Foi nesta época de uma alegre e pura maldade que aportou em MACAÉ,
vindo dos Campos dos Goytacazes, um vulto alto, esguio e bem falante.
Trazia uma esposa de pele clara e formação educada, que foi tomando
conta da comunidade pelos dotes de mulher, diferente no trato e no
vestir. Era a esposa de seu Otavianno , com dois enes como ele gostava
de dizer, Canella.
Canella foi se adaptando as maneiras macaenses e, como bom índio Goitacá, foi montando sua tenta e abrindo seu espaço.
Dono de uma grande verbosidade e de uma cabeça a frente de seu tempo ele visualizava a cidade com 50 anos a frente e foi cimentando suas idéias e adquirindo imóveis onde, as pessoas davam ou vendiam "a preço de bananas, como se diz nas rodas lindas das noites enluaradas dos sertoes brasileiros.
Canella ocupou toda orla da Praia Campista onde é hoje o trevo da Petrobrás e foi loteando por sua conta e risco onde hoje fica os altos da LAGOA DE IMBOASSICA. Sempre na sua Brasília amarela que parecia projetar os futuros mamonas .
Vinha e ia sempre de sua casa para o Bar e restaurante Belas Artes trocar idéias e fazer negócios. Foi lá que eu conheci este malandro nato que muito me ensinou nas artimanhas da vida. Eu com pouco mais de 40 anos e ele beirando os 98 anos.
Sua mesa estava sempre cheia de gente. Mangueira, o Velho Maia, o irmão gordo de Mangueira, Zé Clímaco, Carlos Augusto Garcia, José Lyra Madeira, Ruy Figueiredo Borges, José de Mattos, Leandro Soares, Aloísio da Vassoura, Gerson Miranda, Juventino Pacheco, Faustino Marciano de Castro, Filhinho Monteiro, Carlos Maia, Manoel Maia, Alvinho Paixão, Antão Freitas, Alcebíades Azevedo, Ruy Moutinho de Almeida, Paulo Rodrigues Barreto, Roberto Moacyr, e outros que me fogem a memória.
Canella ia transferindo para todos suas experiências campistas e conquistando os espaços na cidade e formulando idéias de vendas e compras, já que a maioria das pessoas estava mesmo acomodada em sair de casa, abrir o comércio, fechar as l7 horas, tomar um banho e ir para a rua trocar idéias ou falar da vida alheia em longas fofocas interioranas que eram um dos motivos maiores para que as longas conversas tivessem sentido.
Gargalhadas para lá, olhares de soslaio para ver se não vinham parentes das pessoas fofocadas e assim a vida de Macaé caminhava nos passos lentos nas tardes noites nativas. Igual a todas as noites em qualquer cidade de interior do Brasil.
O "cerzimento" do Café por Toninho, com sua tradicional educação e paciência, era apenas sentida quando trazia para a roda mais cadeiras com a chegada de Márcio Paes, Waldyr Siqueira e alguns galistas que cumprimentavam e iam direto para o reservado, para uma refeição maior.
No caixa, o português Dinis e sua meiga esposa dona Maria, já sabiam que quando a mesa ia ficando com poucas pessoas já se avizinhava um "beiço" (nome ou termo usado nas cidades da regiao do RJ que pode ser também Pindura) na despesa e, catucando com o olhar de além mar para "Toninho", dizia que era chegada a hora de fechar a roda, sob pena do pindura ser a melhor opção.
As vezes a animaçao das noites era incentivada por "Gabarito" que, muito doido, entrava porta a dentro e o bar se fechava mais cedo. Esta figura alegre, era um sisudo funcionário do DNOS, que, com algumas pingas na cachola, incorporava o "gabarito" dançando com pratos na cabeça, bulinando mesas, dando tapas nas cabeças das pessoas, enfim, coisa que todo bebum, com l m 50 de altura e pesando uns 48k, nao recebia outra opçao das pessoas senao um alegre até logo...
Dinis deixou a direção do Belas Artes e veio dona Maria e seu "Paco" que trouxeram com eles os seus filhos que se criaram junto com todos nós. Roberto, o mais velho se casou com a filha de Bráulio e Ceni e depois foi para Europa.
Dona Maria e seu Paco foram os mais pacientes de todos os proprietários deste famoso bar. Acho que só comparado a Dinys e Dona Maria.
Vez ou outra entrava no BELAS ARTES vindo do jogo de Carteado da Rua da Praia, Pantaleão Teixeira, "Djalma Maluco", Mascarenhas para comprarem cigarros e levar café nas térmicas para as rodadas de Campista, Cunca e 21, jogos que viravam a noite.
