Para o professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Salomão Hage, a garantia constitucional do direito à educação foi substituída pela lógica da relação custo-benefício pelo poder público.
“As políticas públicas educacionais, há certo tempo, são orientadas pela relação custo-benefício, na perspectiva neoliberal. Os gestores públicos hoje são desafiados a apresentar cada vez mais resultados com cada vez menos financiamento”, afirma.
Hage acredita que esta é uma mágica difícil de materializar. “Como você pode atender mais, oferecer melhor qualidade, contemplar a diversidade em um país em histórica situação de negação de direito, se o orçamento e o investimento cada vez diminuem mais?”, questiona.
Para ele, a associação de desenvolvimento ao meio urbano é usada para justificar o fechamento das escolas no meio rural. “O próprio poder público olha para esse processo de territorialização das populações do campo e rotula de disperso. Se está disperso, no sentido de estarem distribuídas ao longo do território, e se pode reuni-las, gastará menos de acordo com suas referências de qualidade. Assim começa o desenvolvimento das políticas de nucleação que, às vezes, não são de nucleação, mas de polarização”, critica.
Essa política desrespeita o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que indica que os educandos devem ser atendidos nas suas próprias comunidades. “As diretrizes operacionais para a educação básica no campo fortalecem essa ideia da necessidade de a escola atender as crianças e os adolescentes, prioritariamente, na sua comunidade”, sustenta.
Leia entrevista feita pela Página do MST com Salomão Hage, coordenador do grupo que estuda educação no campo na Amazônia, e que integra a coordenação do Fórum Paraense de Educação no Campo.
Como você avalia o fechamento de escolas por Estados e municípios?
As políticas públicas educacionais, há certo tempo, vêm sendo orientadas pela relação custo-benefício, por conta da perspectiva neoliberal. Os gestores públicos hoje são desafiados a apresentar cada vez mais resultados com cada vez menos financiamento. Isto é uma mágica difícil de se materializar. Como você pode atender mais, oferecer melhor qualidade, contemplar a diversidade, em um país em histórica situação de negação de direito, se o orçamento e o investimento cada vez diminuem mais? O resultado tem sido a aplicação de políticas educacionais que caminham no contraponto das demandas que os movimentos sociais do campo e da cidade, dos educadores, das universidades colocam como referência para a educação.
Como essa relação custo-benefício afeta as escolas do meio rural?
O Estatuto da Criança e do Adolescente indica que as crianças devem ser atendidas nas suas próprias comunidades. As diretrizes operacionais e complementares para a educação básica no campo fortalecem essa ideia da necessidade de a escola atender as crianças e os adolescentes, prioritariamente, na sua comunidade. Isto significa o acesso pela comunidade aos conhecimentos historicamente produzidos e, em grande parte, as escolas são o único equipamento público existente. Por isto, representam a presença do Estado naquela localidade. Onde a escola está presente, há uma movimentação da infância, da adolescência. A escola é espaço de reunião, de atividades culturais da comunidade, de discussão coletiva.
Qual o impacto da falta de escolas para crianças do meio rural, que vão estudar nas cidades?
As comunidades rurais em geral, estão distribuídas territorialmente de acordo com as demandas e as necessidades que as populações têm de sobrevivência, de trabalho, de relação que se estabelece com a terra, com a água, e elas estão presentes há séculos. Há um processo de desenvolvimento sustentável a partir do processo de territorialização e desenvolvimento destas localidades. Na medida em que o gestor é demandado para o atendimento – e não é um atendimento qualquer –, a gestão pública cria alternativas pautadas por essa questão de custo-benefício, que vai em sentido contrário às demandas e necessidades do processo de territorialização desenvolvido.
O princípio também é inspirado por uma perspectiva “urbanocêntrica”. Esse “desenvolvimento” é pautado na perspectiva do campo para a cidade, causando um processo de expulsão do campo, na ideia de que se eu concentro as pessoas posso atender mais, utilizando menos recursos. Uma coisa é atender 300 escolas distribuídas por todo o campo brasileiro, outra coisa é atender 20 escolas com as pessoas concentradas onde você não teria gastos com transporte, deslocamento e um conjunto de outras demandas para atender.
