Há alguns anos, T J Winter, respeitado professor de Cambridge, cujo nome muçulmano é Abdal Hakim Murad, fez palestra fascinante dirigida a professores e alunos de ciências humanas da Universidade de Leicester, sob o título de “O Islã e a ameaça que nasce no Ocidente”. Já o título chamava a atenção para ameaça diferente do slogan repetido (então, como hoje) “o Islã e a ameaça que nasce no Oriente”.
Foi nova abordagem que, em poucas palavras, ilustrou que, historicamente, sempre houve agressão maior da Europa contra o mundo muçulmano, que o contrário. Winter/Murad apresentou várias provas, de fontes impecavelmente dignas.
Voltei a pensar hoje nas palavras de Winter/Murad, quando lia as notícias sobre o terrível atentado a bomba e o tiroteio na Noruega, onde, evidentemente, as primeiras suspeitas foram de que os atentados tivesse algo a ver com “o terror islâmico”. Evidentemente se saberá mais nos próximos dias, mas o que se sabe hoje é que o assassino é “norueguês, louro, de olhos azuis”, com “tendências políticas de direita e convicções antimuçulmanas”.
Mas já se disse que as intenções do homem nada teriam a ver com esses “traços”, nem com seus postados em “páginas da internet com tendências cristãs fundamentalistas”: eventuais influências “terão de ser investigadas com cuidado”. Exatamente o que se ouviu quando do atentado de Oklahoma, em 1995.
Sem qualquer fundamentação e muito estranhamente, o criminoso já está descrito pela mesma autoridade norueguesa como “um louco”. É bastante possível que seja louco, mas esse “diagnóstico” automático é um dos modos pelos quais as motivações de crimes de ódio podem ser apagadas da história, antes mesmo de chegarem a tomar forma na consciência das pessoas.
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Em 1969, por exemplo, um judeu australiano, que pôs fogo na Mesquita Al-Aqsa em Jerusalém, também foi sumariamente absolvido como “um louco” e internado em hospital psiquiátrico. Fim da notícia. Os judeus da direita fundamentalista que haviam planejado destruir a Mesquita, e o Domo da Rocha, ali perto, sobreviveram mais um dia.
Suspeito que acontecerá coisa semelhante ao terrorista norueguês. Seus laços com a extrema direita e com cristãos fundamentalistas serão apagados, por irrelevantes. Os crimes, como leremos em todos os jornais, serão descritos como ato de “pessoa desequilibrada” que “agiu individualmente”. Ergo, a única ameaça que continua a pesar sobre a civilização é a “ameaça terrorista” “dos islâmicos”. Ergo, o foco de toda a legislação e de todos os esforços antiterror deve continuar apontado contra o mundo muçulmano e as comunidades muçulmanas na Europa e nos Estados Unidos.
Se não nos manifestarmos e permitirmos que isso aconteça, estaremos prestando grave desserviço ao mundo, no mínimo porque a nova direita cresce em todo o Ocidente – e Oklahoma foi prova de que essa nova direita é capaz de imensa destruição.
Imigrantes neonazistas da Europa Oriental continuam como sempre muito ativos em Israel, onde o governo, ao mesmo tempo em que deplora pelos jornais essa atividade da extrema direita, está, de fato, a caminho, a passos largos, da mesma extrema direita. Há ministros que pregam a limpeza étnica dos palestinos, para purificar Israel como “estado judeu”; preciosos direitos humanos, pelos quais o mundo tanto lutou, são apagados em nome da “segurança do estado judeu”; criminosos uniformizados são literalmente absolvidos “preventivamente” dos assassinatos que cometem repetidamente.
Tudo isso acontece com a aprovação de governos ocidentais, os quais, eles mesmos, mostram também tendências direitistas – o duplifalar, sempre que se trata de ensinar tolerância e respeito às minorias. Se você tem aparência, por pouco que seja, “diferente” na Europa hoje, sobretudo se você for muçulmano, você é olhado com suspeitas e é possível que seja obrigado à dura tarefa de “provar” sua lealdade a um estado que, se a verdade aparecesse às claras, já teria se livrado de você, se tivesse coragem para aprovar as leis necessárias para tanto. Em alguns casos, até já há a necessária legislação, mascarada sob alguma “legislação antiterror”, ou de “segurança nacional”.
Tudo isso, apoiado por uma imprensa influente e sempre de direita, que defende o que Israel faça, errado ou certo, legal ou ilegal – e por um lobby pró-Israel que age como se fosse intocável. Dado o contexto político no Ocidente, é provável que seja.
Ataques contra a esquerda
É significativo que o alvo do terrorista norueguês (o “louco”) pareça ter sido o Partido Trabalhista, de esquerda, tanto em Oslo quanto na ilha onde houve o tiroteio. Em toda a Europa, as esquerdas estão fazendo alianças com grupos muçulmanos para combater o fascismo e o racismo, onde apareçam. Evidentemente não é coincidência que ensaios publicados em 1997, em todo o continente, tenham concluído, praticamente sem exceção, que “o desafio” que a Europa enfrentaria seria a presença de grandes comunidades muçulmanas entre “nós”. Assim sendo, quem considere graves os “traços de direita”, as ideias “antimuçulmanas” e até as ligações com “o fundamentalismo cristão” do terrorista norueguês será visto como opinião irrelevante.
O contexto oculto aí é que a ideologia da extrema direita de modo algum estaria ou poderia estar empurrando o mundo na direção do terrorismo.
Essa ideia é absoluto nonsense. A ideologia de direita levou a Europa ao Holocausto de judeus europeus e ao antissemitismo e sempre esteve por trás de outros tipos de racismo em todo o mundo. A ideia da superioridade da Europa e dos europeus – construída a partir da ideologia da direita –, levou ao comércio e à escravidão de seres humanos e atrocidades inenarráveis contra “o outro” também no Oriente Médio e no Extremo Oriente.
Ironicamente, é uma extrema direita sionista – não, de modo algum, os mitos socialistas dos pioneiros sionistas socialistas utópicos dos anos 1930 e de antes – que está, hoje, por trás da limpeza étnica na Palestina ocupada por Israel, adotada como específica política israelense, também por meios militares, se preciso.
Tudo isso está bem documentado, embora permaneça ignorado pelos chefes políticos contemporâneos.
No contexto de que tudo leva a crer que sejam atos terroristas de uma extrema direita norueguesa, é também irônico que a palavra em inglês para traidor que colabora com forças inimigas de ocupação (quisling) seja derivada do nome do major Vidkun Quisling, que governou a Noruega em nome da Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial.
Hoje, estamos decidindo que “o louco” norueguês “não tem ligações com nenhuma organização terrorista internacional”. É grave risco para todos nós. A história já mostrou que as ideologias de extrema direita são transnacionais e atravessam todo o Ocidente. Os efeitos podem ser catastróficos em todo o planeta. Já fomos avisados.
Tradução: Coletivo Vila Vudu.
* Ibrahim Hewitt é editor-chefe do Middle East Monitor.
** Publicado originalmente no site Agência Carta Maior.
(Agência Carta Maior)