Alguns visitantes engraxavam sapatos com "Tiziu" ou com "Sapato Branco Jogou Poeira no Vento". Este era o apelido de Aminta que sempre trocava suas frases mais era entendido. Ele queria dizer que o vento tinha jogado poeira no sapato branco. "Aminta" fazia seu ponto de engraxate na loteria de seu Martins, outro campista que importamos.
Quando chegavam de viagens desciam dos ônibus para um cafezinho ou um simples boa noite. O "Belas Artes" era o lugar de destaque. Na estação os carregadores de malas requisitados eram "Nilo Pavão" ou "Coruja", o "Bença Mamãe"... "Coruja" tinha este apelido de Bença porque quando de um baile na Barra apagou a luz e ele agarrou a primeira mulher que estava na frente. A luz acendeu e advinham o porque do apelido?
Canella ia observando toda a movimentação e forjava suas idéias onde o primordial era adquirir áreas onde iria povoar uma Macaé que ele sabia ser de um futuro muito bom para seus objetivos financeiros.
Tinha suas preferências em amizades e eu, "Parodi", "Filhinho Monteiro," Omir Sá Rocha e Carlos Maia eram suas melhores escolhas. Criou um menino negro que era seu orgulho e alegrias. Vendeu parte do seu ultimo imóvel em frente a Lagoa mais separou um lote para "Sebastiazinho" que ainda lá reside.
Falava de suas andanças nas periferias de Campos e de seu irmão, Silvino Canella que se formou em medicina na Suíça. Já com seus 98 anos ele quis casar e o fez com dona Dinorah que infelizmente o colocou no Asilo onde triste e sozinho ele faleceu.
Um dia eu fui com Maia visitá-lo e não era mais o "Guerreiro Goitacá". Deitado numa cama , num quarto coletivo ele pedia para que lhe tirasse dali.
Sua mente ainda tinha a juventude que queria voar pelo mundo e criar suas próprias azas. Porém, a fragilidade do corpo não obedecia a jovem alma, e se quedava no canto. Omir Rocha, outro que comigo ia visitá-lo, tentou contato com um seu parente em Campos de nome Ari Canela, que não deu atenção ao fato. Este seu primo parecia ser um índio já escovado pelos homens brancos Era mesmo o fim que se avizinhava para o velho Canella.
Uma Irmã de Caridade , que nos recebeu quando de sua morte, perguntada de que teria morrido olhou para dentro de si mesma e balbuciou como que num final de prece.
Ele morreu de tristeza e solidão. Seu sepultamento tinha apenas eu, Carlos Maia, "Parodi" e Omir, precisamos de mais um para por seu caixão o que foi feito por um coveiro de plantão. Uma flor colhida no próprio cemitério foi colocada em sinal de beleza na despedida deste mestre, filósofo, empresário, grande boêmio, campista e excelente amigo.
Tem gente que nasce com determinadas estrelas. Tipo assim uma figura carimbada pela criação. Nunca deixam dinheiro nem heranças. Me fazia lembrar o velho GANDHI e sua frase belíssima:
"Cada dia a natureza produz o suficiente para nossas carências. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário não haveria pobreza no mundo e ninguém morreria de inanição".
Canella era uma destas figurinhas que tivemos em nosso álbum. Quando ele morreu, as vésperas da primavera eu, ainda tendo acesso a imprensa, fiz uma crônica que terminava dizendo que ele ia com sua essência estrumar a terra da primavera que ele não ia ver.
Uma de suas mais importantes observações de vida foi me revelado . Ele estava já no seu final e me chamou num canto e falou. Meu amigo, acho que estou terminando meu filme. Perguntei rindo, que filme Canella? e ele , sério,. com seu olhar penetrante de cacique Goitacá, sentencia, acho que está acabando meu filme na cabeça, não sonho mais como antes eu sonhava, e acordo muito na noite, e as cores dos meus sonhos não estão mais nítidas, e, olhando me, perguntou como se tivesse já afirmativa resposta, será que temos dentro de nós um filme igual no cinema?
Era mesmo o fim de seu filme, pensei. Ri e desviei a conversa pedindo um chope. Canella sempre dizia que sua avó tinha sido pega a laço nos sertões de São João da Barra e que não se adaptando a vida civilizada (???) suicidou-se.
Era mesmo um índio Goitacá o meu bom e velho amigo Canella.