Entrevista: Eli Vieira, o jovem biólogo que desafiou um dos senhores da fé

'Malafaia precisa estudar argumentação e lógica no nível básico'.
“Malafaia precisa estudar argumentação e lógica no nível básico”.

Criador de um vídeo com mais de 1,6 milhão de visualizações no Youtube, o doutorando em genética pela Universidade de Cambridge, Eli Vieira, é um dos raros fenômenos brasileiros da internet com algo a dizer. Embora escreva desde 2007 em páginas da grande rede, a publicação de vídeo em resposta a uma entrevista do líder da igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, Silas Malafaia, tornou o geneticista definitivamente uma pessoa influente nas redes sociais. São 15 mil pessoas no Facebook e sete mil no Twitter que acompanham seus textos publicados quase todos os dias com temas geralmente ligados aos direitos humanos.

Em fevereiro, Malafaia, em uma polêmica entrevista a Marília Gabriela, no programa De Frente Com Gabi, defendeu que não existe base genética para a homossexualidade. O rapaz de 26 anos, ao ver o vídeo em Cambridge, decidiu produzir a resposta ao dito pelo pastor. Vieira elencou dados de pesquisas científicas que concluíam para a explicação genética multifatorial da orientação sexual.

O líder evangélico refutou os dados apresentados pelo biólogo afirmando que tudo se tratava de teoria científica sem a real comprovação.

Seguiram-se dias de produções textuais e audiovisuais de ambos os lados. Malafaia invadiu a vida pessoal do biólogo ao dizer que ele “legislava em causa própria”. O jovem geneticista não apenas optou por afirmar a homossexualidade como respondeu reafirmando que “trabalha apenas com fatos”. Em manifesto público, a Sociedade Brasileira de Genética endossou as informações divulgadas por Vieira.

Quase nove meses após toda aquela turbulência, o geneticista concede entrevista ao blog LGBT para falar sobre os dias de confronto com o Malafaia, política, religião, homofobia e ativismo.

LGBT – A decisão de fazer o vídeo foi demorada? Breve? Por que você decidiu fazê-lo?

Eli Vieira – Por ter sido um membro fundador da Liga Humanista [associação de pensadores voltados à causa dos direitos humanos] e ainda ser oficialmente o presidente até este mês, já tinha contato com ativistas LGBT. Soube da revolta desse pessoal com a entrevista no domingo à noite, e assisti à entrevista na segunda-feira. Também me revoltou bastante, especialmente pelas afirmações do pastor sobre ciência. Perguntei aos meus contatos no Facebook se eu deveria responder à entrevista. A resposta que mais me influenciou foi a da minha irmã, Diana. Ela disse que eu era a pessoa certa para responder ao pastor.

Como estou fazendo doutorado (e na área abusada pelo Malafaia), cada decisão de me dedicar a alguma outra coisa acaba me dando uma pontada de culpa. É um sentimento constante quando você está fazendo uma coisa cujo resultado deveria ser que você saiba mais sobre um assunto que a maioria dos mortais sobre a Terra e a maioria dos mortais com o mesmo nível de qualificação. Senti que o assunto era importante e que eu tinha uma oportunidade de fazer algo não apenas por motivação moral, mas por vontade de divulgar ciência – tenho blog de divulgação científica desde 2008, quando era graduando em biologia na UnB.

Tomada a decisão, montei na minha bicicleta e fui para o Departamento de Genética. Era um dia frio de inverno em Cambridge. O sentimento era de determinação. Acho que cheguei a gravar um vídeo curto enquanto pedalava, dizendo o que estava prestes a fazer. Levei cerca de seis horas para fazer tudo no escritório. A maioria das referências eu já tinha porque já havia escrito um texto de divulgação sobre a genética da homossexualidade, quando o assunto me despertou a atenção durante o mestrado em Porto Alegre, na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Eu decidi fazer o vídeo por três motivações, em ordem de importância naquele momento: porque detesto abuso e distorção de conhecimento científico, porque tenho real compromisso com meus valores como humanista, e porque também sou um homem gay e tenho direito de resposta.

LGBT – Ao fazer o vídeo, você imaginava o barulho que iria causar?

