A vingança da história: a batalha pelo século 21

Em março de 2003, Seumas Milne escreveu que os EUA e seus aliados “enfrentarão guerrilha determinada, em luta de resistência [no Iraque], a partir do momento em que Saddam Hussein for derrubado” e, provavelmente, “serão expulsos”. [EPA]

Tema recorrente nas tragédias do antigo teatro grego sempre foi o desamparo humano, ante o que o destino decrete. Personagens como Laio, em Édipo Rei, de Sófocles, confrontam poderes superiores a eles, para sempre se verem derrotados, exatamente como já previsto no início da peça. Uma tragédia conexa, também canônica, é a de Cassandra [1], cujas predições são recebidas com descrédito e zombarias e, adiante, se confirmam. Daí deriva a metáfora vigente ainda hoje.

A analogia não é perfeita. Mesmo assim, se pode substituir o destino, como poder maior que o poder humano na visão de mundo grega clássica, pelo, no mundo moderno, perpétuo desenvolvimento de relações sociais, econômicas e políticas ao longo da história, que não tem caminho preordenado por potências divinas, mas o qual, mesmo assim, sempre é um inescapável contexto mais amplo em que se inscrevem nossas ações.

Seja como for, hoje e nos mitos da antiguidade, sempre são os que estão em posições de poder que se supõem capazes de desafiar aquelas forças superiores. E, no mundo moderno, Cassandras são os que contradizem o poder, denunciam a húbris dos poderosos e dizem as verdades que o poder preferiria não ouvir.

A atmosfera triunfalista nas capitais ocidentais, imediatamente depois do colapso da URSS produziu avaliações em que os EUA apareciam como a única superpotência mundial, avaliações que foram da pura húbris falante à mais absoluta irracionalidade.

Como Bush, quando anunciou uma “Nova Ordem Mundial” baseada na supremacia militar e econômica de Washington; ou Francis Fukuyama, ao declarar “o fim da história” – pretendendo que o liberalismo ocidental (em sentido benigno, como o via, como uma força pela democracia e pela prosperidade, não como imperialismo e exploração) teria emergido vitorioso da lutas históricas, convertido em ideal definido e não contestado ao qual todos aspiraríamos.

Fukuyama uniu-se com outros neoconservadores sob a bandeira do “Projeto para o Novo Século Americano”, usando mais tarde os eventos do 11/9/2001 para promover as agressivas políticas exteriores e militares de Bush 2º.

Fracasso catastrófico em 2008

Em 2004, um alto assessor presidencial disse a um repórter, para a coluna “Magazine” do New York Times, que:

Agora somos um império, e quando agimos criamos nossa própria realidade. E enquanto você estuda essa realidade (...) nós agiremos novamente – criando outras novas realidades, que vocês também podem estudar, e é assim que são as coisas. Somos atores da história (...) e vocês, todos vocês, só podem estudar o que nós fazemos. [2]

No final, o “Novo Século Americano” dos neoconservadores durou cerca de sete anos, dos ataques da al-Qaeda em Washington e New York que foram o gatilho que disparou a “Guerra ao Terror”, até a saída, da Casa Branca, de um George W Bush já muito reduzido, com o pântano do Iraque e do Afeganistão já tendo demonstrado “os limites, não a extensão, do poder militar dos EUA”, nas palavras de Seumas Milne. [3]

Enquanto isso, o crash dos bancos de 2008 expôs, como fracasso catastrófico, o modelo anglo-norte-americano de capitalismo hiper financeirizado e desregulado. Para Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia, a queda de Wall Street [lit. “Rua do Muro”] foi, para o “fundamentalismo de mercado”, o que a queda do Muro de Berlim foi para o comunismo. [4] A ideia segundo a qual o “capitalismo democrático de mercado [seria] o estágio final do desenvolvimento social” e que “mercados absolutamente livres, sozinhos, pode(ria)m assegurar prosperidade e crescimento econômico” acabou, então, conclusivamente desacreditada.

Em The Revenge of History [A Vingança da História], coletânea das colunas que publicou no jornal britânico The Guardian ao longo de 10 anos, Milne observa que as Cassandras que previram o grande crash financeiro, pareciam falar – como Paul Krugman, Ann Pettifor, David Harvey ou Steve Keen – de algum ponto da esquerda do espectro político.

