Mas não. O que vimos no domingo (18) foi um time entrar em campo e outro, não. E não foi falta de treino, de aviso, de vontade ou calma. Tem sido assim há pelo menos quatro temporadas.
O Barcelona que venceu o Santos por 4 a 0 é um time programado para fazer desaparecer o adversário. Como se do outro lado do campo, seja o Santos de Neymar, seja o Real Madrid de Cristiano Ronaldo, não houvesse gente praticando o mesmo esporte ou falando a mesma linguagem. Pela câmera da tevê, é possível ver apenas pontinhos brancos, como bandeiras intactas, no campinho azul-grená em direção ao gol.
Como a tática é justamente fazer o adversário desaparecer, tocando, caminhando, e se livrando da bola o mais rápido possível, parte do que conhecemos como futebol simplesmente desapareceu nessa era de domínio catalão, que pode ter produzido o melhor time da história.
No jogo de domingo, ninguém viu escanteios, bate-rebate, chutão para a lateral, jogadas individuais na linha de fundo, faltas táticas, jogo de corpo, pedalada, escapada lisa pelo meio, caneta, chapéu, cruzamento do alto, pedardo de fora da área.
Tudo isso caminha para o desaparecimento à medida que o futebol espanhol, representado pelo Barcelona e recriado na seleção, impôs uma nova modalidade dentro do esporte. Uma modalidade em que você fica mais tempo com a bola (no domingo, foram quase 70% de posse sobre o Santos), fazendo justamente com que seus jogadores fiquem menos tempo com ela. Do paradoxo, parece ter nascido uma reinvenção do esporte.
Pode ser cedo para dizer. Pode ser que a história prove que o Barcelona não seria um supertime sem o Messi e que, sem os colegas Xavi e Iniesta, o argentino também não seria o superjogador que é. Entre todos, ele ainda é o único a carregar a bola, a tentar o drible, a arrancar em direção ao gol. Mesmo assim é econômico: só o faz quando os rivais já estão tortos de tanto toque de bola.
E não tenham dúvida: Messi, tão latino como Neymar, é representante da escola onde vive, e não de onde nasceu.
Seu brilho individual é uma espécie de licença poética num jogo calculado, na base da paciência e da troca de posicionamento. E foram justamente a paixão (que leva o atleta a tentar resolver a jogada num lapso de impaciência de quem luta contra o relógio) e a anarquia que fizeram durante anos a escola latina, passional, a rivalizar com a europeia, calculada e fria.
O futebol só se tornou o grande esporte que é, imprevisível, emocionante, porque durante anos as Copas do Mundo colocaram à prova basicamente dois modelos. De um lado, o europeu tradicional, fundado pelos britânicos e apropriado por italianos e alemães. Em campo, contavam com a estrutura física para cabecear bolas lançadas à altura de um prédio. Ou no chute reto de fora da área. Um esporte para robôs, aplicados e eficientes.
Chegam os latinos, primeiro com o Uruguai, depois com o Brasil e a Argentina, e o jogo físico perde seu reinado.
A passionalidade latina, de quem corre feito leão e ainda é capaz de comer grama para não perder a partida, ganha sua maior expressão com a miscelânea produzida em gramados brasileiros. Vem Pelé, vem Garrincha, vem um exército de pequenos grandes homens que solapavam edifícios ingleses e italianos com finta, fôlego, gingado; uma caneta no grandalhão aqui, um chapéu no troncudinho acolá, e dois esportes completamente diferentes duelavam de igual para igual.
Foi assim durante muito tempo. Num ano é o modelo engessado, mas aplicado, que se glorifica, como a Alemanha de 1974 ou a Itália de 2006. Em outros, é o estilo passional (ora anárquico) que vence, como o Brasil de 1970 ou a Argentina de 1986. A alternância do predomínio fazia dos asiáticos e africanos espécies de espectadores da brincadeira.
Mas algo parece mudar na balança dos dois únicos modelos. Com o Barcelona, base da atual seleção campeã do mundo, um novo sistema parece surgir.
A aplicação tática talvez seja a mesma consagrada no velho continente. Mas a supremacia começa a ser consolidada por meio de jogadores baixos, que se consagram mais pela capacidade de se livrar rapidamente da bola do que de correr com ela e produzir firulas como um Dener, um Ronaldo Fenômeno, um Robinho. Lá, todos brilham porque todos aparecem. Todos parecem saber onde estão todos. Treinam em campo reduzido, para dominar a arte do passe curto, e ficam imbatíveis quando o campo, real, se amplia. Do outro lado não existe adversário, mas espectador, à espera de um bote que não vem.
Foi a fórmula encontrada por Josep Guardiola, e herdada por Vicente Del Bosque em 2010, para não perder de ninguém. Nesse modelo, a vitória, por mais elástico que seja o placar, é sempre por pontos, quase nunca por nocaute; é construída de forma lenta, desesperadora (para o rival), pelos miolos, de pé em pé.
O futebol, nos pés dos espanhóis, eliminou as margens para o risco, para o improviso, para a supremacia do corpo sobre a lógica. Mas também a finta. Por isso, muita coisa de futebol que aprendemos como sendo coisas de futebol não entraram em campo na final do Mundial Interclubes.
Uma final simbólica, que levou a campo o que havia de melhor na escola sul-americana: um time que tem em Paulo Henrique Ganso e Neymar suas duas maiores apostas para a próxima Copa e comandado pelo técnico brasileiro mais vitorioso da história recente. E o resultado foi o que foi.
Porque o Barcelona é muito superior? Pode ser. Mas quem parece ter vencido o jogo não foi o time, mas um modelo de se jogar futebol.
A escola espanhola (baixinha, paciente, aplicada, com mais gente no meio-campo que no ataque), que tem engolido a escola tradicional europeia a cada temporada, agora almoçou a escola sul-americana.
Pode ser que esta escola se encerre tão logo alguma peça-chave do time, ou da seleção, se aposente, como aconteceu com a Holanda de 1974. Mas pode ser que os jogadores sejam apenas peões de uma esteira de produção consolidada.
Se for, teremos de admitir que, neste começo de século, o futebol foi reinventado pelos espanhóis. E no futebol nem sempre vence o melhor ou mais sortudo. Vence quem se reinventa. Em três anos, são três mundiais, dois de clubes e um de seleções. E o viés é de alta.
* Matheus Pichonelli, formado em jornalismo e ciências sociais, é subeditor do site e repórter da revista CartaCapital desde maio de 2011. Escreve sobre política nacional, cinema e sociedade. Foi repórter do jornal Folha de S.Paulo e do portal iG. Em 2005, publicou o livro de contos Diáspora.
** Publicado originalmente na Carta Capital.
(Carta Capital)