Eli Vieira – Sabia que o trabalho não estava ruim, e esperava algumas milhares de visualizações. Mais de um milhão, certamente não esperava. De repente todo mundo estava sabendo e minha família me ligando cheia de preocupações e orgulhos. Eu senti que fiz um trabalho bom, longe de ideal, mas bom.

LGBT – Em seu vídeo, você trouxe evidências, estudos científicos que mostram a base genética para a homossexualidade. Você percebeu que o esclarecimento com base em dados científicos concretos trouxe maior entendimento por parte de mais pessoas ou, pelo contrário, quem era contra a homossexualidade assim continuou agarrando-se às crenças religiosas?

Eli Vieira – A existência de base genética que contribui como recurso no desenvolvimento da homossexualidade já é conhecida, e só na última década ferramentas moleculares para perscrutá-las têm surgido. Alguns estudos promissores com camundongos têm apontado participação dos neurônios produtores de serotonina no sistema nervoso central. A descoberta dos detalhes é incipiente. É como se estivéssemos em 1492: sabe-se que o continente novo existe (América), mas os detalhes e a extensão deste continente ainda estão sendo explorados. O que Silas Malafaia fez foi negar que o continente existe (sem falar na quantidade de inverdades que proferiu). O que eu fiz foi dizer que o desconhecimento dos detalhes do continente não significa que a existência do continente é desconhecida. O continente está logo ali, e vai ser explorado. Se para o bem ou para o mal, será outra história, mas tenho confiança de que a eugenia fascista está morta e enterrada como força política na comunidade científica.

LGBT – Malafaia, ao rebater as suas afirmações se apoiou, segundo ele, em estudos do geneticista Francis Collins, um dos integrantes do Projeto Genoma. Ele afirmou que Collins negara a existência de base genética para a homossexualidade. O pastor distorceu as palavras do norte-americano?

Eli Vieira – Malafaia distorceu o que Francis Collins pensa. Collins, que hoje ocupa cargo burocrático no NIH (National Institutes of Health, uma espécie de CNPq dos EUA), jamais negou que a homossexualidade tem bases genéticas. Eis exatamente o que ele disse: “As evidências de estudos com gêmeos de fato apoiam a conclusão de que fatores herdáveis têm um papel na homossexualidade masculina.” E não apenas isso, ele acrescentou em um email ao site de debate religioso Patheos, que não ser completamente determinado por genes não significa que os fatores ambientais sejam alteráveis. O que é correto. As últimas revisões sugerem que os fatores ambientais mais importantes para o desenvolvimento da homossexualidade estão no útero.

LGBT – Caetano Veloso declarou certa vez que gostaria de debater com Silas Malafaia porque, certo ou não, acha o discurso do pastor coerente, além de elogiar sua oratória. Neste seu embate virtual com Malafaia você percebeu essas observações apontadas pelo cantor e compositor?

Eli Vieira – Não. Malafaia precisa estudar argumentação e lógica no nível básico. Recomendo para ele o livro “Pensamento Crítico”, de Walter Carnielli e Richard Epstein. Também discordo que ele tenha boa oratória: ele grita demais.

LGBT – O líder da Vitória em Cristo invadiu a sua vida pessoal dizendo que “o pseudodoutor legislava em causa própria”. Como você digeriu esse ataque?

Eli Vieira – Eu não precisei “digerir”: apontei para o que era, uma falácia de ataque pessoal de quem não tinha argumento melhor para mostrar que eu estava errado. As origens da minha motivação em fazer o vídeo não invalidam os meus argumentos nem anulam evidências publicadas. Só isso.

LGBT – Diante dessa invasão da sua privacidade pelo pastor, você tomou a decisão de declarar publicamente sua homossexualidade. Foi uma decisão difícil? O que você levou em consideração? Algo ou alguém dizia para você não fazer isso? Em algum momento você pensou que tal decisão poderia prejudicá-lo profissionalmente?

