Ninguém sabe o que se passa hoje na República Popular Democrática da Coreia, além da continuada catarata de lágrimas – impostas pelo sistema, ou sinceras. A única certeza é que o terceiro filho do Querido Líder Kim Jong-il – o jovem Kim Jong-un, formado na Suíça – perpetuará a dinastia que governa a Coreia do Norte.
No princípio foi o Eterno Líder Kim Il-sung, figura de certo modo icônica entre os anti-imperialistas em várias latitudes do mundo subdesenvolvido, sobretudo durante os anos 1950s.
Depois, o Querido Líder. O que virá agora? O Prezado Líder, talvez?
Não há muitas incertezas como consequência da morte de Kim Jong-il |
O penteado esquisito do Querido Líder, os sapatos de plataforma, a exótica coleção de carros, a fascinação por Hollywood são itens do folclore pop. Mas o que pôs todos os think-tanks ocidentais operando em modo de histeria máxima é ter de adivinhar o que acontecerá à disciplina militar da Coreia do Norte e ao seu formidável programa de armas nucleares.
Primeiro de tudo, demos essa guerra por concluída
Eu estava na Coreia do Norte, ano passado, no aniversário do Querido Líder [1]. Conhecido por viver como ermitão (ou enterrado como toupeira), ninguém o viu em lugar algum. Mas, a seu modo, Pionguiangue festejou. E esperava voltar em 2012, para aventurar-me mais para o fundo do país, e ver como a Coreia do Norte “invisível” reagiria nas fenomenais celebrações do centenário de nascimento do Eterno Líder, que morreu em 1994.
Sabe-se lá o que estará pensando minha adorável intérprete, formada em literatura inglesa, de nome Jang Hyon Il, do que ela estima, com certeza, que seja tragédia maior que a vida. Ainda não se ouviu a fala (até agora) do apocalíptico porta-voz não oficial do Querido Líder, para o ocidente, Kim Myong-chol. Nessas circunstâncias, passei a mão no colar de contas de madeira esculpidas que ganhei de um monge angélico, num mosteiro próximo ao templo erigido em honra de Kim Il-sung, escavado numa montanha, para tentar adivinhar o futuro.
Em primeiro lugar, que ninguém espere uma “primavera norte-coreana”. Assim como as massas sofrem como se vivessem em tempos medievais, e assim como alguns sonham com um comunismo que realmente beneficie os mais pobres, assim não acontecerá “primavera norte-coreana” alguma, porque os militares norte-coreanos não permitirão que aconteça.
Ano passado, disseram-me lá, em termos bem claros, que a única via possível para que se construa algum tipo de entendimento com os EUA depende de Washington e Pionguiangue sentarem-se à mesma mesa e, formalmente, declararem juntas o fim da Guerra da Coreia (que, tecnicamente, continua até hoje).
Em teoria – seria o resultado ao qual se chegaria gradualmente, depois do recomeço das conversações “dos seis”, conduzidas por Pequim, sobre o programa nuclear norte-coreano, mas que estão empacadas desde dezembro de 2008.
Agora, todos os olhos estarão postos sobre o jovem Kim. Mas enquanto Washington não assinar um tratado de paz reconhecendo o fim da guerra, e enquanto não pagar as reparações exigidas, nada, de fato, andará sequer um passo.
O Querido Líder escolheu o jovem Kim, preterindo seus dois irmãos mais velhos. Durante algum tempo, o favorito foi Kim Jong-nam, ex-playboy internacional, hoje residente em Macau. Mas Kim Jong-il nunca engoliu aquela queda pela vida loca.
A vida depois da Coreia do Norte de Kim Jong-il
Detalhe crucialmente importante, Kim Jong-un é general de quatro estrelas nomeado pelo Querido Líder. Na prática, nada significa: o nomeado não tem qualquer experiência militar, embora se diga que é especialista em artes e artimanhas da tecnologia de informação. Os generais que realmente contam na Coreia do Norte são revolucionários da velha guarda mais hardcore, já chegados aos 80 anos.
