Os Guarani Kaiowá já não esperam que o governo proteja suas terras. Foto: Cléber Buzatto
Pelo Youtube, fazendeiros ameaçam com uma guerra os indígenas guarani-kaiowá.
São Paulo, Brasil, 3 de setembro de 2012 (Terramérica).- O conflito agrário entre indígenas Guarani Kaiowá e fazendeiros do Mato Grosso do Sul é um paiol prestes a explodir. Nísio Gomes, Genivaldo Vera, Rolindo Vera, Teodoro Ricardi, Ortiz Lopes e Xurete são apenas alguns nomes de uma longa lista de assassinados nos últimos anos nesse Estado, segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). As estatísticas da entidade, vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), registram 279 mortes de indígenas desde 2003, cometidas no contexto de lutas agrárias com proprietários e fazendeiros.
O caso mais recente é o de Eduardo Pires, desaparecido em 10 de agosto quando homens armados atacaram um grupo do povo Guarany Kaiowá no território de Arroio Korá, no município de Paranhos, sul do Estado, perto da fronteira com o Paraguai. O Arroio Korá, de aproximadamente sete mil hectares, foi oficialmente reconhecido como terra indígena em 21 de dezembro de 2009 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Porém, uma semana depois, uma decisão do Supremo Tribunal Federal, em resposta ao pedido de um fazendeiro, exonerou dessa condição uma área de 184 hectares.
“Mesmo com esse embargo parcial, o governo não previu que o restante fosse entregue efetivamente aos Guarany Kaiowá. A comunidade, de aproximadamente 600 integrantes, ocupa atualmente menos de 700 hectares. Quando resolveram retomar o resto das terras, houve uma reação violenta” dos fazendeiros, explicou ao Terramérica o coordenador regional do Cimi no Mato Grosso do Sul, Flávio Machado.
Segundo Eliseu, um dos líderes Kaiowá, que estava no local quando houve o ataque, na manhã de 10 de agosto, cerca de 400 indígenas montaram um acampamento em uma parte das terras homologadas onde está instalada uma fazenda. Pouco depois, chegaram vários homens armados. “Ouvi os tiros e saí correndo. Somos um povo com cultura de paz, não temos armas, mas não deixaremos de lutar por nossas terras. Se vamos morrer, preferimos morrer em nossa terra”, declarou ao Terramérica. Depois disso, ninguém voltou a ver Eduardo Pires. “Creio que está morto”, afirmou o indígena.
A Polícia Federal (PF) do Mato Grosso do Sul está encarregada do caso. “Os indígenas dizem que um deles está desaparecido. Estamos investigando, mas não temos nada de concreto. Devemos ser imparciais”, disse ao Terramérica o superintendente da PF, Edgar Paulo Marcon. Segundo o Cimi, na semana seguinte a polícia retirou da área alguns fazendeiros e o gado. Desde então os Kaiowá vêm sofrendo ameaças. A mais explícita é uma declaração filmada de Luis Carlos da Silva Vieira, conhecido como Lenço Preto, que circula no Youtube.
“Vamos nos organizar e nos preparar para o confronto. Eles querem a terra apenas para incomodar. Nós temos armas. Eles querem guerra, então terão guerra”, afirma Lenço Preto mais de uma vez no vídeo. Em resposta a comunidade Guarany Kaiowá divulgou uma carta pedindo atenção urgente do governo. “Diante da ameaça de morte coletiva feita publicamente na imprensa pelos fazendeiros, solicitamos a investigação e o castigo rigoroso desses mentores do genocídio/etnicídio dos povos indígenas”.
“Todos sabem que eles têm armas de fogo sofisticadas e temíveis, que têm dinheiro que produziram sobre o sangue indígena para comprar mais armas e contratar pistoleiros. Nós não temos armas e, sobretudo, não sabemos utilizá-las”, diz a carta. “Queremos reiterar e evidenciar que nossa luta por nossos territórios ancestrais é apenas para garantir a vida humana, a fauna e a flora do planeta Terra, (que) nosso objetivo não é assassinar ninguém”, acrescenta.
O Ministério Público estadual também investiga o caso e visitou a área no dia 28 de agosto. Em nota divulgada em seu site, deixou claro que durante a visita foram ouvidos cinco disparos que, segundo a entidade, tiveram o objetivo de intimidação. Os Guarany Kaiowá sempre viveram da agricultura de subsistência, cada vez mais difícil por não disporem de seus territórios ancestrais. Agora contam com apoio da Fundação Nacional do Índio (Funai). Colonos e fazendeiros ocuparam essas terras há décadas.
No Cerrado, bioma de savana tropical típico do Mato Grosso do Sul, se estendem as plantações de grãos e a pecuária. Suas terras também são cobiçadas para plantar cana-de-açúcar destinada à produção de etanol. Alguns líderes indígenas estiveram em Brasília no dia 24 de agosto, se reuniram com autoridades da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e conseguiram que o governo os incluísse no programa de proteção de pessoas ameaçadas. Contudo, para o Cimi, a medida é insuficiente.
“Muitos indígenas assassinados estavam nesse programa. Foram colocados na lista, mas isto não significa nenhuma proteção efetiva. O que fazem é enviar gente para constatar o que já aconteceu”, lamentou Machado. Mas os Kaiowá vêm a proteção com bons olhos. “Pelo menos (as autoridades) sabem quem nos ameaça, e, se nos acontecer alguma coisa, saberão quem foi”, opinou Eliseu.
A decisão de ocupar o território de Arroio Korá foi tomada pelos chefes da comunidade em uma grande assembleia, a “Aty Guasú”. Apesar dos últimos ataques, os indígenas já não estão dispostos a suportar a demora do governo e afirmam que vão retomar todas as suas terras já homologadas. “É que a demora também está matando o povo. Ninguém decide. Vamos ocupar todas as terras mesmo sabendo que não há segurança, que vamos morrer. O povo decidiu”, explicou ao Terramérica o Guarani Kaiowá Tonico.
Sobre as ameaças dos proprietários, Tonico afirmou que “estão falando em público que vão fazer o que já fazem. Aqui, no Mato Grosso do Sul, os direitos humanos dos indígenas não existem. Índio não é gente”, ressaltou. A decisão foi reforçada com a indignação gerada pela Portaria 303 da Advocacia Geral da União (que exerce a defesa legal do Estado), publicada no dia 17 de julho, que determina que as terras indígenas podem ser ocupadas por projetos hidrelétricos, vias de comunicação e de transporte e instalações militares sem necessidade de consulta prévia aos povos que as habitam. “Isto é um retrocesso”, ressaltou Tonico. Envolverde/Terramérica
* A autora é correspondente da IPS.
Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.