Eli Vieira – Já tinha feito isso antes, para mais de mil pessoas entre meus contatos nas redes sociais. Foi uma decisão um pouco incômoda porque, como dizia Harvey Milk, ninguém tem a obrigação de se expor assim, e cada um sabe onde está a porta de seu armário. Senti que foi uma saída final do armário, mas mais que isso, foi algo que eu fiz por pessoas próximas que conheço que precisam se esconder em suas próprias famílias. Famílias, aliás, que me respeitavam pelas escolhas profissionais. Também fiz por colegas de profissão que acreditam erroneamente que suas carreiras serão prejudicadas se saírem do armário. Jamais pensei que isso fosse me prejudicar profissionalmente. Na academia e na comunidade científica, as pessoas são em geral muito liberais, certamente mais que a média de outros círculos sociais. Já se sabe que alta escolaridade está inversamente correlacionada à incidência de homofobia. Ignorância é uma das maiores fontes de homofobia. Os defensores intelectuais da homofobia não conseguem justificá-la nem mesmo em teologia, dado que se for aceita sua condenação no Novo Testamento, então será preciso aceitar que as mulheres devem calar a boca dentro das igrejas (como ordenou Paulo), e se for aceita sua condenação no Antigo Testamento, a coerência obriga que também se aceite o banimento de alimentos com frutos do mar como o bobó de camarão e a proibição do uso de tecidos feitos com duas fibras diferentes (tudo isso chamado de “abominação” no mesmo livro, o Levítico). Vejo evangélicos fundamentalistas protestando contra a existência da homossexualidade, que ocorre em milhares de outras espécies de animais, mas não vejo a coerência sendo praticada por eles, que se fossem coerentes protestariam contra as lojas Renner ou a C&A por venderem roupas de algodão com nylon. Jogar fora a homofobia não é um dilema ético difícil de resolver, não me surpreendo que esteja correlacionado à escolaridade.

LGBT – O que esse outing midiático trouxe tanto positivamente quanto negativamente?

Eli Vieira – Não mudou muita coisa na minha rotina. No Reino Unido a consciência social sobre homofobia é quase onipresente, declarar-me gay é quase tedioso por aqui. Ganhei mais atenção nas redes sociais, que desde então tenho usado para defender ideias sobre vários assuntos – denunciar o machismo e a transfobia, por exemplo, me parece bem mais importante que denunciar genericamente a homofobia. Também é importante que as pessoas se conscientizem sobre o que é o Brasil no cenário internacional e que modelo de país queremos adotar. O crescimento econômico nos deu oportunidade renovada de autodeterminação. E me parece que há algo de fundamentalmente errado com um modelo desenvolvimentista que pressupõe crescimento eterno. Desde minhas aulas de ecologia na UnB sou acostumado a ver crescimentos atingindo fase estacionária, seja de número de bactérias numa colônia, seja PIB per capita no Brasil. E me assusta como a doutrinação da opinião pública no desenvolvimentismo acrítico passa por cima de assuntos importantes como os direitos dos nativos indígenas à sua terra e a seu modo de vida, e a conservação biológica para além do ufanismo nacionalista com a Amazônia. Outro assunto que me preocupa, ao ponto de eu ter sido o único a ter um cartaz sobre isso (até onde vi) na versão londrina das manifestações brasileiras de junho, é a desmilitarização da polícia, para termos uma polícia única ou polícias que nos lembrem menos dos sombrios tempos da Ditadura Militar. Histórias de truculência da polícia militar chegam a mim até da cidade onde passei a maior parte da minha infância – Lagamar, Minas Gerais. E é uma cidade minúscula. Só imagino o horror que isso toma nos grandes centros, especialmente para jovens negros e da periferia. O caso Amarildo me afetou profundamente. Se é para ser pessoa pública, não serei uma pessoa pública de uma tecla só, e se isso é ser um “palpiteiro”, convido todo mundo a palpitar também, porque o que nosso país mais precisa é do fim da atitude de lavar as mãos para assuntos políticos e evitar se envolver. E na ciência não faltam exemplos de personalidades que se envolveram politicamente, os nomes mais famosos todos se envolveram – Einstein e Newton, por exemplo. Também não gosto da ideia de que cientistas têm de se calar e apenas falar de fatos de suas áreas de pesquisa. As ferramentas da investigação científica são úteis para formar um senso crítico em muitas outras coisas, embora eu pense que não ganhem da filosofia nisso.

LGBT – Você sempre foi um cara bem resolvido sexualmente ou passou por aqueles dolorosos conflitos comuns a muitos gays: querer negar a si mesmo a orientação sexual? Como foi esse processo na adolescência?

