Como foram publicados na semana passada decreto e instrução normativa, Cadastro Ambiental Rural (CAR) corre o risco de ser instrumento inócuo na gestão ambiental das propriedades rurais
O lançamento oficial do Cadastro Ambiental Rural (CAR) em âmbito nacional demonstra, mais uma vez, a falta de prioridade do governo federal com a gestão ambiental no campo. O CAR nacional foi instituído pela nova legislação federal (Lei 12.651/2012) que revogou o antigo Código Florestal. Seu objetivo é registrar as informações ambientais sobre as mais de cinco milhões de propriedades rurais do país para impulsionar o reflorestamento de áreas desmatadas ilegalmente.
Na semana passada, o governo publicou o Decreto nº 8.235/14 e a Instrução Normativa nº 2 do Ministério do Meio Ambiente (MMA) para regulamentar o cadastro. Da forma como está explicitado em ambas as normas, no entanto, o CAR poderá se tornar uma ferramenta inócua que pouco servirá para a adequada gestão ambiental das propriedades rurais.
Foram quase dois anos de espera. Essa demora teve impactos negativos no campo. A espera pela regulamentação desmobilizou inclusive os produtores que estavam buscando a sua regularização ambiental antes mesmo da nova legislação florestal ter sido aprovada. Vários viveiros de mudas – elo fundamental da cadeia de recuperação florestal – tiveram queda significativa nas suas vendas, sem contar os que encerraram suas atividades.
A única justificativa plausível para a demora poderia ser o fato de que o governo precisava de tempo para aperfeiçoar o sistema de cadastro. Mas, após esses dois anos, o que temos é uma regulamentação às avessas. O cadastro ambiental será um instrumento meramente declaratório, sem o devido apoio técnico necessário. O acompanhamento de um técnico qualificado será simplesmente “opcional”.
Após a inscrição, sem que seu cadastro seja analisado e validado pelo órgão ambiental, o produtor irá assinar o termo de compromisso para realizar a restauração ambiental. Enquanto o termo de compromisso estiver sendo cumprido, ficam suspensas as multas referentes aos desmatamentos que ocorreram até 22 de julho de 2008 (data da anistia definida na nova lei).
O que isso significa? Significa que o CAR será um instrumento bastante útil para facilitar a regularização ambiental dos produtores que haviam desmatado ilegalmente, mesmo que isso não se traduza necessariamente em melhorias ambientais efetivas. A inscrição no CAR poderá ser feita pelo próprio agricultor e suas declarações serão suficientes para a assinatura do termo de compromisso.
Se a intenção for realizar um CAR de qualidade, não faz o menor sentido que a inscrição seja feita sem a obrigatoriedade de apoio técnico, conforme já alertamos (veja aqui). Não garantir, desde o início, a entrada de dados com qualidade técnica compromete a eficiência e a eficácia desse instrumento. O pior é que, de acordo com o decreto, o produtor estará dispensado também de contratar um técnico para a elaboração da “proposta simplificada” que visa à recomposição, recuperação, regeneração ou compensação da Reserva Legal. Essa “proposta simplificada” nada mais é do que um dos documentos-base para a assinatura do termo de compromisso.
Da mesma forma, não faz sentido o termo de compromisso ser assinado sem que as informações inseridas no cadastro tenham sido validadas. Tanto no decreto quanto na instrução normativa, não há nenhuma previsão de prazo para a análise e validação do cadastro, o que denota a falta de prioridade do tema.
A validação do cadastro precisa ser anterior à assinatura do termo de compromisso. Somente dessa forma, o produtor poderá assinar o termo com base em informações que tenham sido atestadas quanto à veracidade dos dados e à adequação técnica. É completamente desarrazoado que um termo de compromisso seja assinado para, somente em momento posterior, ser feita a validação das informações sobre as quais o compromisso foi assumido.
O problema maior da assinatura do termo de compromisso sem a validação das informações refere-se às consequências jurídicas do termo. Enquanto ele estiver sendo cumprido, as multas ficarão suspensas, como já mencionado. Portanto, como esse termo implica nessas consequências, há ainda mais motivo para que a validação dos dados cadastrais seja feita antes da sua assinatura.
Crédito agrícola
Outra vantagem para os produtores que desmataram ilegalmente: bastará o recibo da inscrição no CAR para poder acessar o crédito rural. Isso também não faz sentido. A inscrição no CAR não pode ser definida apenas como um ato burocrático de declaração, sem que seja feita a verificação do caráter fidedigno das informações prestadas.
Cabe destacar ainda a suposta analogia do sistema do CAR com o sistema da Receita Federal para a declaração de imposto de renda. Essa analogia é frequentemente utilizada por muitos gestores para justificar o sistema atual de cadastramento ambiental. Porém, é uma analogia de bases frágeis.
O sistema da Receita Federal, embora seja também declaratório, dispõe de uma série de bancos de dados de outros sistemas correlatos para que as informações sejam confrontadas e atestadas. Além disso, boa parte da arrecadação da receita com esse imposto é proveniente diretamente das folhas de pagamento dos assalariados, ou seja, parte significativa da arrecadação acontece antes mesmo da declaração.
No caso do CAR, a situação é diversa. Fora a base de dados dos limites das áreas protegidas (terras indígenas, unidades de conservação e territórios quilombolas), dos assentamentos rurais e das poucas propriedades que foram georreferenciadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Brasil não tem bases de dados suficientes para auxiliar na checagem das informações declaradas. Na verdade, esperava-se que o CAR pudesse cobrir em parte essa lacuna e pudesse se constituir em uma importante base de dados para auxiliar na gestão do território rural brasileiro. Entretanto, considerando as condições atuais, fica difícil acreditar que esse instrumento será efetivo.
O MMA preferiu diminuir as exigências com o objetivo de dar celeridade ao cadastramento. Mas o órgão desconsiderou que há limites nessa simplificação de processos para que seja garantida a qualidade do cadastro. Em breve, teremos milhares de cadastros “realizados”. Pena que serão de qualidade questionável. As metas numéricas de cadastro poderão até ser atingidas, entretanto, a utilização do cadastro como instrumento de gestão ambiental provavelmente estará comprometida, se não houver mudanças nos rumos da regulamentação do CAR.
* Flávia Camargo, agrônoma e assessora do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA.
** Publicado originalmente no site Instituto Socioambiental.
(Instituto Socioambiental)