A volta do chicote no lombo do chicoteador

Fiquei tão triste e furioso quanto qualquer norte-americano, quando ouvi sobre as bombas no Consulado dos EUA em Bengazi, Líbia. Também chorei a morte dos que morreram ali. O embaixador parecia ser alguém que realmente conhecia a região e se preocupava com os seres humanos que lá vivem. Americanos e líbios têm a chorar, mais essas mortes.

Mas não entendo o que todos ouvimos, pura retórica, da boca de Hillary Clinton, depois dos acontecimentos. Chegou ao ponto de dizer que os EUA “libertaram” Bengazi e que ajudamos o país a livrar-se do “ditador do mal” Muammar Gaddafi. Pelo que se vê, as bombas surpreenderam Clinton, que não esperava que pudessem acontecer, sobretudo no consulado dos EUA, localizado em tranquila área residencial.

Hilária e as crianças...por Latuff

Instalar o consulado naquela área residencial, mal protegido, foi terrível erro dos EUA. Sinal de arrogância. Se se vê a extensão do dano que a chamada revolução “democrática” causou à Líbia, se se vê a destruição que EUA e OTAN levaram à Líbia – EUA e OTAN ativamente armaram os chamados ‘revolucionários’ líbios, processo que implantou o caos em metade do país, quando a outra metade é governada por um conselho revolucionário que não governa – é bem fácil entender a ira, a fúria, que agora se vê entre os líbios, contra os EUA.

Por mais que a Líbia implicasse dificuldades para os EUA, jamais poderia ter sido destruída como foi, por EUA e OTAN. Gaddafi, por pior que talvez fosse, nunca poderia ter sido assassinado como foi, pelos ‘'combatentes da liberdade'’ que os EUA apoiavam. O insulto dos insultos foi a frase que Clinton usou quando chegou à Líbia: “Viemos, vimos e ele morreu”. Disse e riu!

Claro que muita gente não gostou. Claro que muitos líbios odeiam furiosamente a destruição que desabou sobre eles dos aviões da OTAN. Claro que há líbios que não apoiam nem aceitam o regime que substituiu o governo de Gaddafi e o caos que reina hoje em metade daquele grande país, transformado em zona de guerra que parece não ter fim.

Há aspectos incompreensíveis. Um deles é a instalação do consulado dos EUA em área residencial. Absolutamente incompreensível. Não se entende o que passaria pela cabeça dos especialistas do Departamento de Estado que implantaram o consulado dos EUA onde ele estava.

Como é possível que não vissem que a OTAN não é unanimemente vista como força benevolente que teria “libertado” a Líbia? Como é possível que não vissem que os EUA e outros europeus são vistos na Líbia como agentes da destruição de um estado que os líbios não viam como estado de regime ditatorial, mas como estado orgulhoso de si mesmo, que não se deixava intimidar pelo “ocidente”?

Como é possível que não vissem que, para muitos, Gaddafi é o herói que deu à Líbia nível de vida superior a tudo que o norte da África algum dia conheceu?

Para muitos, a destruição da Líbia foi vista como show de arrogância e poder imposto lá pelas armas de europeus e norte-americanos. A OTAN foi instrumento de violenta “mudança de regime”. EUA e OTAN serviram-se do povo líbio, usaram a Líbia como exemplo para outros que tentassem desafiar as potências ocidentais.

Hoje, os EUA estão pesadamente comprometidos também com a destruição da Síria, outra nação que não se rende servilmente ao que ordenem as potências ocidentais.

Líbia e Síria eram governos seculares que trilhavam caminhos próprios e bem-sucedidos. Esse, sim, é o motivo pelo qual EUA e OTAN decidiram que não poderiam sobreviver. Que teriam de ser destruídos, até não restar pedra sobre pedra e Líbia e Síria estarem reduzidas a ruínas, como hoje estão.

Dr. Paul Craig Roberts

Dr. Paul Craig Roberts não se cansa de ensinar que, no Oriente Médio, os governos seculares conseguem que várias facções e diferentes religiões convivam em paz, lado a lado. Instalar ali governos de fundamentalistas sunitas sempre levará à destruição e fragmentará as populações e gerará lutas internas, em que diferentes facções combaterão umas contra as outras, o que gerará estados impotentes e sem lei. É o que EUA e OTAN desejam! Assim, desaparecem os obstáculos que os interesses ocidentais enfrentam naquela parte do mundo. E rachar em mil pedaços o governo líbio também foi visto como meio para impedir que os interesses chineses avançassem na região.