Como em tudo que tenha a ver com a dinastia Kim, os sobretons shakespearianos são fascinantes. O jovem Kim terá de lidar com a poderosa esposa do Querido Líder, Kim Ok; com a mais complexa de suas tias, Kim Kyung-hui; e com o marido dela, Jang Song-thaek, também corrupto.
Jang é um dos apenas quatro vice-presidentes da Comissão de Defesa Nacional, o mais santificado dos santificados corpos da Coreia do Norte. O ex-presidente era – fácil adivinhar – o próprio Querido Líder em pessoa.
Especialistas internacionais em Kimologia devem estar agora afiando seus microscópios, tentando adivinhar se o jovem Kim será ou o tubarão ou a sardinha, agora que terá de nadar sozinho por aquelas águas onde nadam, além da família, um bando de generais inconversáveis e o tio Jang, uma espécie de Darth Vader da Coreia do Norte.
O que já é certo, sem sombra de qualquer dúvida, é que, para todas as finalidades práticas, haverá uma espécie de junta militar que regerá o show, por trás do jovem Kim.
O sol não brilha, porque ele se foi[2]
Ao sul, fácil de adivinhar, Seul queima de ansiedade, sobretudo nos níveis governamentais. Quem, afinal, é, de fato, o jovem Kim? Será chegado a guerras? Vai nos incinerar? Ou dará uma de Mandela?
A maioria da população na Coreia do Sul espera, basicamente, que seu governo – seja qual for a tendência política – mantenha o Norte sob controle.
De fato, a esquerda sul-coreana tem boas chances de voltar ao poder nas próximas eleições de 2012. Pode ser a volta da política “raio de sol” (sunshine policy) lançada pelo ex-presidente Kim Dae-jung, que visitou Pionguiangue para uma reunião histórica entre as duas Coreias, em junho de 2000.
Outro ex-presidente, Roh Moo-hyun – que também esteve em Paionguiangue para reunião semelhante àquela, em outubro de 2007 – também era militante da política “raio de sol”. É estratégia de pacificação tão boa quanto qualquer outra, com muita ajuda ligada a vários fios, e o que não agradar sempre poderá ser destruído por “um mar de fogo” mandado de Pionguiangue.
Muitos sul-coreanos parecem entender instintivamente que a lógica do norte é que o que é bom para a dinastia Kim é bom para a Coreia do Norte. Isso implica mudança-zero de regime, aconteça o que acontecer. Afinal, toda a elite militarizada da Coreia do Norte transfere seus privilégios, de geração a geração.
Mas há também a desagradável questão econômica. A economia no norte muito teria a ganhar com um choque à Deng Xiaoping – um “socialismo com características coreanas”. Mas a dinastia Kim e o aparelho militarizado que a cerca tendem a preocupar-se, sobretudo, com as reverberações políticas e sociais de excesso de liberdade econômica.
A China é a parceira chave da Coreia do Norte, e assim continuará. Os investimentos chineses continuarão a fluir – paralelos ao apoio diplomático. Pequim, portanto, vive o melhor de dois mundos: mantém seu aliado nuclear e perpetua o status quo de uma península coreana dividida; o que permite concluir que é baixíssima a probabilidade de a ascensão do jovem Kim vir a alterar substancialmente a equação no nordeste da Ásia.
Pepe Escobar |
20/12/2011, Pepe Escobar, Al-Jazeera, Qatar
Young Kim in the house
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Notas dos tradutores
[1] 25/2/2010, Asia Times Online; Happy Birthday, Comrade Kim
[2] Orig. “Ain't no sunshine when he's gone”, é título de um clássico do blues. Pode-se ouvir, com Freddie King, em concerto em 1972 (maravilhoso, apesar da gravação precária), a seguir: http://www.youtube.com/embed/EumS7B4HcTg
Existe uma versão infantilóide melosa, cantada por Michael Jackson, então com 14 anos; apareceu na trilha sonora da novela “Selva de Pedra”, da Rede Globo, também em 1972.
http://redecastorphoto.blogspot.com