Cruz sinaliza local da morte de Dorothy Stang, em 2005. Foto: Antônio Cícero
Nas diversas placas de sinalização ao longo das rodovias que ligam os municípios do sudeste e do sul do Pará, raras são as que não ostentam marcas de balas. Atirar nas placas pode ser o insuitado passatempo de quem trafega por aquelas estradas, sem maiores consequências. Mas as marcas também sinalizam muito do espírito que sempre marcou a colonização daquela parte do estado, pivô de conflitos agrários, assassinatos de lideranças rurais e número um em índices de desmatamento e trabalho escravo.
Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), ocorreram no estado do Pará, entre 1964 e 2010, 914 assassinatos de trabalhadores rurais, religiosos e advogados por questões de terra. Desse total, 654 ocorreram no sul e sudeste do Pará. “Muitos dos trabalhadores rurais assassinados, não conhecemos os rostos e nem sabemos os seus nomes. Em muitos desses casos a polícia negou o registro das denúncias formalizadas por sindicalistas e familiares das vítimas, e negou também o resgate dos corpos onde foram assassinados”, diz o advogado da CPT em Marabá José Batista Afonso.
A CPT divulgou no início do ano uma lista com o nome de 38 pessoas ameaçadas de morte no sul e sudeste do Pará por causa de sua luta pela posse da terra. Dez são mulheres.
Num dossiê que esmiuça a violência no sul e sudeste do Pará, a CPT avalia a violência que vitimou centenas de trabalhadores rurais, dirigentes sindicais, religiosos, advogados e parlamentares que lutam pela terra e pela reforma agrária, remonta principalmente o governo militar que, no início da década de 1970, começou a investir na ocupação da Amazônia. O sul e sudeste do estado do Pará, região de expressiva concentração de riquezas minerais e naturais, foi talvez onde esse processo se efetivou de maneira mais contundente.
Para explorar as riquezas, o governo construiu estradas, como a Transamazônica, a BR-222, a BR-158, mas construiu também hidrelétricas, como Tucuruí, e estimulou e financiou a implantação de grandes projetos para explorar as riquezas ali existentes, como o Projeto Ferro Carajás. “Ao mesmo tempo incentivou a vinda de grandes empresas e pecuaristas do Centro-Sul do Brasil para investir na criação de gado bovino. Não só concedeu terras, mas créditos subsidiados pela política de incentivos fiscais da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). Esses grupos econômicos, especialmente aqueles que investiram na implantação da pecuária extensiva passaram a expulsar, de forma muito violenta, os povos indígenas e diversos pequenos agricultores que há muito tempo ocupavam da região”, enfatiza o dossiê da CPT.
A novidade da violência atual é que as mulheres estão cada vez mais na linha de tiro, alvo de ameaças. Algumas convivem com essa marca há mais de uma década. Outras começaram a sentir mais recentemente o peso da sina de estarem marcadas para morrer.
Em comum, essas mulheres carregam a consciência da luta que travam; sentem medo, modificaram hábitos, convivem com a incerteza cotidiana. Houve quem decidisse se afastar da luta sindical, com medo das ameaças cada vez mais constantes. Outras permanecem, sabendo ser esse o destino a seguir.
Uma das poucas que conseguiram alguma atenção nacional para o seu périplo foi Laísa Santos Sampaio. Irmã da extrativista Maria do Espírito Santo, assassinada em Nova Ipixuna, a 580 quilômetros de Belém em 2011, Laísa é o “alvo da vez” no município. Ela e o marido, José Maria Gomes Sampaio, o Zé Rondon, estão sendo ameaçados de morte desde o assassinato de Maria e José Cláudio Ribeiro da Silva. Laísa já não dorme tranquilamente e não pode sair de casa sem acompanhamento. A rotina pessoal mudou, desorganizando toda sua família, a relação com os filhos e o trato da lavoura e do extrativismo dentro do seu lote de terra. A Comissão Pastoral da Terra acredita que as ameaças têm sido feitas por pessoas que provavelmente fizeram parte do consórcio de proprietários de terras, madeireiros e carvoeiros que assassinou José e Maria. As ameaças de morte foram registradas na Delegacia de Conflitos Agrários do Sudeste do Pará (DECA). Pouco mudou.
“Não saio mais desacompanhada”, diz Regina Maria Gonçalves Chaves. Regina é presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município de Eldorado dos Carajás. No dia 15 de junho de 2012 um grupo de fazendeiros invadiu a sede do Sindicato e a ameaçou diretamente. “Deixaram um recado: estariam com grupos armados à espera de qualquer tentativa de ocupação por parte dos movimentos sociais”, diz ela. Dias depois, pessoas estranhas foram vistas rondando a sede do sindicato e à procura de Regina na casa dos familiares dela.
Em Breu Branco, próximo ao município de Tucuruí, a 480 quilômetros da capital, Graciete Souza Machado convive com uma bala alojada a apenas dois centímetros da coluna vertebral. O alvo era o pai, Francisco Alves de Macedo, líder comunitário que defendia posseiros que ocuparam a fazenda Castanheira. Francisco Alves foi morto por pistoleiros “Eu sou ameaçada de morte desde 2010. Não temos liberdade para sair de casa com nossas crianças. Vivemos totalmente inseguros e com muito medo, pois a qualquer momento, como aconteceu com o meu pai, pode acontecer comigo. Tenho muito medo”, diz ela.
Mudam as personagens, mas as histórias são semelhantes.
“As mulheres se tornaram lideranças que acabaram tomando à frente da luta, muitas vezes são responsáveis pelo sustento da família”, diz a advogada da Comissão Pastoral da Terra, Vânia Maria Santos, 29 anos. Ela atribui a continuidade dos padrões de violência à impunidade. “Da ameaça à concretização é pouca coisa”, diz ela.
Nos assentamentos, acampamentos, periferias dos municípios, nas entidades sindicais, uma dezena de mulheres segue sua vida, à espera do assassino, cumprindo pena forçada. É a história delas que a Pública, em parceria com o jornal Diário do Pará, conta a partir dessa semana.
* Publicado originalmente no site Agência Pública.