Eli Vieira – Cresci no interior de Minas Gerais, nasci em Patos de Minas. Minha adolescência foi, em resumo, minha homofobia internalizada com suas defesas psicológicas lutando contra meus hormônios, às vezes perdendo para os últimos. O começo da vida sexual de um homem gay da minha geração é eivado de culpa herdada da cultura ao redor, não muito diferente, penso, da vida sexual de muitas mulheres heterossexuais, que são policiadas de todos os lados especialmente quando jovens. Conheci homens gays ou bissexuais que passaram a vida inteira se escondendo. Nem sempre os via como vítimas – os que se casam com mulheres e as traem eu acho particularmente antiéticos. As pessoas variam quanto ao tempo que levam para aplicar seu conhecimento de que não há nada de errado em ser gay ou lésbica para eliminar o sentimento de culpa em sua vida amorosa e sexual. Algumas pessoas se livram completamente disso com o tempo – eu diria que a maioria, depois de alguns anos. Mas infelizmente há aqueles que foram tão profundamente marcados por uma educação homofóbica agressiva que podem levar décadas para se sentirem confortáveis em serem o que são. É um horror silencioso de alegrias e aprendizados natimortos dentro de um potencial afetivo não concretizado – me incita um sentimento de luto similar a pensar em um bebê morto. A homofobia causa isso na vida de muitos – suas vidas amorosas são bebês mortos. Felizmente, para mim e para a maior parte neste momento histórico, “it gets better” (slogan de uma campanha anti-homofobia que significa “as coisas melhoram”).

LGBT – Qual a comparação que você faz sobre a vida permitida a um homossexual no Reino Unido e no Brasil?

Eli Vieira – Para dar uma ideia, a maior associação de alunos da Universidade de Cambridge tem uma seção especialmente dedicada a alunos LGBT, que promove eventos toda semana. E esta seção é tão grande que se dá ao luxo de ter subgrupos para estudantes de pós-graduação e funcionários da universidade. A vida social também está contemplada pela universidade, através dos “colleges”, que são entidades semi-independentes. Newton esteve no Trinity College e Darwin esteve no Christ’s College, por exemplo. Meu college, Clare Hall, já convidou palestrantes para falarem de homofobia e darem seus depoimentos como pessoas LGBT, e é um college relativamente pequeno por ser exclusivo para pós-graduandos. É muito difícil estar em Cambridge e ignorar o clima de aceitação da diversidade de orientações sexuais e identidades de gênero. Não é incomum ir a pubs onde por acaso está havendo uma reunião de transexuais, e nas baladas não há constrangimento em um casal do mesmo sexo se beijar no meio de uma maioria de heterossexuais: eu já fiz isso. Mas devo lembrar que uma cidade universitária como Cambridge é tão representativa do Reino Unido quanto Lavras ou Ouro Preto seriam representativas do Brasil. Os britânicos também sofrem com problemas de sexismo e preconceitos contra LGBT, também têm seus grupos xenofóbicos e protofascistas. Mas é uma sociedade definitivamente mais segura. O equivalente deles do “Bolsa Família” paga bem mais que o dobro para as famílias carentes. Se é para julgar a saúde da democracia britânica pelo seu tratamento das minorias, ela parece estar muito bem.

LGBT – Feliciano presidindo comissão de Direitos Humanos, projeto de esclarecimento sobre orientação sexual em escolas enterrado. Por outro lado, homossexuais conquistaram direitos, por exemplo, ao casamento. Como você vê a ascensão da bancada religiosa, sobretudo neopentecostal, ao centro do poder nacional? Você, que é um pesquisador, teme que a sua área também seja atingida?

Eli Vieira – Devo lembrar que Marco Feliciano disse à Veja que uma razão de as nossas metrópoles serem “amaldiçoadas” pela violência é a presença do que ele chamou de “gene africano”. Então, Silas Malafaia não foi o único líder evangélico fundamentalista que abusou da genética. Tal coisa de “gene africano” não existe, e os marcadores genéticos de ancestralidade africana não estão correlacionados à violência, até porque todos nós viemos da África – humanos surgiram de outros primatas africanos há centenas de milhares de anos atrás. Eu gostaria de saber onde é que Feliciano e Malafaia aprenderam sua “genética” – de geneticistas informados não aprenderam essas coisas.

