Foto: Valter Campanato/ABr
Estilo de vida, sentimentos e status social estão ligados a ter ou não um automóvel. Confunde-se, não raro, a qualidade do objeto com seu proprietário. Reformam-se cidades para servir a esses pequenos tiranos, perdendo em tranquilidade, ar puro e convívio humano.
O apego aos carros tornou-se tão intenso que, mesmo estando o planeta mergulhado numa grave crise ambiental, em grande parte causada pelo seu uso, ainda há muita resistência em abrir mão desse conforto. Pelo contrário, ele continua sendo o sonho de consumo de muitos. Como resolver esse quadro?
No plano individual, pegar num volante traz uma agradável sensação de liberdade. Ter um automóvel à disposição dá mais autonomia no ir-e-vir e agilidade para compromissos, encontros, trabalho, diversão etc. No entanto, isola seu condutor de um contato mais estreito com as ruas que percorre e as pessoas pelas quais passa, e, não raro, leva-o a mergulhar numa pressa sem propósito. Pressa que se traduz em competição, na qual se dão fechadas, disputam-se centímetros de espaço e se acelera em ultrapassagens sem razão, só para ficar parado num semáforo metros adiante.
No plano coletivo, essa situação multiplicada por milhões de veículos pelas ruas ou estradas causa um stress constante, não só para as pessoas, mas também para os locais cortados por rodovias ou grandes avenidas. E afeta ainda quem mora em torno das áreas de muito tráfego ou viaja nos ônibus – que também participam dessa disputa e cooperam para congestionamentos que em muitas localidades não estão mais restritos aos horários de pico. Afeta, sobretudo, o clima na Terra. É, portanto, um cenário que pede mudanças urgentes.
Conciliando interesses
Algumas iniciativas pelo mundo afora estão mostrando que é possível modificar essa realidade, de forma criativa e inovadora.
Tudo seria bem mais simples se desde o início as cidades fossem planejadas priorizando o transporte público e serviços bem distribuídos, como imagina J. H. Crawford, autor do livro Car Free Cities(Cidades Livres de Carros). Em sua obra, ele descreve um inteligente sistema para organizar o espaço e o dia-a-dia urbanos, de forma a anular a necessidade de caminhões, ônibus e veículos particulares, até mesmo em cidades já existentes.
Seu pensamento alinha-se com o movimento internacional formado por inúmeras iniciativas reunidas na World Carfree Network (Rede por um Mundo Livre de Carros), surgida a partir das atividades da ONG Car Busters. Mas talvez esta seja mesmo uma tendência muito radical, considerando todo o valor afetivo que (ainda) é atribuído aos veículos automotores por grande parcela da humanidade.
Uma alternativa mais branda, e que já prepara a transição necessária, é o sistema de compartilhamento de veículos chamado de Car Sharing, um tipo diferente de aluguel praticado na Europa, no Canadá e nos Estados Unidos. Os carros ficam estacionados em diferentes pontos da cidade à disposição do usuário, que paga pelo tempo de utilização, podendo pegá-los numa região e entregá-los em outra.
O modelo pode ser escolhido de acordo com a necessidade de cada viagem, incluindo até mesmo vans e pequenos utilitários. Os argumentos de seus criadores é que esse sistema ajuda as pessoas a se libertarem do hábito de possuir um carro. Ele é ideal para quem não precisa do veículo para ir ao trabalho todos os dias e dirige menos de 12 mil km por ano.
Lançado na Suíça em 1987, o sistema estendeu-se para a Alemanha no ano seguinte e chegou ao Canadá, via Québec, em 1993. Ali, até janeiro de 2009, segundo a Universidade da Califórnia, havia alcançado 46.802 membros e 1.758 veículos, em 15 organizações de car sharing. Nos Estados Unidos, já havia 24 programas, com 309.437 membros e 6.093 veículos.
Ligação perigosa
Dividir o uso de um mesmo carro traz de fato uma mudança de mentalidade, na qual o carro deixa de ser visto como a extensão de seu dono ou dona. Hoje em dia, ainda é bastante comum no Brasil ser chamado de “doutor” ou “doutora” ao entregar a chave de um luxuoso modelo importado a um manobrista. E há estacionamentos que se negam a receber modelos velhos, como uma Brasília por exemplo, ou os estacionam em locais distantes da vista de seus frequentadores.
Nas grandes cidades, carros podem ser necessários no dia-a-dia. Mas mesmo nas pequenas eles proliferam, tornando-se uma forma de se diferenciar socialmente. É sinônimo de sucesso ter um modelo caro, um esportivo de última linha, mesmo que este polua bem mais que um popular 1.0. Com um carro disponível, logo se instala o costume de usá-lo até para ir a locais muito próximos de casa, como a padaria a quatro quadras ou a casa do vizinho ali adiante.
A grande questão é saber o quanto de nossos sentimentos e valores permitimos que estejam ligados a esse objeto? Ainda há fundamento nas piadas que colocam o carro como verdadeiro “amor” de seu dono, a ponto de a norte-americana Katie Alvord ter escrito o livro Divorce Your Car! (Divorcie-se de Seu Carro), convidando os leitores a se libertar desse “vício”? A obra está recheada de dicas e relatos que mostram como a autora aprendeu a aproveitar bem a vida sem esse meio de transporte. Uma atitude rara, já que, nos Estados Unidos, enquanto, em 20 anos, a população aumentou 20%, o tráfego cresceu absurdos 236%, sendo comum casas com quatro ou cinco carros na garagem, um para cada integrante da família.
Nos anos 1970, o arquiteto e pintor austríaco conhecido como Friedensreich Hundertwasser criou a teoria das cinco peles que envolvem cada ser humano. A primeira é a própria epiderme; a segunda, a roupa; a terceira, a casa; a quarta, o meio social ao seu redor; a quinta, por fim, é o meio global. Ele defendia que o bem-estar de cada um depende de uma relação adequada com cada uma delas. “A compreensão mais ampla de nosso lugar no mundo passa pela melhor ambientação em face de cada uma dessas peles”, explica Euclides Guimarães, sociólogo e professor da PUC-MG, em seu artigo“Intimidade e Identidade”.
Seriam os carros mais uma pele, infiltrada na identidade de seus donos e na própria sociedade a ponto de a saúde de economias inteiras estar ligada à sua produção? É essa a razão de comemorarmos o crescimento de suas vendas, mesmo que isso signifique o esgotamento dos sistemas viários existentes, o aumento de doenças respiratórias e de mortes por poluição atmosférica – como tem comprovado o Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Faculdade de Medicina da USP? Ou que provoque o agravamento de mudanças climáticas capazes de ameaçar a presença humana na Terra?
É interessante ver surgir novas tecnologias, como carros elétricos ou o moderno carro solar Koenigsegg Quant. É louvável a oferta de modelos acessíveis a todos, como o indiano Tata Nano, projetado para ser o carro mais barato do mundo. Mas a verdade é que continuar a ampliar a presença de automóveis no globo é um ato de enorme imprudência. Já passou da hora de recolocarmos as pessoas e o convívio humano como foco central do planejamento urbano e recuperar a qualidade de vida que o número excessivo de carros tirou de nós.
* Neuza Árbocz é jornalista e especialista em Desenvolvimento Sustentável. / Edição: Benjamin S. Gonçalves (Instituto Ethos).
(Envolverde)