Por tudo isso, é preciso interrogar o Departamento de Estado dos EUA, e tentar descobrir como foi possível que tenham tido a audácia de instalar nosso consulado naquela área residencial de Bengazi. Não sabiam? Não sabiam que EUA e OTAN não são vistos como “salvadores”, mas como forças de odiosa ocupação da nação líbia? Não sabiam que puseram em risco a vida de cidadãos norte-americanos? Não sabiam que instalar o consulado dos EUA onde foi instalado, em região mal protegida de cidade inimiga, seria loucura, além de temeridade arrogante?

Depois do ataque ao consulado, Clinton falou como se não soubesse da destruição que EUA e OTAN levaram à Líbia. Quem, em pleno juízo, acreditaria que os líbios receberiam bem os norte-americanos? É inconcebível! Clinton parecia “ofendida” por haver líbios dispostos a atacar instalações dos EUA, depois de os EUA terem ajudado a “libertar” Bengazi! Essa atitude ensandecida, só ontem, matou três cidadãos norte-americanos.

Parte de uma força de ocupação que são, os cidadãos norte-americanos, se tivessem de estar onde estavam, teriam de estar sob forte proteção.

Depois do que a OTAN fez à Líbia, qualquer secretário de Estado mentalmente são teria instalado os representantes diplomáticos dos EUA em ambiente mais seguro. O ar apalermado, de frustração e choque, que Clinton exibia depois dos ataques, mostra o quanto é simplória. Clinton realmente acredita que seria dever dos líbios agradecer aos EUA por terem destruído a Líbia. Mas se Clinton crê, de fato, que os líbios teriam alguma obrigação de receber os EUA de braços abertos, depois de os EUA os termos bombardeado até devolver um país próspero à idade da pedra lascada, Clinton errou. O que se viu na Líbia foi a volta do chicote no lombo do chicoteador.

É mais que hora de o Congresso dos EUA intervir e impor que as aventuras ensandecidas dos militares norte-americanos em outros países sejam votadas no Congresso, autorizadas ou impedidas por quem tem o dever de falar pelo povo norte-americano.

Isso se aplica à carnificina que os EUA estamos promovendo também na Síria.

Quanto antes o Congresso norte-americano intervier para cumprir seu dever de impedir ação militar dos EUA contra países que não estejam atacando os EUA, mais rapidamente terão fim as carnificinas e massacres pelo mundo. Quanto mais os EUA insistirem em intervir nos assuntos internos de outros países, mais se repetirão os ataques contra os EUA e mais humilhação e vergonha os EUA atrairemos sobre nós mesmos.

É hora de os norte-americanos assumirmos o controle sobre nosso próprio governo e pormos fim ao envolvimento dos EUA nos conflitos internos de outros países. Se realmente sabemos respeitar o direito de autodeterminação das nações, temos de parar de interferir em outros países. Temos de parar de assumir posição, a favor de um lado ou de outro, em questões que não conhecemos.

Sempre que a OTAN ou os EUA (que, de fato, são a mesma coisa) tomam partido de um ou de outro lado em conflitos internos de outros países, não se trata de defender algum princípio de autodeterminação. Trata-se, isso sim, de os EUA determinarem quem vence e quem perde. Sempre que os EUA interferem nas lutas de outros povos, são as armas norte-americanas, não o povo das outras nações, quem decide.

No Oriente Médio, só isso explica porque tantos nos desprezam tanto. Não compete aos EUA determinar que caminho outros povos devam seguir. Quanto antes os EUA aprendermos essa lição, mais depressa conseguiremos ter relações normais com aqueles povos. Se Clinton vivesse no mundo real, teria protegido aquele consulado como a fortaleza que teria de ser, metida, como está em território inimigo. Clinton tem, mais uma vez, as mãos sujas de sangue.  
_________________

13/9/2012, Timothy V. Gatto, Countercurrents
Blowback
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Nota dos tradutores

Tim Gatto é sargento aposentado do Exército e ex-presidente do Liberal Party of America, LPA [Partido “de esquerda” da América]. O LPA nasceu, em 1944, de uma dissidência do movimento sindical norte-americano; tem características anticomunistas, mas é partido estatizante, com preocupações ditas “éticas”. Não tem forte expressão de massa, mas, em outros aspectos, tem posição política muito semelhante à do Partido dos Trabalhadores, PT, do Brasil. Lê-se manifestação do LPA em: “United States, Incorporated: Privatizing America:Profit is All”(“Privatizando os EUA: o lucro é tudo!”). 


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