Não há avanço ético social que esteja isento de ser revertido. Para cada Martin Luther King existe uma personalidade conservadora que quer voltar a um ideal de passado em que ele fosse silente e inativo. Por isso é preciso que estejamos vigilantes, mas sem cair em incitação ao medo. Eu não acredito que os fundamentalistas realmente conseguirão num futuro próximo tomar o poder no Brasil. Não conseguirão indefinidamente infiltrar um Estado laico com leis explicitamente inconstitucionais para privilegiar sua fé. Infelizmente já há leis assim em funcionamento, como a lei estadual 5998/11 do Rio de Janeiro, proposta pelo deputado Edson Albertassi (PMDB) e assinada pelo governador Sérgio Cabral, que obriga as bibliotecas públicas a ter Bíblia. Isso vai de encontro ao Artigo 19 da Constituição, pois é subvenção estatal do cristianismo. Para cristãos se botarem no lugar das minorias religiosas, precisam primeiro imaginar o que pensariam se fosse uma lei tornando obrigatória a presença do Corão nas bibliotecas, e, em segundo lugar, saber que a democracia não é a ditadura da maioria. Como disse Lord Acton, um historiador inglês católico, o teste mais certo para saber se um país é realmente livre é o quanto de segurança dá a suas minorias. A medida de saúde de uma democracia é o tratamento que ela dispensa a suas minorias – religiosas, raciais, étnicas, de orientação sexual e identidade de gênero, etc. A julgar pelo modo como os índios, os homossexuais, as travestis, os negros e os praticantes de religiões de matriz africana têm sido tratados, o Brasil não é uma democracia muito saudável, e, o que é pior, o atual governo não tem feito o suficiente pela saúde desta democracia.

Eu não temo que minha área seja atingida por um levante teocrático no Brasil porque a comunidade da genética está numa comunidade maior, a comunidade científica, que já é independente o suficiente de tentativas de ingerência de governos e é uma das comunidades globais mais diversas que existem, embora tenha seus problemas. Eu temo mais por colegas da área das humanidades – sempre que autoritários tomam o poder, são as humanidades que sofrem. A filosofia, por exemplo, costumam tentar botar-lhe rédeas, ou, como é rebelde e perigosa demais, precisam espalhar a falsa ideia de que não é tão importante quanto matemática, física ou biologia.

LGBT – A nova redação do projeto de lei que criminaliza a homofobia prevê a liberdade de culto, ou seja, as religiões poderão continuar pregando contra a homossexualidade.

Eli Vieira – Isso é tão aceitável quanto abrir exceção para as igrejas poderem ser racistas. A analogia entre racismo e homofobia é quase perfeita, incluindo pelo fato de que orientação sexual é uma coisa que as pessoas escolhem tanto quanto a cor de sua pele. E mesmo se escolhessem, não justificaria preconceito, até porque religião é em princípio um comportamento sujeito à escolha, e isso não justifica intolerância religiosa. É um problema para a teologia e a moralidade do Silas Malafaia que orientação sexual não seja uma escolha, mas um comportamento com base genética que provavelmente se estabelece nas últimas fases da gestação e desperta na puberdade. Genes são recursos que contribuem para o desenvolvimento da orientação sexual. A hipótese absurda que ele defendeu é que uma parte escolhe e outra parte se torna homossexual por abuso sexual infantil – nenhuma dessas coisas acontece dentro do útero, e as evidências têm apontado que é dentro do útero que as partes do cérebro responsáveis pela orientação sexual se configuram. Ser homossexual é um comportamento similar a ser canhoto ou destro. E isso não é apenas uma analogia: a probabilidade de ser gay é diferente para homens canhotos em comparação a homens destros, por exemplo. E ninguém afirma que alguém é canhoto ou destro por abuso infantil ou por escolha.

LGBT – Com o PT no poder federal e em muitos estados e cidades do país, muitos dos ativistas passaram a ocupar cargos importantes em secretarias de direitos humanos. Você vê evolução na criação de políticas públicas para a população LGBT nos últimos dez anos? O ativismo ao ocupar papel nos governos mais ganhou em poder pressionar dentro do sistema por direitos ou perdeu o papel de criticar a estrutura por fazer parte dela? Vale lembrar que muitos ativistas estão dentro do governo Cabral, apontado como violador dos direitos humanos durante as manifestações que estão acontecendo desde junho

Eli Vieira – Claro que houve avanços nos últimos anos. A lei anti-homofobia do estado de São Paulo foi um deles. A coleta de estatísticas de crimes homofóbicos pelo Disque 100 foi outro, e na minha opinião o maior avanço aconteceu quando o ex-ministro da saúde José Gomes Temporão promoveu o respeito ao nome social de pessoas transexuais no SUS e assinou uma portaria autorizando cirurgias de redesignação sexual através dele. Isso é importante porque pessoas transgênero podem sofrer disforia – a condição de não se sentir no corpo certo para sua identidade, para a qual a cirurgia de redesignação é um tratamento possível. Isso salva vidas e evita suicídios.