Milne também lembra as denúncias histéricas disparadas contra ele, por sua temeridade, ao publicar, como editor do The Guardian, imediatamente depois do 11/9, críticas ao aventureirismo militarista de Bush e Blair, e por questionar a narrativa simplória do “choque de civilizações” dominante naquele momento. Mais uma vez, a história vingaria as Cassandras da esquerda, que haviam previsto as mais catastróficas consequências para o novo militarismo de George Bush e Tony Blair.

Poucos dias depois do 11/9, Milne alertou que “a determinação de Blair, de associar cada vez mais intimamente a política externa britânica à política externa dos EUA [só conseguiria] aumentar o risco contra as cidades britânicas [e] alimentar o sentimento antiocidente”. No final de 2002, Milne escreveu que a então iminente invasão do Iraque “serviria como combustível ao terrorismo em todo o mundo e aumentaria o risco de ataques terroristas em todos os países que apoiassem aquela invasão”.

Dia 7/7/2005, suicidas-bomba da al-Qaeda assassinaram 52 cidadãos inocentes e feriram mais de 700 no centro de Londres, apresentando, como uma das justificativas para a aquela ação, a invasão e a ocupação do Iraque. Como Milne e outros haviam previsto, a “guerra ao terror” chegara como uma dádiva aos terroristas e aos seus agentes recrutadores.

Em março de 2003, Seumas Milne escreveu que os EUA e seus aliados “enfrentarão guerrilha determinada, em luta de resistência [no Iraque], a partir do momento em que Saddam Hussein for derrubado” e, provavelmente, “serão expulsos”.

Em 2004, previu que as então próximas eleições para eleger o Conselho Legislativo na Palestina mostrariam “deriva na direção de maior radicalização”, como resultado de Israel continuar a negar quaisquer direitos humanos básicos às populações nos Territórios Ocupados da Palestina. E, para grande choque de Israel e do Fatah, partido aliado do ocidente, o Hamás conquistou maioria dos assentos no Parlamento palestino, apenas um ano depois.

Recessão e “repique” [orig. “Double-dip recession”[5]

E o mesmo que se via acontecer aos neoconservadores acontecia também aos neoliberais. A quebradeira de 2008 e as subsequentes depressão e austeridade apenas confirmaram o que diziam os críticos inadequadamente chamados de “antiglobalização” já há muitos anos; o neoliberalismo, citando Milne, “estava dando poder a bancos tecnicamente quebrados (...) fazendo aumentar a miséria e a injustiça social [e] esquartejando a democracia”.

Nos anos pós-quebradeira, Milne foi das raras figuras destacadas da imprensa-empresa a dar à nova obsessão com a disciplina fiscal o nome correto: audacioso golpe “de mão” para obter que o fracasso do modelo de livre mercado fosse rapidamente esquecido, com os holofotes, a partir de então, voltados exclusivamente para os déficits do setor público (sempre resultantes, em vasta medida, da quebradeira do mercado financeiro).

Milne chamou atenção, antes de a direita chegar ao poder na Grã-Bretanha com o Partido Conservador, em 2010, que a austeridade fiscal criava o risco de “recessão e repique (...) [e] enfraqueceria ainda mais as finanças públicas”. Três anos depois, todos viram que acertara em cheio, nas duas pontas. [6]

Evidentemente, nenhuma perspectiva política tem algum monopólio da sabedoria, jamais erra ou está a salvo de reproduzir ideias já comprovadas falsas ou irracionais. Mas, como A Vingança da História ajuda a lembrar, a esquerda, nos últimos dez anos, acertou muito mais vezes – sobretudo em questões e economia e política exterior –, com a direita e os liberais praticamente sempre errados, em tudo que disseram e previram. E não poucos casos, grosseiramente errados. Como se pode explicar isso?

Como o respeitado historiador marxista Eric Hobsbawm (falecido esse mês) escreveu, “só quem se livre das ilusões da sociedade burguesa pode ser bom cientista social”. O princípio aplica-se – mais amplamente que a qualquer outro cientista ou profissional que viva de tornar inteligível o mundo social e político – aos jornalistas.

Ainda que qualquer genuína e total objetividade seja impossível, é preciso, pelo menos, não se deixar submergir, sem nada questionar, na sabedoria convencional do dia ou da moda. Todas as ideias políticas dominantes em qualquer dado momento são inevitavelmente e desproporcionalmente modeladas pelos que gritam mais alto: os mais ricos e mais poderosos. E é indispensável que o jornalista prepare-se para não se deixar tomar completamente por ideias dominantes ou não conseguirá, nem ter, nem oferecer visão clara sobre o que esteja acontecendo.