Como o Estado age nessa situação?
O próprio poder público olha para esse processo de territorialização das populações do campo e rotula de disperso. Se está disperso, no sentido de estarem distribuídas ao longo do território, e se pode reuni-las, gastará menos de acordo com suas referências de qualidade. Assim começa o desenvolvimento das políticas de nucleação que, às vezes, não é de nucleação, mas de polarização. Quando se aumenta o transporte escolar, você fecha escolas em comunidades mais distantes e reúne em comunidades rurais maiores ou traz para a sede do município.
É essa perspectiva quantitativa da relação custo-benefício, a partir da perspectiva urbanocêntrica, que é aplicada pela gestão pública. Há ainda uma aceitação da sociedade, porque conseguem demonstrar que, por meio da oferta do transporte escolar, atendem toda a demanda e em todos os níveis. Isto acontece porque há uma compreensão de que a cidade é o lugar do desenvolvimento, que consolida como natural esse movimento das pessoas se deslocarem do campo para a cidade.
O fechamento das escolas do campo pelo poder público segue esses princípios?
O fechamento das escolas é um atentado às comunidades rurais com o discurso de melhoria, ampliação e aumento da escolaridade. Só que não há lugar para todo mundo viver na cidade, no lado urbano. A população que vive nas cidades não vive essas promessas do desenvolvimento que a perspectiva urbanocêntrica apresenta. Quem vive bem na cidade? Quem vive no centro e quem tem um emprego significativo? A grande maioria vive muito mal na cidade, vive pior que as pessoas que vivem no campo.
Nos últimos anos, foram fechadas mais de 30 mil escolas. Se a gente não abrir o olho, este número aumenta. Esta é uma luta que precisa unir todos os setores. Estamos na luta pelo Plano Nacional de Educação. O que nos une são as referências de qualidade da educação, a necessidade de um financiamento suficiente, a valorização e a formação dos profissionais de educação. Há uma luta pelos 10% do Produto Interno Bruto para a educação que cobra uma condição para desenvolver as escolas do campo e da cidade.
No entanto, há demandas especificas do campo: apenas 30% das crianças são atendidas em nível de educação infantil no campo, segundo números do MEC. Com a emenda constitucional 59, conseguimos que até 2016 o ensino será obrigatório dos quatro aos 17 anos. Como vamos atender as crianças menores, cujas mães trabalham no campo? Se a lógica é investir em transporte e deslocamento, como vamos fazer com as crianças de zero a cinco anos?
O discurso de que estão dispersas é uma forma pejorativa de tratar a territorialização das populações do campo, que se organizam de acordo com suas necessidades e com as relações que estabelecem com a floresta, com a terra, com a água. Não se pode simplesmente olhar para isso e dizer que é disperso.
Qual a sua avaliação das políticas públicas para a educação do campo, em nível nacional, nos últimos dez anos?
Desde o final da década de 1990, mais especificamente com a realização das conferências nacionais de educação no campo, com a criação e o fortalecimento de uma articulação nacional, que combina a participação dos movimentos sociais, universidades e setores do poder público voltados para a questão da agricultura familiar e da Reforma Agrária, a gente tem dado passos significativos no sentido de pensar o campo brasileiro a partir da sua diversidade, demandas e necessidades, dentro da disputa política por outro projeto de sociedade.
O que avançou nesse processo?
O fortalecimento desse movimento foi capaz de fazer com que o MEC criasse, dentro da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade e Inclusão (Secadi), uma coordenação de educação no campo.
A partir dela, foram criados alguns programas – como o Projovem Campo, o Saberes da Terra, o Procampo licenciatura plena e mesmo o Escola Ativa (que não teve uma discussão mais sistemática com o conjunto dos movimentos) – que começaram a provocar um certo movimento dentro da formação do educador, no âmbito da formação da prática educativa em todos os níveis de faixa etária.
Além desses, houve avanços no Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), que foi criado da discussão entre o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Incra.
Há um protagonismo desse movimento que se desenvolveu de modo a mostrar que os sujeitos do campo também são sujeitos de direito e as políticas públicas precisam atender as suas necessidades.
