar o carnaval numa mercadoria a ser negociada.
O BRINQUEDO
O Boi Cote, brinquedo realizado pelo Coletivo Bagaço, é um Boi-bumbá diferente, ao contrário da história tradicional que gira em torno dos conflitos de classe vividos por um trabalhador do latifúndio de um coronel que se vê em apuros após cortar a língua do boi preferido do patrão para atender ao desejo de sua esposa grávida e precisa então recorrer à mística para reviver o animal e escapar de um severo castigo aos moldes coloniais. O nosso Boi traz em seu cerimonial as vivências e percursos trilhados pelo Coletivo Bagaço, que, por sua vez, toma como base o trajeto e as lutas dos migrantes pernambucanos pelas mesorregiões do estado (traçado por autores como Josué de Castro e João Cabral de Melo Neto), desde o Ciclo do Cangaço.
O Boi reafirma ser a sede e fome da região sertaneja, um fenômeno que não é climático. É político e social, lutando junto à boiadeiros e cangaceiros por liberdade e justiça, até se retirar para o Ciclo da Cana na esperança de terras férteis onde teriam onde plantar para comer e água abundante para beber. Porém, o que encontram é o inferno verde dos canaviais que escraviza os seres e a própria terra os transformando em verdadeiros bagaços, onde, junto à caboclas(os), cambiteiros(as) e quilombolas, combatem a opressão dos engenhos e seus senhores até desaguar no Ciclo do Concreto. Então se depara com o caos dos centros urbanos, adentrando no universo das periferias e aprendendo com a malícia dos capoeiras, frequentando rodas de samba e, como a “malandragem”, sabendo entrar e sair. Tornou-se morador de rua, pedreiro na construção civil e vendedor ambulante, contribuindo sempre com as rebeliões da classe proletária.