Na prática, hoje, o que se vê é que internalizar “as ilusões da sociedade burguesa” parece ser quase pré-requisito para ingressar na vida política “oficial”, seja como político ou como colunista de jornal da imprensa-empresa em nossos dias. Pelos olhos de Milne, lendo seus escritos, chama a atenção a frequência com que sua opinião afasta-se do consenso, desafiando não só opiniões individuais, mas também a opinião generalizada em seu grupo de atividade, o jornalismo.

Elemento-chave nesse distanciamento, ao comentar questões de política exterior, é o instinto que move esse jornalista para sempre escrever de olhos postos nos povos do sul global, não nas prioridades do poder ocidental. Durante a guerra de Israel contra Gaza, entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009, Milne explicitamente convocou seus leitores a se porem na pele dos povos de todo o Oriente Médio, que viam diariamente pela televisão imagens horrendas da carnificina diária que Israel estava promovendo em Gaza (imagens que nós, no ocidente, não vimos), e a “considerar que espécie de resposta o ocidente daria, se o povo atacado fosse israelense (ou norte-americano ou britânico) e, em apenas alguns dias, alguma cidade ocidental visse as ruas cobertas de mais de 300 cadáveres de inocentes”.

Fracassos da URSS

É muito raro, para dizer o mínimo, que jornalistas comentaristas de política exterior, na imprensa-empresa britânica ou norte-americana, deem voz aos objetos-alvos do poder ocidental e enfatizem seu ponto de vista. Praticamente só o próprio poder fala.

A disposição de Milne para considerar o ponto de vista de outros combina-se a uma habilidade para afastar-se do momento e ver as notícias do dia sempre em contexto histórico mais amplo. No período coberto por esses ensaios, várias vezes construiu comparações muito pertinentes entre a era anterior do liberalismo imperial e a tentativa de dar-lhe sobrevida no período Blair e Bush.

No século 19, como no século 21, os agressores viram-se eles mesmos, sempre, como força a favor do progresso e da civilização. Então, como hoje, os objetos-alvos do império recusaram-se a aceitar que seus próprios interesses fossem subordinados aos interesses de força estrangeira ocupante. Milne identifica corretamente os debates contemporâneos sobre história imperial e as tentativas de recuperar o prestígio moral do império [7], não como meros exercícios acadêmicos, mas como lutas nas quais o que está em disputa é o enquadramento intelectual das políticas contemporâneas.

Nova era glacial: a “guerra ao terror”, dez anos depois

O que se exige nem é tanto alguma reparação pelos crimes do século 19, mas que a política, hoje, seja informada por “uma compreensão de que a barbárie é consequência inevitável de tentativas de impor o poder de força estrangeira ocupante, sobre povos vistos como objetos-alvos”. Que os agentes de uma pressuposta “intervenção humanitária” tenham acabado por produzir os horrores de Fallujah e Abu Ghraib não seria jamais surpresa para quem se tivesse preparado para nunca deixar de ver o contexto histórico.

Assim também, no campo econômico, a catatonia generalizada do pensamento, que se seguiu ao fracasso em 2008 do livre mercado, poderia ser facilmente evitada se, em vez de usar o colapso do modelo soviético para explicar qualquer coisa; como ponto de referência com 1001 utilidades; e como substituto de qualquer reflexão sobre os 20 anos anteriores, jornalistas e analistas tivessem considerado objetivamente também o que aconteceu na Rússia nos anos pós-Guerra Fria.

Uma terapia de choque neoliberal ampliou os fracassos da URSS a nível catastrófico e transformou uma claque de burocratas que não tinham de prestar contas a ninguém em claque de cleptocratas que não tinham de prestar contas a ninguém – enquanto o número dos que viviam na miséria subiu de 14 milhões em 1989 para espantosos 147 milhões, em menos de dez anos. Realizações desse modelo econômico marcaram, triunfantemente, o “fim da história”.

Milne, nesses anos, serviu-se de disciplinas analíticas e, em larga medida, do pensamento de esquerda: a decisão de manter-se fora do círculo das “ilusões da sociedade burguesa”, para considerar a perspectiva dos que estão do lado fraco da mira dos fuzis e ver o contexto histórico como deve ser visto, não como o poder deseja que seja visto.