Vivemos um momento de fortalecimento dessa consciência da necessidade do atendimento e da necessidade de demarcar as especificidades dos sujeitos do campo. Com isso, consolida-se a ideia de que o campo tem como contribuir com esse projeto de desenvolvimento. E que, sem o campo, o desenvolvimento pode não resultar em uma proposta significativa.
Qual a reação à maior participação dos movimentos sociais?
Esse processo de protagonismo tem despertado um desconforto naqueles que têm um projeto diferenciado para o campo e para a sociedade brasileira. Enquanto os movimentos fortalecem os modos de produção familiar no campo e as lutas camponesas pela Reforma Agrária, o agronegócio também está em franca expansão com um significativo financiamento, que entra em contradição com esse avanço que o movimento social vem desenvolvendo.
Insatisfação essa que, historicamente, foi construída na representação social que os povos do campo seriam atrasados e a agricultura familiar um projeto de fome, que não tem como contribuir para o desenvolvimento.
Ao mesmo tempo, o projeto do modo de produção familiar se apresenta como uma alternativa viável para o desenvolvimento com base na sustentabilidade, na economia solidária e nos princípios de educação crítica e transformadora. Essas disputas de hegemonias começam a fluir e os ataques vêm da mídia, das grandes corporações e, essencialmente, de instituições que, embora públicas, são direcionadas pela perspectiva privatista, patrimonialista.
Quanto mais avança, maior a reação desses setores?
É isso que a gente tem vivido de forma mais intensa nos governos Lula e Dilma. No governo Lula, conseguimos avançar mais no diálogo entre os movimentos sociais, as universidades e o setor público, no sentido de apresentar editais, os programas, de formular legislações que pudessem reconhecer esse outro projeto, essa outra intencionalidade.
Projetos promovidos durante o governo Lula foram se ampliando, até que, com as reações, começaram a sofrer e ter a continuidade comprometida. Embora o Pronera estivesse assegurado com o decreto, virou política pública.
Outros programas, com o próprio Procampo, estão ameaçados de serem substituídos pelo Pronacampo. Esse novo programa está sendo construído sem o diálogo com os movimentos sociais e com as universidades.
E no que a educação contribui para essa disputa de modelo de sociedade?
A educação conseguiu estimular a relação de movimentos sociais, universidades, setores do poder público mais alinhados com esse outro projeto de sociedade e de educação, na relação direta entre educação e trabalho, educação e desenvolvimento, na formulação de outro projeto de sociedade.
Na medida em que isso se consolida e se apresenta como uma proposta viável, que atende às necessidades da maioria, os blocos hegemônicos – que se orientam por outra perspectiva, por uma sociedade excludente, elitista e discriminatória – reagem em todos os sentidos para deslegitimar esse projeto.
Esses resultados são suficientes?
Essa situação de negação de direitos, não só para o campo, mas também para a população que mora nas periferias das grandes cidades, para as classes populares da sociedade brasileira, é histórica. Tem pelo menos cinco séculos de existência. Não seriam dez, 12 ou 20 anos de protagonismo e tentativa de redimensionar o atendimento educacional que seriam suficientes para superar os níveis de pobreza da sociedade, que em sua grande maioria está no campo.
A precarização do campo data desde o inicio do Brasil enquanto nação, mas esse protagonismo tem se fortalecido com essa nova articulação. Mas há reação com a criminalização dos movimentos sociais, que são acusados de receber dinheiro dos órgãos públicos para fortalecer suas organizações.
E no que essa falta de diálogo e participação dos movimentos sociais na construção de novas políticas para a educação pode significar?
A falta de diálogo pode significar a não continuidade dos programas desenvolvidos como resultado dessa articulação entre os movimentos sociais e o poder público. Poderá significar um afastamento maior do MEC, da Secadi e da própria coordenação de educação no campo. Na medida em que se constrói novos programas e novas diretrizes sem a interlocução com os movimentos sociais e as universidades, esse afastamento tende a se fortalecer. Pode se configurar num programa que não atenda às necessidades e demandas.
* Publicado originalmente no site Página do MST retirado do site Adital.
(Adital)