LGBT – Por fim, qual sua avaliação neste aspecto sobre o governo Dilma, que chega ao fim (ou não) no próximo ano?

Eli Vieira – Minha avaliação é negativa. A boa imagem do Ministério da Saúde frente aos LGBT criada pelo Temporão no segundo mandato do Lula foi destruída pelo ministro da saúde de Dilma, Alexandre Padilha. Padilha mentiu para a imprensa, por exemplo, que uma propaganda anti-HIV direcionada a casais gays no carnaval de 2012, que ele vetou e substituiu por outra inócua, não estava planejada para a TV. Não viu problema em tratar homossexuais como habitantes de guetos sociais, alegando que a propaganda era destinada a esses guetos. Depois, Padilha revelou-se um moralista pior ainda, ao vetar outra propaganda para o dia internacional da prostituta. E ele conta com o apoio do Palácio do Planalto nisso – a exoneração de Dirceu Greco, diretor do departamento de DST/AIDS e responsável por essas propagandas inclusivas, foi assinada pela ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann. Gleisi também é uma moralista religiosa na questão LGBT e em outras questões – por exemplo, ela anda privilegiando tratamentos para drogadição sem evidência de eficácia mantidos por instituições religiosas, ou seja, proselitismo religioso disfarçado de tratamento para vício químico, o que também se configura como ataque ao Estado laico.

Como essas coisas acontecem bem perto da presidente Dilma Rousseff, acredito que ela também é conservadora com a questão LGBT. Como esquecer o que ela disse em 2011, ao vetar o material didático do Ministério da Educação destinado a escolas com maior incidência de homofobia? Usar a expressão “propaganda de opção sexual” ao falar com a imprensa prova o quanto Dilma era ignorante, e possivelmente ainda é, sobre esta questão. Não me convenci do contrário quando ela recebeu líderes do ativismo LGBT em seu gabinete após os protestos de junho porque, quando a assessoria dela escolheu quais líderes evangélicos seriam recebidos em outra reunião, ela não teve problemas em receber Mara Maravilha, poucas semanas depois da cantora ter dito em rede nacional que homossexuais são aberrações. Há muitas lideranças evangélicas no Brasil, e quem escolhe as piores, as mais homofóbicas, é mal assessorado, mal informado, ou não se importa com homofobia.

Neste e em alguns outros assuntos de direitos humanos, o governo Dilma tem deixado muito a desejar, para dizer o mínimo.

LGBT – E daqui para frente? Quais são seus objetivos? A homossexualidade de alguma forma estará presente em seus estudos no campo da genética? Você hoje tem uma página no Facebook com mais de 10 mil seguidores, com toda certeza podemos afirmar que você é um cara influente. De que forma você pretende continuar interagindo com essas pessoas?

Eli Vieira – Continuarei sendo um palpiteiro que se importa com justificação e referência de seus palpites e opiniões. O preço disso é errar de vez em quando – e não tenho problema com retratações. Mas antes disso minha prioridade é me formar como cientista, processo ainda em andamento. É meu sonho de infância e é muito mais importante para mim que qualquer outra coisa. Meu projeto de vida é investir a curiosidade que sempre tive sobre seres vivos em descobrir mais coisas interessantes sobre eles. Ser homossexual foi acidente, mas como houve uma tentativa de uma cultura, de uma criação e até de mim mesmo de me fazer ter vergonha de sê-lo, tenho orgulho e incentivo outros LGBT a afirmarem seu orgulho, porque sabemos bem que ainda é difícil, então há mérito nesta afirmação e em viver com ela, e mérito justifica orgulho. Não há nenhum mérito em ser heterossexual numa cultura que não apenas aceita como incentiva isso exageradamente ao ponto de impelir quem não é hétero a se esconder, por isso não fazem sentido afirmações de orgulho hétero: soam muito mais como provocação às conquistas e reivindicações dos LGBT. Especialmente as reivindicações das pessoas transgênero, que são as que mais sofrem dentre LGBT, as com quem os cidadãos médios até hoje têm dificuldade de até se sentar ao lado. As pessoas trans em menor risco que conheço, como minha amiga Daniela Andrade, já levaram cusparada de estranhos na rua e foram espancadas por serem quem são.