Acima de tudo, o que torna o jornalismo de Milne caso absolutamente à parte entre seus pares na imprensa britânica é a decisão de jamais apagar os repetidos fracassos do liberalismo; e de sempre considerar as relações materiais de poder inerentes à política, com o papel crucial que têm na modelagem das políticas dos governos ocidentais.

Confiança intelectual

Adotar esses princípios não assegura infalibilidade a ninguém. Em 2001, Milne escreveu que o fim da URSS havia “reduzido o escopo para alianças diferentes” acessíveis para os países em desenvolvimento que buscavam tornar-se independentes do poder ocidental. Mas os anos seguintes assistiram ao acentuado declínio da influência dos EUA em seu próprio quintal, com um estado depois do outro, na América Latina, encontrando vias para livrar-se de Washington; e com a cooperação regional [8] convertendo o fim da dominação do norte global em possibilidade real, pela primeira vez em 500 anos. Diga-se a bem da justiça que Milne não foi absolutamente o único a ser prazerosamente surpreendido por esses bem-vindos desenvolvimentos.

Nem o fato de adotar o quadro teórico da esquerda anti-establishment fecha os espaços de discordância e debate. Em minha avaliação, as colunas recentes de Milne sobre a guerra civil na Síria exageram na significação (por importante que sejam) das dimensões geopolíticas do conflito, e não levam suficientemente em conta as dinâmicas internas que, no final, ainda se poderão comprovar mais decisivas. Perspectivas analíticas são apenas guias gerais imprecisos, cuja utilidade depende de como se as tomam, em cada situação particular. (...)

O mais importante, na mensagem que se extrai do livro é o próprio tema principal – quem teve mais sucesso na exposição/explicação do mundo pós-Guerra Fria em que vivemos, e por quê. Afinal, a esquerda já pode deixar para trás o estilo cabisbaixo que a caracterizou nos anos 90s, quando parecia aturdida pela onda montante do neoliberalismo.

As Cassandras estão vingadas, mas essa pode ser vitória sem vencedores, ou beneficiar, no máximo, alguns de nossos egos. Hoje, diferente do que se viu nas peças clássicas, só muito raramente os que se deixaram tomar pela húbris são punidos pelos próprios erros. Quem continua a pagar preço mais caro ainda são os objetos-alvos do poder. De Bagdá a Atenas. De Wisconsin ao Bahrain.

A esquerda precisa, urgentemente, reencontrar a confiança que Milne trabalha para reinsuflar nela, porque as apostas, hoje, são mais altas que nunca. Como disse Naomi Klein, “é tempo de vencer mais do que discussões”.


David Wearing
27/10/2012, David Wearing (resenha), Al-Jazeera
Review: “The Revenge of History: The Battle for the 21st Century”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

 

Notas de tradução

[1] Cassandra era filha de Príamo, rei de Tróia. Impressionado pela beleza de Cassandra, Apolo deu-lhe o dom da profecia. Mas quando Cassandra recusou os avanços apaixonados de Apolo, ele a amaldiçoou: Cassandra conservaria o dom da profecia, mas ninguém jamais acreditaria nela. Cassandra, assim, é aquela que conhece o futuro e o enuncia, mas sem conseguir convencer ninguém.

[2] 17/10/2004, Faith, Certainty and the Presidency of George W. Bush [Fé, certeza e a presidência de George W. Bush], Ron Suskind, The New York Times, Magazine.

[3] 19/10/2012, redecastorphoto em: O fim da Nova Ordem Mundial, Seumas Milnes, em português.

[4] 16/6/2009, Joseph Stiglitz, Carta Maior, As mensagens tóxicas de Wall Street em português.

[5] “Double-Dip Recession” ocorre quando o PIB volta a ter crescimento negativo, depois de um trimestre ou dois de crescimento positivo. Em português “recessão de duplo mergulho”, “recessão e repique”, “repique de recessão” ou “repique recessivo” refere-se a recessão seguida de recuperação não duradoura, seguida de nova recessão, (em inglês).

[6] 25/7/2012, The Guardian, Larry Elliot em: UK GDP slump: Osborne's blundering incompetence made the economy sicker (em inglês),

[7] Pankaj Mishra, Watch this man, London Review of Books, vol. 33, n. 21, 3/11/2011, pp. 10-12, em inglês.

[8] 5/1/2007, International Herald Tribune, Noam Chomsky em: South America: Toward an Alternative Future”.

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