Na estrada, em Nevada e Utah – Em busca do sonho americano (remixado, implodido) a estrada segue adiante, sem fim. Deixei San Francisco em clima de Pain in my Heart de Otis Redding [1] – depois do jardim de infância da rapaziada Google/Facebook do Vale do Silício, louras magérrimas falando em seus McBook Pros pelas calçadas, pedaços de naufrágio e lastro jogado ao mar dos 47% que desafiam a própria sombra pelo centro da cidade à noite, a Itália viva no café de Coppola, “Caf้ Zoetrope”, a ressurgência de Occupy Oakland, o Hudson 49 que cruza o oeste em On the Roadda ode de Walter Salles ao On the Road de Kerouac, agora estacionado no Beat Museum – e tomei rumo leste, por uma Sierra Nevada já acossada por tempestade de neve e um Lago Tahoe fantasmagoricamente calmo, que parecia emergido de alguma obra noir feito Saído do Passado [Out of the Past, 1947], com fantasma de Robert Mitchum incluído.
Christopher Walken em Seven Psychopaths |
Reno respira assassinato – como cara mascarada saída diretamente de Seven Psychopaths (2012) (onde Christopher Walken, mais uma vez, reina) emergindo não se sabe de onde para espalhar o inferno numa cidade fantasma. O Eldorado de manhã cedo estava virtualmente vazio, exceto pela velhota esquisita trabalhando nos caça-níqueis. Coisa de Desolation Row, de Dylan . [2]
E há a depressão em Nevada – um dos estados que mais sofreu os efeitos da crise das hipotecas. Em matéria de “retomada”, a coisa anda tão feia, que há quem creia que a venda do iPhone 5 – que não passa de uma câmera turbinada carregada de aplicativos – possa provocar um salto, lá do fundo, do PIB dos EUA.
Praticamente não se vê qualquer sinal de “consumidor consumindo mais” em Reno, exceto no “Beto”, onde a rapaziada cool local curte o melhor taco de camarão do Oeste. Mesmo assim ainda balança pró Obama, que já balança rumo a 80% de chances de vencer em Nevada, comparadas às 73,6% de vencer no país, segundo projeções de Nate Silver.
Guangzhou é pauleira
Depois começa “a mais solitária estrada da América”, cuja principal atração turística é sortimento variado de “centros correcionais”, cadeias, com o inseparável sinal de “Área de Prisões: Proibido pedir carona” (a menos que você seja psicopata em filme de assassino em série na estrada, claro). Cheguei a Salt Lake City – onde Mitt 47% encenou seus “oh! que sucesso” Jogos Olímpicos, negócio que os britânicos jamais superariam porque não são capazes, como Mitt disse em Londres – e fui recebido por, e o que mais seria, uma tempestade de neve, contraparte à moda Utah da super épica tempestade mãe de todas as tempestades da costa Leste, o furacão Sandy. Meu Cronistamóvel Errante derrapou mais vezes naquela estrada que toda a campanha de Romney.
O paraíso mórmon de Mitt, visto através do ar gelado da noite depois da tempestade, também parecia imerso numa cortina Nevadesca de sombras – apesar de a maioria dos locais parecer feliz por a neve ter começado cedo, porque é bom para o turismo.
Mas outra tempestade se aproxima – a hora do suspense fiscal, quando os cortes da era Bush serão passado, dia 1º de janeiro, com a previsível sequência de mais falta de dinheiro em Washington, novo rebaixamento da qualidade do crédito norte-americano, pânico nos mercados globais, etc. Exceto pela chegada iminente dos turistas do ski, não se vê nenhum sinal de qualquer “retomada” em Salt Lake, mesmo com o preço das casas agora (relativamente) estáveis e uns poucos novos empregos que aparecem, mês sim, mês não.
Hoodoo em Moab - Utah |
Parafraseando The Animals, tenho “de dar o fora desse lugar” [3]. E dei – às 5h da manhã, rumo sul, para um anfiteatro natural que começou há 200 milhões de anos, quando a crosta terrestre rachava em Nevada; então, há 50 milhões de anos, sedimentos erodidos das montanhas de Utah, a noroeste, depositaram-se num lago, derreteram e em seguida incharam, para serem re-erodidos em hoodoos [4]. Bem-vindos a Bryce Canyon, o qual – tecnicamente – não é canyon, porque os canyons são escavados por água corrente, e Bryce foi esculpido, de fato, pelo congelamento e expansão da água.
E então, infalível, inexorável, eu vi: o sonho chinês, não o sonho americano, examinando meticulosamente os hoodoos da Claron Formation. Impossível não reconhecer o sotaque cantonês. O diálogo era inevitável. “Guangzhou?” Resposta: “Guangzhou. E você?” Resposta: Hong Kong. Somos vizinhos.
Fiquei sabendo pela Lady do Cantão que se tratava de expedição completa, patrocinada pelo governo local, só de alguns poucos notáveis, todos armados com o melhor equipamento fotográfico encontrável no planeta, inclusive uma fabulosa Shen Hao HZX-45 II made-in-Shanghai – câmera fotográfica que imprime negativos de grande formato em chapa de vidro. Estavam acampados ali desde as 5h30 da madrugada, à espera do nascer do sol.
Hoodoo em Bryce Canyon |
Eis aí portanto resposta fotografada à declaração de guerra de Mitt – monetária e comercial – à China, a começar no primeiro dia de sua possível presidência. Os chineses trapaceiam. Vão levar o Bryce Canyon, depois Utah, depois o resto e é preciso combatê-los. Claro que o que estão fazendo não é nada disso, é diferente. Enquanto o Ocidente vive obcecado com o que seja “de época” – pelo menos os relativamente raros ocidentais que ainda têm dinheiro para comprar – a China está recuperando a excelência da manufatura ocidental para, chegando o momento, vender tudo de volta ao Ocidente.
Os colonos mórmons chegaram a essa região nos anos 1870s. No Livro do Mórmon, publicado em 1830, Deus – que talvez sim, talvez não, deu a partida para a criação de Bryce Canyon há 200 milhões de anos – revelou a Joseph Smith, fundador da religião, que os índios norte-americanos eram a tribo perdida de Israel. Haviam dado ali, vindos da Palestina, apenas 600 anos antes da revelação a Smith. Mas descuidaram da verdadeira religião. Smith acreditou que os índios norte-americanos – que chamou de Lamanitas – foram por isso amaldiçoados com uma pele escura. Se ouvissem a palavra de Deus e se tornassem mórmons, a pele deles se tornaria “branca e adorável”. E todos os pecados lhes seriam perdoados.
Caminhei pela alça [trilha] Navajo, deixei Bryce, a caminho para a porção norte do Grand Canyon e – claro, o que mais seria? – para um por-de-sol deslumbrante. Queria encontrar um Navajo ou um Hopi, por ali, para testar a hipótese de Smith e fazer-lhe a derradeira pergunta: como avaliam as consequências de Mitt, o Mórmon, tornar-se o próximo POTUS (President of the United States)? Mas, como já acontece com nossos amigos de Guangzhou, nem é preciso perguntar coisa alguma: os chineses vão, mesmo, tomar conta de tudo.
Pepe Escobar |
“China takes over Bryce Canyon”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Notas de tradução
[1] Pode ser assistido e ouvido a seguir:
Letra (mal) traduzida em: Pain In My Heart
[2] Pode ser ouvido a seguir com Bob Dylan:
Letra (mal) traduzida em Desolation Row.
[3] The Animals/1965. Podem ser vistos/ouvidos a seguir:
[4] Hoodoo é o tipo de formação geológica da região.