Eu ficaria feliz em poder estudar orientação sexual e identidade de gênero em humanos como geneticista, mas como qualquer coisa nova neste assunto seria provavelmente cara, fico igualmente feliz de continuar estudando meus insetos e bactérias e evolução molecular – as coisas estão interligadas o suficiente para um geneticista poder se saciar abordando mistérios pelos mais diversos ângulos e com os mais variados modelos. Aliás, insetos têm mais coisas em comum com pessoas do que é dado crédito, e o grande sexologista Alfred Kinsey era um biólogo que iniciou sua carreira estudando vespas. Se um geneticista tem interesse em cognição, pode estudar RNA’s não codificadores com sinal de seleção positiva em humanos que são transcritos em determinadas fases do desenvolvimento cortical. Se tem interesse em evolução molecular, pode estudar praticamente qualquer um dos seres vivos cujo genoma já foi sequenciado – entre vertebrados já são mais de 50 espécies e entre eucariotos mais de 180. Genética e evolução me interessam especialmente porque não há ser vivo ou até quase-vivo (como vírus e príons) que escape à sua relevância. E a biologia, como ciência, tem um potencial enorme até para transformar concepções limitadas do que é ciência que as pessoas herdaram de séculos anteriores, então é um campo fértil para filosofia. Conhecimentos dão poder para perseguir projetos que atendam a certos valores, e os valores ajudam a decidir a pauta das investigações para criar novos conhecimentos. E é por isso que questões sociais importantes como combate a preconceitos podem e devem procurar a ciência. Se uma ferramenta poderosa não for usada para bons propósitos, será usada para maus propósitos. Deixar de usar e demonizá-la jamais resolve este problema.

Como eu disse numa nota de agradecimento à SBG (Sociedade Brasileira de Genética), creio que já passou o tempo de temer que os geneticistas fiquem sob a influência da eugenia e do racismo, fazendo pesquisa para favorecer esses propósitos. Certamente houve um tempo em que a comunidade científica deu um espaço imerecido a essas ideias. E houve um tempo em que a ingenuidade do inatismo e do determinismo genético foram dominantes. No entanto, também devo lembrar que ideias deterministas culturais sobre a natureza humana podem ser igualmente perigosas. Que o diga David Reimer, que perdeu o pênis quando bebê e foi criado como menina sob a influência de teorias deterministas culturais da identidade de gênero – a criação de David não o fez mulher, então identidade de gênero não é uma construção puramente social. Outro exemplo são teorias deterministas sociais sobre o autismo, que frequentemente botam a culpa nas mães pelas dificuldades sociais de seus filhos autistas, afirmando sem evidência alguma que autismo é determinado por ambiente social. É propriedade das ideias, especialmente das boas ideias, a vulnerabilidade a serem postas para mau uso, inclusive as científicas. A velha dicotomia natureza/cultura é falsa: nós somos seres biologicamente moldados para a cultura e culturalmente moldados em nossa biologia, e os rótulos “biologia” e “cultura” guardam em si até interseções.

O século XXI já é um século das ciências biológicas. Não será possível ignorá-las em qualquer assunto em que elas forem relevantes, inclusive quando o debate for a origem, as propriedades e os limites disso que se convencionou chamar de ser humano. Como disse Allan Kardec sobre a codificação religiosa espírita, se esta disser uma coisa e a ciência disser outra, a razão provavelmente está com a última. Felizmente, é perfeitamente possível fazer oferenda a Iemanjá sem extinguir os peixes, adorar Alá sem negar a evolução biológica e louvar a Jesus sem inventar que o DNA tem mensagens divinas, sem inventar “gene africano” ou mostrar ignorância atacando um “gene gay” que jamais foi proposto a sério por geneticistas (por saberem que o número de genes que participam é bem maior que um). E também é plenamente possível ser religioso sem ordenar que as mulheres se calem, que os homossexuais se escondam e que o Estado privilegie suas crenças particulares.

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